Post on 05-Aug-2015
De quatro a quatro
DE QUATRO A QUATRO
(1926)
Manuel António
INTENÇÕES
ENCHEREMOS AS velas
com a luz náufraga da madrugada
Pendurando em dous pontos cardinais
a randieira esguia
do pailebote branco.
Com as suas mãos loiras
acenam mil adeuses as estrelas.
Inventaremos frustradas descobertas
a barlavento dos horizontes
pra acelerar os abolidos corações
dos nossos veleiros defraudados.
Alaremos polo chicote
de um meridiano inumerado
Na ilha anônima
de cada singradura
esculcaremos o remorso da cidade
Ela noctâmbula desfolhará
como umha margarida prostibulária
a Rosa dos Ventos do nosso coraçom
Encadearemos adeuses de escuma
pra toda as praias perdidas
Juntaremos cadernos em branco
da novela errante do vento.
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De quatro a quatro
Pescaremos na rede dos atlas
ronseis de Simbad
E caçaremos a vela
sobre o torso rebelde das tormentas
pra trincar a escota de umha ilusom.
A FRAGATA VELHA
TES OS olhos distantes
decorados de rostos joviais
que os velhos marinheiros
permutarom polos climas antípodas.
Levas no leme
um pulo de braços tensos
que retorcerom os largacios
horizontes do mar
O vento
atortorando
desfolhou dos velames
outonos de mocidades
Mercava colares circunmeridianos
nos bazares das estrelas
Amarravas faros dispersos
com o simblador calabrote do ronsel
Floresce-ches no Mar
primaveras amargas
de foulas e escamalhos
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De quatro a quatro
Ainda que o vento encalme
tremela nas tuas velas
umha rafega de transmigrações
Nesse teu coraçom inumerável
também enchem e devalam
as marés do meu coraçom.
TRAVESSIA
Troqueis reiterados
o relógio e o Sol
acunharom moedas efémeras
que repetiam todas
a mesma cara e a mesma cruz
A costa e o Mar
escamotearom unânimes dorsos
permutadores da mesma
longínqua evasom
Temos um estrangulado diagrama
repassado por todos os novelos do horizonte
que virarom a proa e a Rosa dos Ventos
Na fasquia dos barcos anônimos
postos a flote pola madrugada
extraviados no roteiro do serão
persistirom sempre
a mesma foula e o mesmo ronsel
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De quatro a quatro
Essa inter-troca de radiogramas
que reeditarom os faros e as estrelas
deu-nos a multiplicaçom monótona
das mesmas letras do mesmo morse
Foi a derradeira rafega do vento
quem nos desfolhou de todas as lembranças?
O Mundo
que já nom sabe
mais que repetir umha volta consabida
rachou clandestinamente
as folhas imprevistas dos almanaques
Com as nossas mãos suicidas
espalharemos no carroussel dos ventos
os quatro pontos cardinais
Mentres
o timoneiro
arrombará proa a Nengures
Repetiremos os cansos corações
cronometrando monotonias
Nas velas indecisas
folheia o vento um indelével
álbum de leit-motivs
O minuteiro
(tic-tac)
assumiu o compasso das travessias.
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De quatro a quatro
OS CÔVADOS NO VARANDAL
ATOPAMOS esta madrugada
na gaiola do Mar
umha ilha perdida
Armaremos de novo a gaiola
Vai sair o Sol
improvisado e desorientado
Já temos tantas estrelas
e tantas luas submissas
que nom cabem no barco nem na noite
Juntaremos pássaros sem geografia
pra jogar com as distâncias
das suas asas amplexadoras
E os adeuses das nuvens
mudos e irremediáveis
E armaremos umha rede de ronseis
pra recobrar as saudades
com a sua viagem feita
polos oceanos do nosso coraçom.
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De quatro a quatro
SÓS
FOMOS ficando sós
o Mar o barco e mais nós
Roubarom-nos o Sol
O paquebote esmaltado
que cosia com linhas de fume
ágeis quadros sem marco
Roubarom-nos o vento
Aquele veleiro que se evadiu
pola corda frouxa do horizonte
Este oceano desatracou das costas
e os ventos da Roseta
orientarom-se ao esquecimento
As nossas soidades
vêm de tam longe
como as horas do relógio
Mas também sabemos a manobra
dos navios que fundeiam
a sotavento de umha singradura
No quadrante estantio das estrelas
ficou parada esta hora:
O cadáver do Mar
fijo do barco um cadaleito
Fume de Pipa Saudade
Noite Silêncio Frio
E ficamos nós sós
Sem o mar e sem o barco
nós.
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De quatro a quatro
… AO AFOGADO
JÁ CHE levaram os olhos
relingadores de lonjanias
e pescadores de profundidades
Já che levaram a voz
emalhados na furna giróvaga
por onde escoam as tempestades
Já che levaram os azos
emalhados m a rede sonora
das cordagens erectas
O vento ainda escovava
com as poutas de escuma
na xerfa
mais cadaleitos
Ias juntando soidades
Por um burato do Mar
chopa-ches um dia a buscar-te
A noiva goleta
enlutada de branco
que cose rotas esquecidas
acena no vento as suas velas
como esse pano das despedidas.
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De quatro a quatro
GUARDA DE 12 A 4
Envergada num mastro da Lua
aguarda-nos a meia noite
O sino de proa
comovida voz astral
zarpou vogando despedidas
Extraviarom-se os passos do Mar
nos vieiros do vento desertor
E perdeu-se pola popa
desamarrado
o ronsel
Fomo-nos transbordando
à cabotagem das constelações
Inventores de pseudo continentes
que imos descobrir
esculcamos as rotas
balizadas de luzeiros
Com um faro na mão
cronometramos o pulso das tormentas
que predizem os semáforos astrais
- Prepara-se um naufrágio
com a ausência cúmplice do Sol!
Vente ventinho do mar
Vente ventinho mareiro
Vente ventinho do mar
Vente nosso companheiro
(popular)
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De quatro a quatro
E as horas a sotavento
vam desviando-se de nós
A alba intrusa
bateu as quatro horas
Era o sino de proa
que tornava do Mar
a voz desarvorada
o velame frustrado.
RECALADA
ATOPAREMOS no peirão
as folhas evadidas
do almanaque dos nossos sonhos
As novas ruas de sempre
exibirám o escaparate
das mesmas noivas inéditas
Fumaremos nas pipas despetivas
todas as transeuntes
hostilidades mudas
O copo desbicado noutro porto
remataremo-lo aqui no mesmo bar
cabo do marinheiro desconhecido
que nos repete o mesmo
ubícuo sorriso loiro
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De quatro a quatro
Nos bordeis já sabem
que a nossa moeda
tem o anverso de ouro
e o reverso sentimental
Os ecos imprevistos
do nosso cantar sonâmbulo
apagarám os focos de madrugada
Manhã despertaremos
na ausência desta jornada
Esquivou-se umha folha
do diário efusivo
Éramos os espectadores
na prestidigitaçom
de umha hora artificial.
NAVY BAR
ESTE bar tem balances
E também está listo
pra se fazer à vela
Encherom-nos o copo
com toda a água do Mar
pra compor um cock-tail de horizontes
Pendurados das horas
atlas geográfico de esperantos
estam sem traduçom
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De quatro a quatro
E tatejam as pipas
com o ademám poliglota das bandeiras
Esse cantar improvisado
é o mesmo
que já se improvisou nalgures
Quem chegou avisando-nos
dessa cita nocturna que temos
com o vento ao N.E.
na encruzilhada das estrelas apagadas?
Aqui bebe de incógnito
o Marinheiro Desconhecido
- sem geografia nem literatura -
A noite dos naufrágios
com o seu braço salva-vidas
aferrará connosco umha vela de chuvascos
O copo derradeiro
estava cheio de despedidas
Polas ruas dispersas
iamo-nos fechando
cada um dentro da sua alta-mar
No repouso de algum copo
todas as noites naufraga o Bar.
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De quatro a quatro
BALADA DO PAILEBOTE BRANCO
ESCUITAVAMOS o vento
rindo-se malévolo
debaixo do seu disfarce
E também contou o barco
a história do piloto
e do gavieiro e a do rapaz
Vós já sabeis todo
Isso que dizem as estampas
do livro de Simbad
Mas ele contou-nos o resto
'Estreava o horizonte
umha largacia audaz'...
O barco foi percorrendo
as cicatrizes sentimentais
que lhe deixarom velhos navegantes
E os adeuses que leva na vela
gravados por miradas
tristes definitivas e distantes
Um dia fijo-se ao mar
com a parola ceifada nos lábios
E já nunca volveu
Agora eu busco um velho marinheiro
ou umha história do pailebote branco
ou qualquer outra cousa...
¿que sei eu!
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De quatro a quatro
Escuitávamos o vento
rindo-se malévolo
debaixo do seu disfarce
Mas a história do pailebote branco
nom a sabia o piloto
nem o gavieiro
nem o rapaz.
O CARTAFOL DO VENTO
O VENTO perdeu as folhas
do seu cartafol
- essas que os chuvascos
mecanógrafos
teclam no manual dos mastros?
As gaviotas nom têm quitassol
mas fam raudos equilíbrios
polo arame transparente
de todas as ortodrómicas do céu
O pailebote sem velas
- Serám essas que o vento
levou no seu cartafol?
também fai equilíbrios no ronsel
Com a boca aberta
- cai-lhe a baba -
está mirando-nos o babiom do Sol.
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De quatro a quatro
LIED OHNE WORTE
ABOIA um esbardar de marusias
tentando os céus sem atopar a Lua
Mas a Lua esta noite
desertou dos almanaques
Murcha entre duas folhas
- violetas pensamentos -
do manual póstumo
- outono de madrigais -
que versifiquei eu
Mansas vagas unânimes
reorganizam-se detrás do vento
Quando passe a rafega derradeira
dirá-nos adeus
com o pano branco do gaf-tope
Alude a um fracasso
de folhas amarelas
e renova-se o sorriso dos mastros
sempre com as pólas novas e joviais
Noiva minha
vestida de lua
que romantizas
tam cursi
polo jardim!
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De quatro a quatro
Sentei-me a proa
fumando a minha pipa
Mas outra noite pensarei em ti.
A ESTRELA DESCONHECIDA
EU VIN-TE decote acovadada
naquela fenestra
- tam a trasmão!
que pendura-ches de umha constelaçom
O horizonte arrincava cada dia
pra ti
a folha de almanaque de umha vela
Mas nunca se emalhou
na falsa rede dos mapas celestes
a tua loira virginidade
Cúmplice a noite
engaiolava o sextante dos marinhos
ingênuas perversões catalogadas
Viúva reiterada de todos os vinte anos
que os marinheiros repetem
cada volta que afogam
Endejamais souberom os cadáveres sem rumo
que ti os amortalhavas com o teu olhar
Emproáramos a meia noite
A sotavento da nossa singradura
vai decote umha nuvem desarvorada
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De quatro a quatro
Com a sua esponja de sombra
apagou pra sempre o teu mudo perfil
A alba nova surpreendeu-me
cacheando entre os luzeiros
umha despedida que se me perdeu.
CALMA DE 6 A 8
NA XERFA esvara o sol
trás das ausentes marulhadas
As velas frouxas
póstumo quebra-mar dos chuvascos
cosem os farrapos com fios de sol morno
Umha gaviota ventríloqua
peteirando no ouro imorredoiro
que os afogados deixarom aboiando
O sol-pôr fechara-se
dentro do mais intacto disco
As nossas pipas atentas
acovadadas ao lazer
Um intre o vapor intruso
coseu de presa a relinga do horizonte
Além do mundo
está o castelo de proa
Há um marinheiro velho
que vem de volta de todos os naufrágios
E trai o fio das aventuras
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De quatro a quatro
- nom se sabe o remate-
que as dársenas estantias
virom evadir-se a bardo das bric-barcas
- O capitam Pardeiro
nom afogou
'Perdeu-se' quand'o bergantim-
Ajustou-se a surdina
largacia como umha nossa olhada
à buzina do Mar
Tremela na mareta leviana
um remorso ou pesadelo
O navio
as mãos trincadas
vai borrando com os pés o ronsel
Já nom virá o vento
por que a noite fechou todas as portas
- Essa luz desvelada
na fenestra da Lua-
Ao bater a hora imprevista do relevo
coseu as adoas soltas
do toque das Trindades
O céu foi-se abuado e friorento
Todo finou
Oh milagre!
As mesmas estrelas
ainda estam
ainda estam ali.
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De quatro a quatro
DESCOBERTA
QUEM fechou esta noite
a fenestra azul do Mar?
Este Mar fugitivo
de todas as ribeiras
Náufrago do nevoeiro
que desviou o rumo
dos pontos cardinais
Ficarom as gaviotas
três singraduras a sotavento
Desorientarom-se os arroazes
intrusos e impunes
Hoje ninguém dá com a relinga
pra aferrar os panos do horizonte
E este serão tam-pouco
engaiolaremos o Sol
O Sol era um pássaro triste
que se pousava no penol.
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De quatro a quatro
LAZER
GAVIOTAS que levam no peteiro
as cartas dos marinheiros namorados
Vapores burgueses
que nos oferecem o remborque do seu fume
Mas as nossas velas encalmadas
espantam a bandaços
as horas como moscas
Vigo está tam longe
que se desorientarom as cartas marinhas
Umha pipa mais
de vagar
deica ver a hora que dá o relógio
Entra umha fria de vento?
– mui bem!
–
Enrolara-se a pausa
nas suas espirais
E nom sabemos
(abonda já de parênteses)
acrescentar-nos outra volta
a todo isso que se nos esqueceu.
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De quatro a quatro
S.O.S.
TODOS pressentíamos que a noite
preparava algum sofisma
E o faro extraviado
dava o S-O-S
no morse
- clave Orion -
das estrelas
Esses braços abertos da vela
som os mesmos do vento
que se despreguiçou
Na mão do Mar esquecediço
os luzeiros peteiram a bicada
A estrela dos cabarets
com um cigarro nos lábios
pede lume aos quatro pontos cardinais
Pola Galáxia cheia de seixos
um astro velho vai com o seu farol
Que dam os almanaques
pra esta meia-noite?
Mas ainda nom sabemos
de que banda vai chegar a meia-noite
E o faro extraviado
vai esgotar o seu stock de S-O-S.
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De quatro a quatro
AO REVERSO DA NOITE
LUZEIROS degolados
dessangram-se de ouro no Mar
De par de nós
a Lua
fai ronseis infecundos
Entanto sonea a mareta
vai folheando no libro das velas
Irredentos velames exaustos
resignados a pendurar da cruz
Estrelas inconscientes
mecanizam o obsesso tic-tac
A água toda dos oceanos
ensumiu-se numha bágoa
E o pano branco do novo dia
enjugará os olhos do céu.
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De quatro a quatro
ADEUS
Entre a calima
transpondo o meu olhar
esquivou-se o velame
Deixou-nos a baia
cheia da sua ausência
e a manhã sem perspectiva
Agora em terra
arredado de mim mesmo
por um oceano de singraduras
o vento da Ria
vai virando a folha de cada emoçom
- O Sol indiferente
Sereia aguardentosa dos vapores
um retraio de fume
no quebra-mar da paisagem
As engrenagens da grua
esmoem a manhã morna -
Debaixo dos meus passos
surge o ronsel da Vila natal
Ela com os braços cheios de sono
teima salvar-me de um naufrágio antigo
E os meus ouvidos incautos
querem dormir no colo
das cantigas velhas
Eu cacheava todos os segredos
das minhas mãos valdeiras
por que algo foi que se me perdeu no Mar
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De quatro a quatro
… alguém que chora dentro de mim
por aquele outro eu
que se vai no veleiro
pra sempre
como um morto
com o peso eterno de todos os adeuses.
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