Post on 10-Dec-2015
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Luciana Eastwood Romagnolli
Dramaturgias conviviais: evidenciação do convívio e implicação do espectador no
acontecimento teatral
O convívio pode ser considerado um fundamento do teatro: a copresença de
atores e espectadores partilhando um mesmo espaço-tempo, numa zona de experiência
em comum (DUBATTI, 2007). Contudo, há espetáculos em que esse aspecto do
acontecimento teatral é trazido à superfície, colocado em evidência e problematizado na
dramaturgia – entendida aqui como as conexões de efeitos e sentidos proporcionadas
por elementos cênicos como atuação, texto, cenário, iluminação etc (ROMAGNOLLI,
2013). Uma dramaturgia convivial, portanto, poderia ser provisoriamente definida como
aquela em que o espectador está. Trata-se de uma tautologia deliberada, considerando
que no teatro de quarta parede, por exemplo, o teatro se realiza como se o espectador
não estivesse ali, pois sua presença é apagada pelas atuações e demais componentes da
encenação. Portanto, não basta que o espectador esteja, mas que o seu estar seja
mutuamente reconhecido por atores e espectadores dentro da convenção cênica. Com
maior precisão, seria possível propor a definição de dramaturga convivial como aquela
em que se joga com a presença do espectador – ciente de que toda presença é
copresença em relação a algo, no caso, aos outros espectadores e aos artistas.
Para iluminar essas distinções, recorro a uma analogia com a classificação
forjada pela teórica alemã Erika Fischer-Lichte sobre os graus de presença. O primeiro
seria o “conceito fraco de presença”, relativo a estar “aqui” e “diante do olhar atento de
um outro” (2012, p. 106). Corresponde ao conceito fraco de convívio teatral, isto é, ao
estarem diante do olhar um do outro atores e espectadores. Eis a base da grande maioria
das composições teatrais, salvo exceções fronteiriças com o vídeo, o cinema e a
instalação. O segundo grau seria o “conceito forte de presença”, uma qualidade
performativa definida pela “habilidade do ator em ocupar e comandar o espaço e atrair a
atenção ininterrupta dos espectadores”, como uma fonte de energia que proporciona
também ao espectador a sensação de “presentificação” (2012, p. 108). Em termos de
convívio teatral, é possível comparar a espetáculos que rompem a quarta parede e
interpelam diretamente o espectador, seja por olhares, gestos ou palavras que
evidenciam o convívio. Nessa listagem, entram os textos performativos, com elementos
dêiticos como “aqui” e” agora”, e a ênfase no eixo extraficcional (BAUMGARTEL,
2011). Entre os muitos exemplos na cena contemporânea brasileira, é possível citar os
espetáculos “Vida”, da Companhia Brasileira de Teatro; “Amores Surdos”, do
Espanca!; “A Primeira Vista”, de Enrique Diaz; “Corte Seco”, de Christiane Jatahy,
entre tantos outros.
Por fim, segundo Fischer-Lichte, a PRESENÇA no sentido radical, grafada em
maiúsculas, “marca a emergência de algo muito ordinário e torna isso um evento: a
natureza dos seres humanos como mentes corporificadas. Então, a existência ordinária é
experimentada como extraordinária – como transformada e até transfigurada”
(FISCHER-LICHTE, 2012: 116). Sem almejar um paralelo perfeito, o sentido radical de
convívio pode ser definido como aquele em que o ordinário da função do espectador é
transfigurado por um gesto relacional (BOURRIAUD, 2009), que o convoca como
participante do acontecimento teatral, seja porque lhe atribuem um papel e/ou tarefas
durante o espetáculo, ou pela demanda por resquícios de memória e outras
informações/sentimentos pessoais que o impliquem diretamente na construção
dramatúrgica. É o caso de “VemVai – Caminho dos Mortos”, da Cia. Livre (RJ),
quando o espectador é incitado a queimar um boneco de papel ao qual atribuíra sentidos
pessoais; de “Talvez Eu me Despeça”, da Cia. Afeta (MG), que se configura como uma
celebração coletiva de adeus e na qual o espectador é convidado a abraçar a atriz e a
comer bolo; de “A Festa”, do grupo Opovoempé (SP), quando as atrizes calculam
quantos dias cada espectador já viveu até aquele momento e perguntam o nome da
parente mais velha que conheceram; ou de “O Espelho”, da mesma companhia, em cuja
mesa de café sentam-se atrizes e espectadores para uma conversa comum sobre
memórias de infância, e os espectadores são indagados sobre inquietações de seu
momento atual de vida; de “Fábrica de Nuves” e “Clínica do Sono”, dirigidas por
Daniel Toledo (MG), em que o espectador é tratado como aspirante a um emprego; de
“Domingo”, da Cida Falabella (MG), que recebe o público em sua casa e serve-lhe café
e broa; ou ainda de “E Se Elas Fossem para Moscou?”, da Cia. Vértice (RJ), em que a
plateia assume o papel de convidados para uma festa de aniversário e pode dançar no
palco. Mais do que meras estratégias de interação, essas são formas relacionais de
reconfigurar o lugar do espectador no acontecimento teatral.
Este projeto de pesquisa de doutoramento propõe o conceito operativo de
dramaturgia convivial para investigação e análise de dramaturgias textuais e
espetaculares que impliquem o espectador e reforcem a criação de uma zona de
experiência e afetação mútua.
BAUMGARTEL, Stephan. Estruturas Comunicativas na Textualidade Teatral Além
do Drama Rigoroso – a crise do drama em dois textos teatrais brasileiros do fim dos anos
80. In: Sala Preta. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Eca/USP, São
Paulo, nº 11, 2011. Disponível em
http://www.revistasalapreta.com.br/index.php/salapreta/article/view /1/372. Acesso em
29 jun 2015.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
DUBATTI, Jorge. Filosofia del Teatro I: convivio, experiencia, subjetividade. Buenos Aires: Atuel, 2007.
FISCHER-LICHTE, Erika. Appearing as Embodied Mind – defining a week, a strong and a radical concept of presence. In: Archaeologies of Presence: Art, performance and the persistence of being. Org. GIANNACHI, Gabriela, KAYE, Nick e SHANKS, Michael. New York: Routledge, 2012.
ROMAGNOLLI, Luciana. Convívio e Presença como Dramaturgia. A dimensão da materialidade e do encontro nas criações da Companhia Brasileira de Teatro. Dissertação. UFMG, 2013. 157 p. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/JSSS-9EGMC8/convivio_e_presen_a_como_dramaturgia.pdf?sequence=1 Acesso em 29 jun 2015.