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UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA
Contextos de Nestor Duarte - Poltica, Sociologia e Direito
Diego Rafael Ambrosini
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica doDepartamento de Cincia Poltica daFaculdade de Filosofia, Letras e CinciasHumanas da Universidade de So Paulo,para obteno do ttulo de Doutor.
Orientador: Prof. Dr. Bernardo Ricupero
So Paulo2011
VERSO CORRIGIDA
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RESUMO
Nas pginas de A Ordem Privada e a Organizao Poltica Nacional (1939), Nestor Duarte
dialoga com vrios dos ensaios de interpretao do Brasil publicados ao longo dos anos
trinta. Neste trabalho destacarei trs das questes abordadas pelo autor, contrastando sua
anlise com as posies adotadas por outros participantes do debate daquela dcada. Eis os
pontos examinados: i) seu diagnstico crtico da permanncia de uma lgica privatista na
formao histrica da organizao social brasileira; ii) sua proposta normativa do Estado
como dimenso pblica de convivncia; e iii) sua defesa da democracia como processo
preferencial de pedagogia poltica. Dessas teses de Duarte emerge uma cida crtica do
regime forte e centralizado do Estado Novo, em claro antagonismo com o proposto, por
exemplo, por um pensador como Oliveira Vianna.
Palavras-chave: Nestor Duarte, Intrpretes do Brasil, Sociedade, Estado e Democracia.
ABSTRACT
In the pages of his book A Ordem Privada e a Organizao Poltica Nacional (1939),
Nestor Duarte establishes a dialog with many of the so called interpretations of Brazil
essays, published during the 1930s. In the present work, I have selected three questions
dealt by Duarte in his essay, and tried to contrast them with positions preferred by other
authors of the period. The points examined are: i) his critical diagnosis of the permanence
of a privatist logic in the historical formation of brazilian social organization; ii) his
normative proposal of a State understood as a public or communal dimension; e iii) his
defence of democracy as a process of political pedagogy. From Duartes thesis emerges a
acid critique of the strong and centralized State of the Estado Novo regime, in clear
opposition with the proposals of a writer such as Oliveira Vianna, for instance.
Keywords: Nestor Duarte, Interpreters of Brazil, Society, State, Democracy.
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NDICE
Agradecimentos ................................................................................................................... 4
I. Introduo Nestor Duarte e o cnone do Pensamento Brasileiro ............................ 5
II. Biografia, Histria, Poltica Um percurso do sculo XX ....................................... 13
Mtodo biogrfico e imaginao sociolgica. Primeiros anos: do serto aolitoral. Dcada de 1920: bacharel, jornalista, professor, deputado. De 1930 a1945: idas e vindas na poltica e na academia.
III. O Ensasta Nestor Duarte entre os intpretes do Brasil .................................. 54
O ensaio como forma de pensar o Brasil. Leituras e releituras de um debate.O diagnstico histrico: nossa Ordem Privada. A Organizao PolticaNacional: o Estado como comunidade poltica. A democracia como processopreferencial de pedagogia poltica. Prognsticos: o problema polticobrasileiro e perspectivas de soluo.
IV. O Jurista Debatendo o Direito, o Estado e a Sociedade ....................................... 95
O concurso para a cadeira de Introduo Cincia do Direito na dcada de1930. A propedutica jurdica no Brasil: trajetria histrica. A FaculdadeLivre de Direito da Bahia e o sociologismo jurdico. Epistemologia doDireito: atitude metafsica e atitude positivo-experimental. Ontologia doDireito: Direito Natural e Direito Positivo. O Direito como fato social. Asrelaes entre o Direito e o poder poltico. O Estado de Direito: disciplinapor coordenao ou por subordinao?
V. Palavras Finais ............................................................................................................ 135
Bibliografia ...................................................................................................................... 139
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AGRADECIMENTOS
A elaborao deste texto, como quase todo labor intelectual, foi uma empreitada
bastante solitria. Nestor Duarte, meu principal companheiro nessa jornada atribulada, certa
vez disse que o livro, como o filho, se faz em segredo. Apesar disto, eu no poderia
deixar de registrar meus agradecimentos queles que, de alguma maneira, foram
importantes para a sua realizao.
Sou grato a meus pais, Licia e Jorge, que mesmo estando longe, foram grandes
incentivadores desde o incio e souberam cobrar empenho quando necessrio.
Ana Montoia, minha querida sogra, foi um porto seguro no agitado oceano das
questes da Poltica, a maior parte do tempo, e muito especialmente quando me acolheu em
um dos momentos crticos da redao desse trabalho.
Minha querida Juliana foi responsvel por tornar o passar dos dias mais alegre ao
longo desses anos, e mais suportvel na fase final.
Dentre os amigos, gostaria de nomear trs, que sempre foram meus interlocutores
intelectuais, ainda que muitas vezes tenhamos nos afastado em demasia: Walter Mesquita
Hupsel, Douglas Guimares Leite e Demtrio Gaspari Cirne de Toledo.
No Departamento de Cincia Poltica, no h como deixar de registrar meu
profundo agradecimento a Gildo Maral Brando (in memoriam), meu orientador no
mestrado e durante boa parte do doutorado, que nos deixou to triste e repentinamente. Se
Gildo no tivesse depositado confiana em mim h quase dez anos, quando cheguei ao
DCP vindo de outra rea do conhecimento, de outra universidade, de outra regio do pas,
minha vida certamente seria diferente, agora.
Agradeo tambm a Bernardo Ricupero, que me acolheu institucionalmente depois
do falecimento de Gildo, assim como a todos os demais membros do Projeto Temtico
Fapesp Linhagens do Pensamento Poltico Brasileiro, do qual fiz parte ao longo dos
ltimos anos (prefiro no citar nomes aqui, para no cometer injustias esquecendo
algum). A troca de conhecimentos e experincias foi essencial em muitos momentos.
Por fim, preciso reconhecer que sem o auxlio financeiro da CAPES, este pequeno
volume que o leitor tem em mos no existiria.
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I. Introduo Nestor Duarte e o cnone do Pensamento Brasileiro
Nas ltimas duas ou trs dcadas, acumulou-se uma vasta literatura crtica na rea
de pesquisa que ficou conhecida como Pensamento Poltico e Social Brasileiro. Localizado
em uma zona fronteiria para a qual confluem diversas das disciplinas do campo das ditas
humanidades (como a Poltica, a Sociologia, a Histria, a Antropologia e a Filosofia,
etc.), o estudo do Pensamento Brasileiro tem por objeto, ao menos na maior parte de seus
esforos, aquelas obras e autores reunidos no cnone das chamadas interpretaes do
Brasil, caractersticas de um perodo sabidamente frtil de nossa histria intelectual, tal
como foi o ciclo ensastico das dcadas de 1920 e 1930. O livro A Ordem Privada e a
Organizao Poltica Nacional1, de autoria do jurista e poltico baiano Nestor Duarte, por
muitos considerado, ao lado de congneres como Francisco Jos de Oliveira Vianna
(Populaes Meridionais do Brasil e O Idealismo da Constituio), Gilberto Freyre (Casa
Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos), Srgio Buarque de Holanda (Razes do Brasil),
Caio Prado Jnior (Evoluo Poltica do Brasil), Paulo Prado (Retrato do Brasil) e
Azevedo Amaral (O Estado Autoritrio e a Realidade Nacional) e a listagem poderia
prosseguir sem maiores dificuldades um dos grandes clssicos de nossa literatura scio-
histrico-poltica desse perodo. Porm, apesar de freqentemente includa nesse cnone, a
obra de Nestor Duarte ainda se ressente da inexistncia de um estudo monogrfico mais
aprofundado, munido do ferramental terico-analtico acumulado nos anos de
institucionalizao acadmica das cincias humanas em nosso pas.
1 2 edio. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966. A primeira edio de 1939. H, ainda, uma 3 edio, mais recente (Braslia: Ministrio da Justia, 1997).
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O historiador Jos Murilo de Carvalho um dos que vm chamando a ateno para
essa lacuna, como fez no estudo introdutrio que escreveu para a reedio de Populaes
Meridionais do Brasil, de Oliveira Vianna2. Do mesmo modo, o cientista poltico Adrin
Gurza Lavalle, em trabalho sobre a conformao da noo de ethos pblico no pensamento
brasileiro, notou que a obra de Duarte est submetida a estranho esquecimento3. J o
tambm cientista poltico Luiz Guilherme Piva, observou que Nestor Duarte o menos
discutido dos nossos autores. Nem mesmo aparece na maioria dos manuais sobre o
pensamento poltico brasileiro4. O trabalho de Piva, alis, um dos poucos publicados em
anos recentes a oferecer uma leitura mais detida de A Ordem Privada e a Organizao
Poltica Nacional, mas faz isso apenas na moldura do quadro analtico que procura montar,
colocando Duarte ao lado de mais trs importantes autores do perodo, o que parece estar
longe de ser suficiente para sanar a lacuna interpretativa que ele prprio afirma existir
acerca do autor e de sua obra. Mesmo nos programas de ps-graduao, apenas algumas
poucas pesquisas recentes, ainda no publicadas em livro, se ocuparam de Duarte5.
Essa uma lacuna que ainda cumpre preencher, portanto. At o momento, o mais
comum encontrarmos o nome de Nestor Duarte sendo citado en passant como um dos
principais adeptos da tese da organizao feudal da sociedade brasileira, um autor que
enxergaria esta ltima sempre marcada pela constncia do esprito privatista e pelo
insuficiente estabelecimento do Estado, e que, por isso, geralmente contraposto ao
Raymundo Faoro de Os Donos do Poder. Parece haver, alis, na literatura especializada,
2 Em: Silviano Santiago (org.). Intrpretes do Brasil.. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, p. 899.3 Adrin Gurza Lavalle. Vida Pblica e Identidade Nacional Leituras Brasileiras. So Paulo: EditoraGlobo, 2004, p. 98.4 Luiz Guilherme Piva. Ladrilhadores e Semeadores A modernizao brasileira no pensamento poltico deOliveira Vianna, Srgio Buarque de Holanda, Azevedo Amaral e Nestor Duarte (1920 1940). So Paulo:Editora 34 e Departamento de Cincia Poltica da USP, 2000, p. 277.5 Osmir Dombrowski. Reforma Agrria no Brasil primeiros projetos (1945 1955). Dissertao demestrado. Departamento de Cincia Poltica da Universidade de So Paulo, 1998; Giselle Laguardia Valente.Nestor Duarte: Liberalismo e Reformas Sociais na Construo da Nao Republicana. Dissertao deMestrado. Departamento de Histria da Universidade Federal de Minas Gerais, 2004; Matheus Silveira Lima.Razes do pensamento poltico de Nestor Duarte: um estudo da ordem privada. Dissertao de Mestrado.Departamento de Cincias Sociais da Universidade Federal de So Carlos, 2004; Rafael Gomes. O Privatismoe a Ordem Privada A Leitura do Brasil na Sociologia Poltica de Nestor Duarte. Dissertao de Mestrado.Departamento de Cincia Poltica da Universidade de So Paulo, 2007; e Rogrio dos Santos Frana.Representao do Sertanejo e Idia de Brasil Moderno em Nestor Duarte. Dissertao de Mestrado.Departamento de Histria da Universidade Federal de Pernambuco, 2010.
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certa naturalizao dessa oposio Duarte-Faoro6. Ainda que tal antagonismo possa estar,
em linhas gerais, correto, parece-nos inegvel seu carter reducionista. Quando nada,
porque o Estado de que fala Duarte no o mesmo de Faoro, no to-somente um
estamento burocrtico parasitrio da sociedade. No nem mesmo ou, pelo menos, no
apenas um aparato institucional organizado e operante.
No conceito desenvolvido em A Ordem Privada, o Estado deve ser primordialmente
entendido como o ente assegurador, por definio, da dimenso pblica das relaes
sociais, um ente cuja expresso mais prpria e justa o termo res publica, a coisa pblica,
que ele [o Estado] traduz e representa7. nesse sentido de comunidade poltica,
portanto, que Duarte define o Estado, e a partir desse pressuposto que ele monta sua
crtica tese, recorrente, da suposta necessidade de centralizao do poder para a devida
implantao operacional do Estado brasileiro (tese que est no ncleo da argumentao de
Oliveira Vianna, por exemplo).
Portanto, se a conceitualizao do Estado proposta por Duarte possui caractersticas
que a afastam da imagem majoritariamente negativa esboada por Faoro, nem por isso,
como espero ter a oportunidade de demonstrar ao longo desse trabalho, ela se aproxima
daquela oposta, de um Estado autoritrio e tutelar da sociedade, sada da lavra de autores
como Oliveira Vianna e outros, identificada por Bolvar Lamounier como uma ideologia
de Estado8. Mas importante anotar, desde j, que Duarte elabora essa sua definio do
Estado qua espao pblico com uma disposio claramente normativa: em outras palavras,
seu Estado antes um objetivo a ser alcanado do que algo que ele percebesse como tendo
6 Cf., dentre outros: Fernando Henrique Cardoso. Autoritarismo e Democratizao. Rio de Janeiro: Paz eterra, 1975; Simon Schwartzman. Bases do Autoritarismo Brasileiro. 2 edio aumentada. Rio de Janeiro:Editora Campus, 1982; Ilmar Rohloff de Mattos. O Tempo Saquarema A Formao do Estado Imperial.So Paulo: Hucitec e INL, 1987; ngela de Castro Gomes e Marieta de Moraes Ferreira. PrimeiraRepblica um balano historiogrfico. Em: Estudos Histricos. Vol. 2, n. 4. Rio de Janeiro:CPDOC/FGV, 1989, pp. 244-280; Jos Murilo de Carvalho. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: umadiscusso conceitual. Em: Pontos e Bordados Escritos de Histria e Poltica. Belo Horizonte: Editora daUFMG, 1998, pp. 130-153; Luiz Carlos Bresser-Pereira. Sociedade Civil: sua democratizao para areforma do Estado. Em: _______, Jorge Wilhelm e Lourdes Sola (orgs.). Sociedade e Estado emTransformao. So Paulo e Braslia: Unesp e Enap, 1999, pp. 67-116; Luiz Werneck Viana. Weber e aInterpretao do Brasil. Em: Novos Estudos Cebrap, n. 53. So Paulo: Cebrap, 1999; Fbio WanderleyReis. Brasil Estado e Sociedade em Perspectiva. Em: ______. Mercado e Utopia Teoria Poltica eSociedade Brasileira. So Paulo: Edusp, 2000.7 Duarte, A Ordem Privada, p. 15.8 Bolvar Lamounier. Formao de um Pensamento Poltico Autoritrio na Primeira Repblica UmaInterpretao. Em: Boris Fausto (org.). Histria Geral da Civilizao Brasileira Tomo III O BrasilRepublicano. Vol. 2 Sociedade e Instituies. So Paulo: Difel, 1977.
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uma existncia efetiva na realidade brasileira da poca em que escreveu. Esta ltima,
segundo seu diagnstico, ainda estaria organizada a partir de outra lgica, distinta. Por isso,
o cerne de sua interpretao do Brasil gira mesmo em torno da idia de ordem privada
e de outras que lhe so mais ou menos prximas, como as noes de feudalismo, de
familialismo e de patriarcalismo enfim, de todo um sistema de domnio a deformar a
natureza do poder poltico, para usar suas palavras9. Embora Duarte esteja longe de ser o
nico autor a perceber uma forte tendncia corrupo do pblico pelo privado na
formao histrica do Estado e da sociedade brasileiros10, de se notar o quanto esses
fenmenos, em seu texto, assumem centralidade e uma conotao poltica bastante
acentuada.
Alm disso, ainda a partir da noo de Estado como dimenso pblica por
excelncia que Duarte funda sua defesa do Estado democrtico, que ele enxerga como o
de poder educacional mais vivo e direto para interessar uma populao [] nos
acontecimentos polticos e problemas de uma nao11. Seu ideal de pedagogia
democrtica cumpre, alis, acrescentar uma raridade em nossa historiografia poltica,
em geral polarizada por vertentes de carter liberal-oligrquico ou autoritrio-
modernizador, ambas pouco afeitas, para dizer o mnimo, democracia enquanto sistema
poltico. Bolvar Lamounier, por exemplo, em trabalho recente, observa que a democracia,
na literatura poltica brasileira, quase sempre esteve submetida a um ceticismo mal-
disfarado, que ele chama de discurso pirrnico:
desde seus primrdios, no sculo 19, a democracia representativa [noBrasil] foi questionada por polticos, intelectuais e jornalistas, que a viamcomo uma superestrutura importada, idia fora do lugar, fruto doidealismo utpico da elite dirigente ou, pior que isso, cnico instrumentode dominao a servio da classe latifundiria. Sutil e moderado emMachado de Assis e Srgio Buarque de Holanda, caudaloso e violento em
9 Duarte, op. cit., p. 124.10 Sobre esse aspecto, cito Wanderley Guilherme dos Santos, em seu ensaio A prxis liberal no Brasil: atemtica da privatizao do pblico, soberbamente inaugurada por Jos de Alencar, sobretudo em A reformaEleitoral (1874), e retomada por Nestor Duarte em A Ordem Privada e a Organizao Poltica Nacional(1939), teve continuidade em Coronelismo, Enxada e Voto, de Vtor Nunes Leal, e constitui um dos tpicosmais relevantes das cincias sociais contemporneas. Em: Dcadas de Espanto e uma Apologia Democtica.Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 61. Ainda acerca do mesmo ponto, v. tambm as colocaes de Adrin GurzaLavalle, op. cit., p. 21-22.11 Duarte, op. cit., p. 107.
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9
Joo Francisco Lisboa, Oliveira Vianna e tantos outros, o discursopirrnico permeia ainda hoje tanto a linguagem intelectual quanto apopular, podendo sem dvida ser considerado como um dos traos maisimportantes de nossa cultura poltica.12
Nestor Duarte certamente no comparte desse discurso pirrnico sobre a
democracia a que alude Lamounier. Pelo contrrio, para ele a democracia o mtodo
social ( sua a expresso) mais adequado para, superando a herana negativa de nossa
formao colonial, construir efetivamente, no Brasil, um Estado que funcione como uma
res publica, ou como instncia garantidora da dimenso pblica das relaes sociais,
polticas e econmicas em nosso pas.
curioso que, como veremos mais adiante, tanto Bolvar Lamounier quanto
Wanderley Guilherme dos Santos, sem dvida dois de nossos principais investigadores
polticos, pouca ateno tenham dado a essa marcante presena de uma apologia
democrtica na obra de Nestor Duarte, especialmente em seu ensaio sobre A Ordem
Privada. No que no a tenham notado, mas ambos preferem concentrar o foco de seus
comentrios sobre o diagnstico da hipertrofia da ordem privada e da relativa fragilidade
ou inexistncia do Estado nacional no Brasil, e deixam um pouco de lado a contundente
defesa da democracia como regime poltico e como concepo cultural da vida em
sociedade que caracterstica do pensamento de Duarte13. Em contrapartida, as leituras
mais recentes da obra do autor, feitas no mbito dos programas de ps-graduao durante
as dcadas de 1990 e 2000, em geral do amplo destaque ao carter essencialmente
democrtico das postulaes de Duarte.
Acredito que a circunstncia de estarem, Wanderley e Bolvar, pesquisando e
escrevendo no final da dcada de 1970, ainda com o pas vivendo sob o regime de exceo
dos governos militares, pesou para que ambos estivessem mais preocupados em
compreender as fundaes tericas da cultura autoritria que caracterizou boa parte de
nossa histria poltica, e por isso se voltassem inicialmente para os trabalhos de autores
12 Bolvar Lamounier. Da Independncia a Lula Dois Sculos de Poltica Brasileira. So Paulo: AuguriumEditora, 2005, p. 15.13 V. Bolvar Lamounier. A Cincia Poltica no Brasil: roteiro para um balano crtico. Em: ______ (org.).A Cincia Poltica nos Anos 80. Braslia: Editora da UnB, 1982, p. 413; e Paradigma e Histria a OrdemBurguesa na Imaginao Social Brasileira. Em: ______. Ordem Burguesa e Liberalismo Poltico. SoPaulo: Duas Cidades, 1978, p. 48.
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como Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e Francisco Campos, dentre outros. Nesse quadro,
a perorao democrtica de Duarte permaneceu um tanto ofuscada, na sombra, at poder
ser revista com mais clareza a partir das pesquisas realizadas nos anos 1990 e 2000. No
caso de Lamounier, surpreende particularmente a falta de olho para a nfase democrtica
dos escritos de Duarte, uma vez que a argumentao do jurista baiano, se levada em conta,
poderia fornecer grandes subsdios para apoiar algumas das principais noes que
Lamounier vem incluindo em seu inventrio terico nas ltimas dcadas, tais como a
importncia atribuda a certos formalismos da representao poltico-institucional, a idia
de processo envolvida no conceito de construo ou crafting institucional e a
compreenso de que o Estado possui dimenses hardware e software, ambas
igualmente importantes para a estabilizao de sua autoridade14.
Advogado, jurista e professor da Faculdade Livre de Direito da Bahia, romancista,
poltico (deputado estadual e federal em vrias legislaturas), sempre ligado a plataformas
to polmicas quanto progressistas, como a reforma agrria, o anti-clericalismo e o
divrcio, a biografia de Nestor Duarte rica e variada. Como vrios outros de sua gerao,
ele foi um escritor multi-facetado, um polgrafo, capaz de passear com propriedade por
diversos campos do fazer intelectual. Alm do ensaio A Ordem Privada, publicou ainda
uma tese e alguns artigos esparsos sobre teoria geral do Direito15, trs romances16, alm de
textos de combate, frutos de sua atuao como poltico profissional (artigos de jornal,
14 Cf. Bolvar Lamounier. Representao Poltica A Importncia de Certos Formalismos. Em: ________,Francisco Weffort e Maria Victria Benevides (orgs.). Direito, Cidadania e Participao. So Paulo: T. AQueiroz, 1981; Ruy Barbosa e a Construo Institucional da Democracia Brasileira. Em: ________. RuyBarbosa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999; e Da Independncia a Lula, j citado.15 Direito Noo e Norma. Tese de Concurso na Faculdade de Direito da Bahia. Bahia: Oficinas DoisMundos, 1933; Os Fundamentos Morais da Ordem Jurdica Atual. Em: Revista de Faculdade de Direitoda Bahia, v. 9, 1934; A Lei no Conceito de Duguit. Em: Revista de Faculdade de Direito da Bahia, v. 10,1935; Os Fundamentos do Direito Natural e as Direes do Positivismo Jurdico. Conferncia. Em:Revista de Faculdade de Direito da Bahia, v. 16, 1941. Tambm em: Separata da Revista Frum do Institutoda Ordem dos Advogados da Bahia. Salvador: Tipografia Naval, 1942; Ruy e o Processo CulturalDemocrtico. Em: Revista de Faculdade de Direito da Bahia, v. 19, 1944; O Princpio da Igualdadeperante a Lei. Em: Revista da Faculdade de Direito da Bahia, v. 28, 1953. Tambm em: Revista Forense,vol. 156, ano 51, fascculos 617 e 618. Novembro-Dezembro de 1954.16 Gado Humano. 1 edio. Rio de Janeiro: Pongetti, 1936. 2 edio. Salvador: Secretaria de Cultura eTurismo, Conselho Estadual de Cultura, EGBa, 1998.; Tempos Temerrios. 1 edio. Rio de Janeiro: JosOlympio, 1958. 2 edio. Salvador: Assemblia Legislativa da Bahia, 2008; Cavalo de Deus. Rio de Janeiro:Livraria Jos Olympio Editora, 1968.
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discursos parlamentares, projetos legislativos, etc.)17. Apesar dessa variedade nos formatos
textuais utilizados pelo autor, creio ser possvel encontrar certas permanncias em sua obra,
na medida em que toda ela gira, de um modo ou de outro, em torno de uma reflexo sobre a
poltica, suas principais problemticas e seu cnone de autores e obras de referncia e,
principalmente, sobre a realidade scio-poltica brasileira.
Nos trs captulos em que se divide este trabalho, pretendo abordar os principais
aspectos do pensamento poltico, social e jurdico de Nestor Duarte, contribuindo, espero,
para enriquecer a compreenso de sua obra e alargar o espectro de suas possveis
aproximaes ou distanciamentos em relao a outros autores importantes do cnone do
pensamento poltico e social brasileiro, em especial seus contemporneos da dcada de
1930, como Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Srgio Buarque de Holanda e Caio Prado
Jnior, dentre outros. Com isso, espero emprestar uma maior complexidade s leituras
redutoras a que j me referi antes, que enxergam Duarte apenas como o feudalista
contraposto a Faoro, ou como o terico da ordem privada e do Estado incipiente, que ,
por isso, s vezes vinculado a Oliveira Vianna e demais autoritrios.
No primeiro desses captulos, tento reconstruir a trajetria biogrfica de Nestor
Duarte, procurando relacion-la com o contexto histrico e social mais amplo no qual ele
estava inserido. Para tanto, busquei apoio terico no entendimento de que o esforo de
contextualizao condio necessria, ainda que no absoluta, para compreender um
determinado legado intelectual. Desse modo, acompanharemos as movimentaes de
Duarte desde sua infncia no interior da Bahia (que est na origem de sua importante
relao afetiva e compreensiva com o serto do pas), passando por sua juventude em
Salvador, pela formao acadmica na Faculdade de Direito da Bahia, e por sua posterior
adeso carreira docente, ao jornalismo e poltica partidria, em especial no que toca
sua oposio ao regime que se instala no pas depois da Revoluo de 1930 e com o golpe
17 Sobre a Concentrao Autonomista e o governo de Juracy Magalhes (1936), Os Direitos Sociais naConstituio Federal de Julho de 1934 (1937), Discurso de apresentao do anteprojeto sobre o sistemaeducacional do Estado da Bahia (1937), Protesto contra a condenao de Joo Mangabeira pelo Tribunalde Segurana Nacional (1937), A Distribuio de Classes e Raas na Bahia (1941), Discurso napassagem do fretro de Jos Joaquim Seabra pela Rua da Misericrdia (1942), todos republicados emWaldir Freitas de Oliveira. Nestor Duarte Inquietao e Rebeldia Uma Biografia Crtica. Salvador:Instituto Advogado Gonalo Porto de Souza, 2004; Disciplina por Subordinao e Disciplina porCoordenao. Em: Revista Seiva, ano 1, n. 2, janeiro de 1939; e A Reforma Agrria. Rio de Janeiro:Imprensa Nacional, 1953.
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do Estado Novo. O foco da narrativa, aqui, alm de se concentrar no mbito regional
baiano, no ultrapassar o perodo que vai at 1945, durante o qual o autor escreveu as
obras que sero analisadas nos dois captulos seguintes.
Em seguida, temos um captulo quase que inteiramente dedicado ao ensaio
sociolgico-historiogrfico publicado por Duarte em 1939, seu livro mais famoso, sua
interpretao do Brasil: A Ordem Privada e a Organizao Poltica Nacional. Aqui,
depois de uma introduo mais geral, em que discuto o ensaio como forma de conhecer e
compreender a realidade brasileira dos anos 1930, procuro destacar as principais
contribuies tericas de Duarte ao debate daquela dcada, como seu diagnstico crtico da
permanncia de uma lgica privatista na formao histrica da sociedade brasileira, sua
defesa normativa do Estado como res publica, ou como espao pblico de convivncia
entre seus integrantes, e sua apologia da democracia como processo preferencial de
pedagogia poltica. Dessas teses de Duarte emerge uma cida crtica do regime forte e
centralizado do regime instalado em 1937, em claro antagonismo com o proposto, por
exemplo, por um pensador como Oliveira Vianna, que acredito ser importante destacar.
Por fim, no ltimo captulo, ofereo um panorama dos (relativamente) poucos
visitados textos jurdicos de Nestor Duarte, que incluem sua tese de concurso, escrita em
1933 para concorrer recm-criada cadeira de Introduo Cincia do Direito, alm de
uma srie de artigos publicados em peridicos especializados ao longo dos anos. A reflexo
de Duarte, nesse particular, insere-se no horizonte das discusses travadas pelos juristas
brasileiros do perodo, que comportam questes sobre a epistemologia do Direito,
informada pela superao da metafsica e pela cristalizao do positivismo em nossa cultura
jurdica, e sobre a ontologia do fenmeno jurdico, em meio ao debate acerca das relaes
entre o Direito Natural e o Direito Positivo. Ademais, uma vez que a atuao acadmica de
Duarte se deu no mbito do chamado Direito Pblico, seus textos jurdicos muitas vezes se
aproximam da reflexo poltica e, portanto, nos oferecem uma alentada anlise das relaes
que forosamente se estabelecem entre Direito, Sociedade e Estado, culminando com sua
definio do Estado democrtico de Direito, que o autor preconiza como o melhor regime
de organizao poltica para auxiliar o pas a se estabilizar no rumo da efetiva
modernizao social e poltica.
Prossigamos, pois.
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II. Biografia, Histria e Poltica Um percurso do sculo XX
Nossa poca sobretudo este sculo, sculo XX tovivido, to definido, ainda que inacabado. tempo decomear a julg-lo, pelo que valha, para entendernosso prprio papel e destino, apagado ou no, nocurso das coisas humanas.
Nestor Duarte,Discurso de Posse na Academia de Letras da Bahia(1966)
Mtodo biogrfico e imaginao sociolgica
Lus Viana Filho (1908 - 1990), poltico e intelectual baiano que se tornou um dos
mais conhecidos bigrafos brasileiros de meados do sculo XX, procurou refletir a respeito
do gnero biogrfico em seu pequeno ensaio A Verdade na Biografia, de 1945. Nele, ao
tratar da polmica sobre a validade cientfica da biografia, Viana Filho valeu-se de um
argumento do historiador e filsofo italiano Benedetto Croce, que certa feita teria afirmado:
no preciso recorrer cincia e ao raciocnio para saber que nasci em tal ano e em tal
lugar, conforme atesta a minha certido de nascimento. E, se no o soubesse, em vo
bateria porta da cincia, que me poderia dizer o que nascer, o que o lugar, e o que o
tempo, mas nada me informaria sobre o conhecimento individual, a coisa nica que eu
desejaria nesse caso. Para o conterrneo e contemporneo de Nestor Duarte, portanto, a
biografia deveria ser encarada to somente como um gnero cujo escopo, em ltima
anlise, estudar e narrar os fatos da existncia de algum18.
18 Lus Viana Filho. A Verdade na Biografia. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1945, p. 23-24. A citaode Croce teria sido retirada do artigo La Storia Considerata como Scienza, publicado na Revista Italiana deSociologia, ano VI, fasc. II-III. Filho de Lus Viana, governador da Bahia entre 1896 e 1900, foi ele prpriogovernador do estado (1967 - 1971). Autor de famosas biografias de Joaquim Nabuco e de Ruy Barbosa,dentre outras obras de pesquisa histrica, foi ainda membro da Academia Brasileira de Letras. Cf. EdivaldoM. Boaventura (org.). Homenagem a Luiz Viana Filho. Braslia: Centro Grfico do Senado Federal, 1991.
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Ao longo de um sculo to marcado pela busca cientfica do conhecimento
generalizvel e dos fundamentos estruturantes da ao social, o mtodo biogrfico foi,
inmeras vezes, alvo de crticas advindas dos diversos quadrantes das cincias humanas.
Um de seus principais pontos frgeis, sem dvida, gira em torno daquilo que Pierre
Bourdieu chamou de a iluso biogrfica, ou a tentao de transformar os fatos e eventos
componentes da vida de um determinado indivduo em um todo dotado artificialmente
pelo trabalho do bigrafo de certo sentido ou direo, como se a trajetria de vida de
algum j estivesse definida de antemo desde o seu nascimento. Bourdieu critica, assim, a
tendncia de encarar o conjunto de acontecimentos de uma existncia individual como
uma histria e como narrativa dessa histria, sem ter em conta o quanto esse processo
construdo ao longo da prpria passagem do tempo, e o quanto ele funo, ainda, das
relaes que se devem necessariamente estabelecer entre o agente considerado [...] e o
conjunto dos outros agentes engajados no mesmo campo e afrontados com o mesmo espao
de possibilidades19.
Essas consideraes de Bourdieu exerceram papel importante nos debates em torno
do fazer biogrfico que tiveram lugar em meados dos anos 1980, quando a biografia
comeou a recobrar importncia no mbito das pesquisas acadmicas (deixando de ser
cultivada apenas por jornalistas e romancistas), em especial na Frana. Alguns outros
autores tambm chamaram a ateno para pontos similares: o socilogo Jean-Claude
Passeron, por exemplo, alertou contra o risco fabricar um excesso de sentido e de
coerncia, presente em qualquer tentativa biogrfica20, ao passo que o historiador italiano
Giovanni Levi criticou a retrica historiogrfica das biografias que tenderiam a reconstruir
uma cronologia ordenada, uma personalidade coerente e estvel, aes sem inrcia e
decises sem incertezas21.
19 Pierre Bourdieu. LIllusion Biographique. Em: Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Volume 62,n. 1, 1986, p. 69-72. A traduo das passagens de Bourdieu minha. No original, l-se: lensemble desvnements dune existence individuelle conue comme une histoire et le rcit de cette histoire e lagentconsidr [...] et lensemble des autres agents engags dans le mme champ e affronts au mme espace despossibles. Em portugus, o mesmo artigo pode ser lido em ________. Razes Prticas sobre a Teoria daAo. Campinas: Papirus, 1996.20 Jean-Claude Passeron. Biographies, Flux, Itinraires, Trajectoires. Em: Revue Franaise de Sociologie,vol. 31, n. 1, Jan-Mar 1990, p. 3-22.21 Giovanni Levi. Les Usages de la Biographie. Em: Annales Histoires, Sciences Sociales. Ano 44, n. 6,nov-dez 1989, p. 1325-1336. No original: une chronologie ordonn, une personnalit cohrente et stable, desactions sans inertie et des dcisions sans incertitudes. Esse artigo de Levi foi publicado em portugus como
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Levi, ao lado de outros pesquisadores vinculados corrente da chamada micro-
histria, contribuiu para uma mudana de enfoque, mais voltado para descrever as prticas
e estratgias atravs das quais os atores sociais biografados se movem na busca de seus
objetivos ou projetos pessoais, atribuindo sentido s suas aes. A riqueza do esforo
biogrfico, para esses autores, est na possibilidade de estabelecer relaes dinmicas entre
a (relativamente limitada) liberdade de ao dos indivduos e a rede histrica de que ele
participa. Em outras palavras: os seres individuais, embora personagens de seu tempo, de
sua sociedade e de sua cultura, no devem ser encarados como meros elementos passivos
ou objetos inertes, produtos de algum determinismo que os engloba e submete, mas sim
como agentes que, atravs de sua ao e de sua biografia, so capazes de reinterpretar e, at
certo ponto, transformar suas prprias circunstncias22.
Outro historiador, o medievalista Jacques Le Goff, corrobora esse posicionamento
metodolgico. Na biografia que escreveu de So Lus, o rei francs do sculo XIII, Le Goff
faz duas observaes importantes. Primeiro, nota que seu personagem constri-se a si
prprio e constri sua poca, tanto quanto construdo por ela. E essa construo feita de
acasos, hesitaes, de escolhas. E, em segundo lugar, afirma ainda que o indivduo no
existe a no ser em uma rede de relaes sociais diversificadas, e essa diversidade lhe
permite tambm desenvolver seu jogo. O conhecimento da sociedade necessrio para ver
nela se constituir e nela viver uma personagem individual23.
Em todo caso, no captulo de abertura do clssico A Imaginao Sociolgica, de
C. Wright Mills, que pode ser encontrada uma das mais contundentes defesas do mtodo
biogrfico para a produo do conhecimento em cincias humanas. Dada a sua clareza e
preciso, vale a pena citar por extenso a passagem de Mills:
A imaginao sociolgica capacita seu possuidor a compreender ocenrio histrico mais amplo, em termos de seu significado para a vidantima e para a carreira exterior de numerosos indivduos. [... atravs
Usos da Biografia em Marieta de Moraes Ferreira e Janana Amado (orgs.). Usos e Abusos da HistriaOral. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1998.22 V. Giovanni Levi. Sobre a micro-histria. Em: Peter Burke (org.). A Escrita da Histria NovasPerspectivas. So Paulo: Editora da Unesp, 1992. No mesmo diapaso, ver, ainda, a Introduo de CarloGinzburg a seu O Queijo e os Vermes o Cotidiano e as Idias de um Moleiro Perseguido pela Inquisio.So Paulo: Companhia das Letras, 1987.23 Jacques Le Goff. Introduo. Em: ________. So Lus, uma Biografia. Rio de Janeiro: Editora Record,1999, p. 23 e 26.
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dela,] chegamos a saber que todo indivduo vive, de uma gerao para aoutra, em uma determinada sociedade; que vive uma biografia, e que avive dentro de uma sequncia histrica. E, pelo simples fato de viver,contribui, ainda que minimamente, para o condicionamento dessasociedade e para o curso de sua histria, ao mesmo tempo em que condicionado por essa sociedade e por seu processo histrico. Aimaginao sociolgica nos permite apreender histria e biografia e asrelaes entre as duas na sociedade. Essa sua tarefa e sua promessa.Reconhecer essa tarefa e essa promessa a marca do analista socialclssico. [...] E o sinal do que h de melhor em estudos contemporneosdo homem e da sociedade. Nenhum estudo social que no retorne aosproblemas da biografia, da histria e de suas intersees numa sociedade,completou sua jornada intelectual.24
procurando ter em mente esses ensinamentos e preceitos que vamos acompanhar,
nas pginas seguintes, os fatos da existncia de Nestor Duarte, buscando relacion-los
com o contexto histrico e social mais amplo no qual ele estava inserido. Optamos por,
nessa narrativa, no ultrapassar o ano de 1945, concentrando o foco no perodo durante o
qual o autor escreveu as obras que sero analisadas nos dois captulos seguintes: seu ensaio
scio-poltico, A Ordem Privada e a Organizao Poltica Nacional (1939), e sua produo
de jurista e professor de Direito, publicada entre 1933 e 1944. Veremos, assim, suas
movimentaes desde a infncia no interior da Bahia, passando pela juventude em
Salvador, a formao acadmica na Faculdade de Direito, sua posterior adeso carreira
docente, ao jornalismo e poltica partidria, em especial no que toca sua oposio ao
regime que se instala no pas depois da Revoluo de 1930 e com o golpe do Estado Novo.
Nesse esforo, alm de nos utilizarmos da historiografia pertinente, nos valeremos tambm
de diversos textos esparsos publicados por Duarte ao longo dos anos (principalmente na
forma de artigos de jornais e de discursos parlamentares ou acadmicos) e, ainda, de
memrias escritas por alguns de seus companheiros de gerao, que com ele conviveram ou
o conheceram de perto25.
24 C. Wright Mills. A Promessa. Em: ________. A Imaginao Sociolgica. Rio de Janeiro: Editora Zahar,1965, p. 12 [a edio original de 1959].25 A utilizao de memrias sempre prenhes de falhas, distores e inverses como fonte para a produodo conhecimento histrico j vem sendo objeto de muitas discusses terico-metodolgicas nos ltimos anos,cujas recomendaes preciso ter tambm em conta. O socilogo Michael Pollak, por exemplo, oferecealgumas consideraes sobre o assunto, que podem, bem guardadas as diferenas de contexto, nos ser teis naempreitada. Diz ele: a memria seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado. [...] tambmsofre flutuaes que so funo do momento em que ela articulada, em que ela est sendo expressa. Aspreocupaes do momento constituem um elemento de estruturao da memria. [...] a memria um
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Primeiros anos: do serto ao litoral
Nestor Duarte Guimares nasceu em Caetit, pequena localidade do alto serto
baiano (a 757 km de Salvador), no dia 3 de fevereiro de 1902. Era o segundo filho de
Francisco Duarte Guimares e de Amlia Tavares Duarte Guimares. Seu pai foi um
bacharel formado na Faculdade de Direito de Recife (turma de 1891) que, depois de ter
atuado por alguns anos como Promotor Pblico em Nazar das Farinhas, cidade do
Recncavo onde conhecera e se casara com Amlia Tavares, mudou-se para Caetit em
1899, ao ser nomeado Juiz titular daquela comarca afastada26. Nesses primeiros anos do
sculo XX, Caetit provavelmente no diferia muito da cidade que havia sido descrita pelo
engenheiro baiano Teodoro Sampaio ao passar pela regio, pouco mais de vinte anos antes.
Sampaio anotou ento (1879), em seu dirio de viagem, a impresso de que a cidade
possua um aspecto de corte do serto, e de que ali vivia uma boa e culta sociedade,
[com] muita urbanidade e delicadeza na gente do lugar. poca, o conhecido intelectual
negro calculou que a cidade devia ter por esse tempo seus oito mil habitantes, contando-se
na freguesia para mais de 27 mil almas e 50 mil em toda a comarca27.
A fama de lugar onde sempre vigorou o culto boa instruo e cultura
humanstica faz parte da mitologia local de Caetit. Consta, por exemplo, que os
naturalistas bvaros Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich von Martius j teriam
registrado a existncia de uma Aula Rgia de Latim na regio, ao passar por ali em sua
viagem de explorao do interior brasileiro, na dcada de 181028. Mais tarde, uma das
fenmeno construdo. [...] os modos de construo podem tanto ser conscientes como inconscientes. O que amemria individual grava, recalca, exclui, relembra, evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalhode organizao. Michel Pollak. Memria e Identidade Social. Em: Estudos Histricos. vol. 5, n. 10. Riode Janeiro: CPDOC/FGV, 1992, p. 200-212.26 Muito do que se segue est baseado na biografia do autor escrita por Waldir Freitas Oliveira. Nestor Duarte Inquietao e Rebeldia Uma Biografia Crtica. Salvador: Instituto Advogado Gonalo Porto de Souza,2004. Cf., ainda, os verbetes Duarte, Nestor do Dicionrio Histrico-Biogrfico Brasileiro ps-1930,organizado por Israel Beloch e Alzira Alves de Abreu. Edio Digital. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 1999; eNestor Duarte de Antnio Loureiro de Souza. Baianos Ilustres. 3 edio. So Paulo e Braslia: Ibrasa eINL, 1979.27 Teodoro Sampaio. O Rio So Francisco e a Chapada Diamantina. Organizao de Jos Carlos Barreto deSantana. So Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 220-221. [a 1 edio em livro de 1906]. De acordocom o ltimo censo do IBGE (2000), Caetit possui, atualmente, cerca de 46 mil habitantes.28 J. B. Spix e C. F. von Martius. Viagem pelo Brasil (1817-1820). Belo Horizonte e So Paulo: Itatiaia eEdusp, 1981. 2 Volume, p. 122-128.
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primeiras Escolas Normais do interior baiano foi estabelecida na cidade, logo seguida pela
Escola Americana, vinculada a uma misso presbiteriana, e pelo colgio jesuta So Luiz
Gonzaga. Era, sem dvida, uma situao excepcional, em meio rudeza de modos e de
cultura que em geral grassava no alto serto do pas. Muitos so os filhos ilustres da
cidade, dentre os quais se destacavam, entre o final do sculo XIX e incio do sculo XX,
os nomes de Aristides Spnola, Csar Zama e Joaquim Manoel Rodrigues Lima29.
Apesar de pouco ter vivido em Caetit (uma promoo recebida pelo pai levou a
famla a mudar-se para a localidade de Areia, hoje chamada de Ubara, j em 1904), Nestor
Duarte reteve ligaes com a regio e, depois de adulto, manteria ali sua base poltica mais
forte, capaz de lhe garantir os votos necessrios para ser eleito em dois mandatos de
deputado estadual (1929-1930, ainda na Repblica Velha, e 1935-1937, no interldio
democrtico de Getlio). Para tanto, certamente ajudou o fato de que um dos principais
chefes polticos locais, desde o comeo do sculo, fosse Deocleciano Pires Teixeira, pai do
tambm intelectual caetiteense Ansio Teixeira, que mais tarde se tornaria amigo fraternal e
contraparente (por serem ambos casados com duas irms) de Nestor Duarte30.
Em Areia, localizada j perto do litoral, s margens da Estrada de Ferro de Nazar
(que ligava essa cidade do Recncavo Sul, terra dos familiares de sua me, ao serto mais
distante), Duarte permaneceu at a adolescncia, quando foi enviado para completar seus
estudos em Salvador. Na capital baiana, matriculou-se como aluno interno do Ginsio
Ipiranga, de propriedade do educador Isaas Alves, ento um dos mais tradicionais da
cidade. Essa experincia vivida em seus primeiros anos, de passagem do serto ao litoral e
da capital do estado, parece ter marcado de muitos modos a sensibilidade do autor, ao
ponto de o serto, abrangendo tanto o espao geogrfico quanto as relaes sociais que
29 De acordo com a memorialista local, e irm de Hermes Lima (de quem falaremos mais adiante), HelenaLima Santos. Caetit, Pequenina e Ilustre. Salvador: S. N., 1976.30 Ansio Spnola Teixeira (1900-1971) nasceu em Caetit e se formou em Direito no Rio de Janeiro (em1922). Atuou, principalmente, como educador, tendo sido um dos expoentes da vertente conhecida comoEscola Nova, da dcada de 1930, que enfatizava pedagogicamente o desenvolvimento do intelecto e dacapacidade de julgamento, em detrimento da simples memorizao de contedos. Foi secretrio da educaona Bahia e no Rio de Janeiro, e ainda um dos responsveis pelo estabelecimento das universidades do DistritoFederal (RJ 1935) e de Braslia (1961). Na burocracia pblica, ajudou, ainda, a criar o Instituto Nacional deEstudos Pedaggicos (Inep) e a Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes).Traos biogrficos extrados de Helena Lima Santos, op. cit. Sobre a ligao entre Duarte e Teixeira, v. aelegia que este ltimo escreveu sobre o primeiro por ocasio de sua morte: Nestor Duarte O Homem deIdias. Em: Tribuna da Bahia, Salvador, 2 de janeiro de 1971. Acrescente-se, ainda, o fato de que Duartededicou seu livro sobre A Ordem Privada a Teixeira, juntamente com Afrnio Peixoto e Otvio Mangabeira.
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nele se estabeleceram, ter se transformado em um dos seus mais caros temas de
investigao e reflexo. Mais adiante, teremos oportunidade de verificar o quanto a
temtica aparece e reaparece em vrios momentos de seus escritos, seja no ensaio scio-
poltico-historiogrfico de A Ordem Privada e a Organizao Poltica Nacional (1939),
seja em qualquer um de seus trs romances, Gado Humano (1936), Tempos Temerrios
(1958) ou Cavalo de Deus (1968).
Por ora, para j ir formando uma idia de suas impresses a esse respeito, podemos
acompanhar a profisso de f sertaneja feita por Duarte em 1935, na Assemblia
Legislativa da Bahia, durante uma discusso com o deputado Carlos Monteiro,
representante da zona do cacau (municpio de Belmonte):
[sou] um tabaru, dum serto bem mais alto do que o de V. Exa. [...] queno quase do interior, mas da vida brilhante de Ilhus e Itabuna [...]Quando falo em serto, tenho a representao mental de cidades comoConquista, Areia, Guanambi, Santa Ins, Jaguaquara, Santana dosBrejos, Cruz das Almas [...] O tabaru, por mais canhestra que seja a sualinguagem, sempre um homem astuto e pertinaz na defesa dos seusdireitos [...], pois sem falar o portugus clssico, o indivduo pode dizer edefender, dentro de sua linguagem, as suas pretenses.31
Trs dcadas mais tarde, no discurso que pronunciou ao tomar posse como membro
da Academia de Letras da Bahia, Duarte deteve-se mais demoradamente para confrontar
suas percepes acerca da Bahia barroca e da Bahia sertaneja. Note-se a cuidadosa
escolha de expresses antagnicas, perfilhadas pelo autor para caracterizar uma e outra
regio:
sei que o dominante barroco de sua cultura [da Bahia] uma das maioresreas do barroco no mundo no , apenas, um ciclo histrico, mas umaafinidade de seu esprito, de sua ndole, de sua natureza, pelo que h deesplendncia, de alegria da criao, do voluptuoso esforo das curvas daabundncia, das ancas e do ventre redondo da fecundidade vitoriosa, queesse estilo de extroverso da vida glorifica. Mas h uma Bahia no-barroca, em que sua fora criadora e poder de presena, na civilizaobrasileira, no se exprimem em formas gordas, mas em energia tenaz, na
31 Nestor Duarte. Discurso pronunciado na Assemblia Constituinte da Bahia. Em: Dirio da AssembliaConstituinte / Dirio Oficial do Estado da Bahia. Salvador, 2 de agosto de 1935, p. 804, apud Waldir FreitasOliveira, op. cit.
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magrm severa que, se tem um estilo, h de ser o do missioneiroprimitivo. Todos ns que nascemos na geografia sbria das terras semi-ridas, que constituem dois teros do territrio baiano, sentimos que oserto um dos elementos do carter baiano. [...] Serto quase mineral,severo e contrado, por lhe faltarem as esplendncias, os volumes, aabundncia, a fermentao da vida estuante. Um serto anti-barroco, ouquase ainda, mas um serto baiano, fora e magma de sua natureza,heterogneo que se soma terra para fazer da Bahia sempre um total,nunca a simplicidade.32
Chegando a Salvador ao final dos anos 1910, o adolescente Nestor Duarte conheceu
uma cidade que, de muitos modos, dava a impresso de estar parada no tempo. Toda a
primeira metade do sculo XX, na Bahia, passou sob essa sensao de que a regio,
padecendo de alguma espcie de paralisia inexplicvel, se distanciava cada vez mais do
poderio e da opulncia supostamente experimentados em um perodo histrico anterior,
tanto em matria econmica quanto poltica33. Mesmo vinte anos mais tarde, o escritor
austraco Stefan Zweig ainda podia dizer que a atitude da Bahia a de uma rainha viva
[...] presa ao passado34. Era a poca do chamado enigma baiano, que continuaria a
intrigar os estudiosos locais nas dcadas seguintes, mesmerizados pelo raqutico
desenvolvimento econmico e demogrfico da regio e pelo cada vez menor peso poltico
que o estado ia assumindo no conjunto da federao brasileira35. O prprio Duarte, alis,
seria um dos primeiros a escrever sobre o tema, j em 1940, enfocando-o principalmente a
partir de uma perspectiva sociologizante, tpica como veremos adiante de sua maneira
usual de inquirir as questes de que se ocupa:
32 Nestor Duarte. Discurso de Posse de Nestor Duarte e Saudao de Godofredo Filho. Bahia: Academia deLetras da Bahia, 1966, p. 11-12. Grifos meus. Segundo o dicionrio Aulete, magrm, alm de sinnimo demagreza, significa ainda, na fala sertaneja, a estao das secas.33 V. a respeito, dentre outros, Antnio Risrio. Uma Histria da Cidade da Bahia. 2 edio. Rio de Janeiro:Versal Editores, 2004, p. 456 e ss; e Lus Henrique Dias Tavares. Histria da Bahia. 10 edio. Salvador eSo Paulo: Editora da UFBa e Editora da Unesp, 2006, captulos XXI e XXII.34 Stefan Zweig. Brasil, Pas do Futuro. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1960, p. 207. [a 1 edio de1941].35 Cf., a respeito: Rmulo Almeida. Traos da Histria Econmica da Bahia no ltimo Sculo e Meio. Em:Planejamento, v. 1, n. 1. Salvador: CPE, 1973 [1 edio de 1951]; Manoel Pinto de Aguiar. Notas sobre oEnigma Baiano. Em: Planejamento, v. 1, n. 1. Salvador: CPE, 1973 [1 edio de 1958]; Lus HenriqueDias Tavares. O Problema da Involuo Industrial da Bahia. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1966;Antnio Srgio Alfredo Guimares. A Formao e a Crise da Hegemonia Burguesa na Bahia. Mestrado emCincias Sociais. Salvador: FFCH-UFBa, 1982.
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a vida econmica da Bahia est a merecer um estudo, antes de merecerremdio. [...] Esse estudo [...] deveria ser feito nos moldes e segundo omtodo dos inquritos sociais que se promovem para conhecer umaregio, um agrupamento ou um conjunto de fatos da coletividade. Umestudo social, enfim, descritivo para ser produtivo, e informado para serfecundo s concluses posteriores, tanto quanto essa forma de saberequivalha a indagar realidades, a descobrir fatos, a somar informaes, areunir conhecimentos. [...] Na Bahia deveramos saber, antes de tudo, oque teve, realizou e produziu no passado e que j no tem, nem realiza enem produz hoje. Este primeiro exame encerra, talvez, o ponto crucialdeste inqurito, porque nos levaria, de logo, a indagar da razo e da causada descontinuidade da vida econmica da Bahia.36
Nesse perodo, portanto, a Bahia era um estado esmagadoramente rural,
desintegrado dos pontos de vista econmico, cultural e poltico, arquiplago de localismos
marcados por pobreza, desigualdade, atraso e toda sorte de mandonismo oligrquico37. No
plano poltico, durante toda a Primeira Repblica, o cenrio baiano foi marcado por
permanentes e intensas disputas entre os diversos grupos de polticos profissionais
(bacharis) da capital e dos chefes locais (coronis) do interior. No houve, no estado,
nada equivalente montagem de uma mquina partidria unificada tal como a que foi
estruturada pelo PRP em So Paulo, por exemplo. O movimento republicano do final do
sculo XIX teve pouca penetrao na Bahia, cuja elite poltica, solidamente organizada nos
velhos partidos Liberal e Conservador, exercia grande protagonismo durante o Imprio e
no desejava a queda da monarquia38.
Mas depois de 1889, os laos partidrios foram desorganizados e, nas dcadas
seguintes, o que se observa a atuao de diversos agrupamentos reunidos em torno de
alguns lderes, autoidentificados por rtulos personalistas tais como gonalvistas, vianistas,
severinistas, marcelinistas, seabristas, calmonistas ou mangabeiristas, para citar os
principais. Os vrios partidos criados ao longo desses anos (as siglas abundam: PRF, PRB,
PRD, PRC, CRB, etc.) refletem apenas as mudanas na posio dos grupos participantes
do governo e da oposio, a cada momento. Em algumas ocasies, inclusive, a
36 Nestor Duarte. Inqurito sobre a Economia Baiana. Srie de artigos publicados no jornal A Tarde, nos dias31 de outubro, e 7, 13 e 30 de novembro de 1940. Reproduzido em Walter Freitas Oliveira, citado.37 A sntese de Paulo Fbio Dantas Neto, em seu Tradio, Autocracia e Carisma A poltica de AntonioCarlos Magalhes na modernizao da Bahia (1954-1974). Belo Horizonte e Rio de Janeiro: Editora daUFMG e Iuperj, 2006, p. 31.38 Acerca da elite poltica baiana no Imprio, v. Ktia de Queiroz Mattoso. A Bahia no sculo XIX umaProvncia no Imprio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, passim.
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incapacidade de eleger um claro vencedor para o pleito regional levou a que o governo
federal fosse obrigado a intervir no estado, beneficiando um dos lados em contenda como
no caso do bombardeio de Salvador, em 1912, que instalou Jos Joaquim Seabra no
governo pela primeira vez. Alm disso, a influncia permanente de Ruy Barbosa,
possivelmente o nico poltico baiano com projeo nacional no perodo (quatro vezes
candidato derrotado presidncia da Repblica, entre 1910 e 1919), era outro fator de
instabilidade da poltica regional, pois Ruy era um poltico isolado, cujo apoio recalcitrante
era, assim, disputado (mas nunca garantido de fato) pelas diversas claques que compunham
a poltica estadual39.
Por fim, deve-se ter em conta, ainda, o papel de relevo exercido, no jogo poltico de
ento, pelos coronis do serto, cuja importncia no era nada desprezvel como, alis,
atesta o desfecho da chamada Revolta Sertaneja de 192040. Boris Fausto, em sua
Histria do Brasil, nos oferece um bom resumo da situao regional nessa quadra: na
Bahia, o governo do estado constitudo principalmente de polticos profissionais, de
representantes do comrcio e dos produtores para a exportao tinha de se harmonizar
com os coronis do serto. De outra forma, no seria possvel governar. Um desacerto
entre os dois setores provocou, em 1920, uma insurreio dos coronis. Eles derrotaram,
em vrios combates, as foras estaduais e ameaaram entrar em Salvador. Afinal, o
presidente da Repblica, Epitcio Pessoa, viu-se obrigado a arbitrar a disputa atravs do
comandante militar da Bahia. A arbitragem revelou o poder dos coronis baianos. O mais
famoso deles Horcio de Matos obteve o direito de conservar suas armas e munies,
bem como o controle de doze municpios sob sua influncia41.
39 Com relao Primeira Repblica, v. principalmente Consuelo Novais Sampaio. Os partidos polticos daBahia na Primeira Repblica uma Poltica de Acomodao. 2 edio. Salvador: Edufba, 1999.40 A principal referncia, aqui, continua a ser Eul-Soo Pang. Coronelismo e Oligarquias 1889-1934 ABahia na Primeira Repblica Brasileira. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1979, que chamou osdomnios coronelsticos de estados dentro do estado. Sobre o mesmo tema, veja-se, ainda, Lus HenriqueDias Tavares, Histria da Bahia, j citado, p. 341-346.41 Boris Fausto. Histria do Brasil. 6 edio. So Paulo: Edusp e FDE, 1999, p. 264. Dentre os trabalhos quese ocuparam em estudar os aspectos scio-histrico-culturais do serto baiano, especialmente nas regies doSo Francisco e da Chapada Diamantina, podemos destacar: Wilson Lins. O Mdio So Francisco umaSociedade de Pastores e Guerreiros. 2 edio. So Paulo e Braslia: Companhia Editora Nacional e InstitutoNacional do Livro, 1983; Walfrido Moraes. Jagunos e Heris a Civilizao do Diamante nas Lavras daBahia. 3 edio. Braslia: Cmara dos Deputados, 1984; Eurico Alves Boaventura. Fidalgos e Vaqueiros.Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1989 e Donald Pierson. O Homem no Vale do So Francisco. 3Volumes. Rio de Janeiro: Suvale, 1972.
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Para Nestor Duarte, no entanto, a importncia do poderio paramilitar dos
coronis do interior no era propriamente poltica. O autor dar tratamento literrio
Revolta Sertaneja em seu romance de estria, Gado Humano (1936), ao longo de toda a
segunda parte da obra, que recebe o ttulo de Invaso ou Evaso? (a primeira parte, em
que se descreve a geografia isolada dos sertes e as relaes sociais que nela se
estabelecem, intitulada No Eito e no Ermo). Em sua reconstruo ficcional da
Revolta Sertaneja, surge uma imagem da incompreenso e da hostilidade mtuas entre
aqueles dois Brasis o interior e o litoral que, no entanto, esto forados a conviver
lado a lado, ainda que sem almejar qualquer projeto maior em comum, qualquer
sentimento de pertena coletiva. A nica relao possvel entre as duas regies aquela
que se estabelece por meio da violncia:
o serto deveria, assim, descer sobre as cidades, alarmar e conflagrar ogoverno, a ordem das cidades! [...] a invaso no tinha outro fim. Eratomar cidades, assust-las, deixando-lhes, apenas, o clamor contra aquelaousadia de um cangao que desmoralizava. [...] recorria-se nica foraorganizada que o mato e o serto possuam para lutar contra a fora dogoverno. Nenhuma excedia a outra em primitivismo [...] Estado latente derevoltas confusas s tinha um sentido a exploso. 42
Tambm no ensaio A Ordem Privada e a Organizao Poltica Nacional (1939),
Duarte analisa a inexistncia de qualquer sentido poltico mais amplo nos espasmos
violentos ocasionais de alguns dos movimentos coletivos que vez ou outra irrompem no
interior do pas:
Se o serto, a populao rural de atividade agrcola e pastoril, empreendeou empenha-se nalguma atividade revolucionria, o carter de suasrevolues, quando no absolutamente apoltico, como Canudos, porexemplo, antes um movimento de reao e desequilbrio contra aimplantao de qualquer autoridade poltica. [...] Esse meio rural, decarter privado, de absentesmo poltico, no faz nunca uma revoluopoltica.43
42 Nestor Duarte. Gado Humano. 2 edio. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo, Conselho Estadual deCultura, EGBa, 1998, p. 83, 93 e 97. [a 1 edio de 1936].43 Nestor Duarte. A Ordem Privada e a Organizao Poltica Nacional Contribuio Sociologia PolticaBrasileira. 2 edio. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966, p. 72. [a 1 edio de 1939].
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De um modo geral, a representao do serto e dos sertanejos que construda na
obra de Duarte oscila entre uma identificao quase sentimental ou afetiva com os espaos
e a gente da regio e uma compreenso de que preciso estabelecer um projeto comum de
nao que mitigue essa antinomia vigente entre o litoral e o interior do pas44. Enquanto
isso no ocorrer, a poltica como busca do bem comum no ter vigncia assegurada
entre ns.
Dcada de 1920: bacharel, jornalista, professor, deputado
Os anos de formao de Nestor Duarte em Salvador prosseguiram, entre 1920 e
1924, como estudante de Direito. Criada em 15 de maro de 1891, a Faculdade Livre de
Direito da Bahia (incorporada UFBa em 1946), ostenta a condio de primeira
estabelecida no Brasil depois das duas escolas do perodo imperial (So Paulo e
Olinda/Recife)45. Nas dcadas seguintes, pelo menos at meados do sculo XX, ela se
tornou uma das principais instituies responsveis pela formao e socializao intelectual
e poltica das elites e setores mdios baianos, em muito substituindo o papel exercido pela
velha Faculdade de Medicina no perodo anterior46.
Ali, no sobrado [...] esquina da Piedade com a Lapa, lees de pedra na entrada,
embaixo salas pequenas, no meio o corredor largo, em cima a secretaria47, Nestor Duarte
pde conhecer e estabelecer relaes com professores como Antnio Carneiro da Rocha
44 Giselle Laguardia Valente acredita que para Duarte, o serto constitui [ao mesmo tempo] o locus dabrasilidade e de tudo o que precisa ser superado para se chegar a uma nao moderna. Em: Nestor Duarte:Liberalismo e Reformas Sociais na Construo da Nao Republicana. Dissertao de Mestrado.Departamento de Histria da Universidade Federal de Minas Gerais, 2004, p. 171. J Rogrio dos SantosFrana observa, a partir de uma perspectiva descontrucionista, que a obra de Duarte faz funcionar aconformao tanto de um espao vazio, s margens da moderna civilizao, quanto uma categoria de sujeitosque balanam no pndulo da ambivalncia estereotpica: o sertanejo tanto rejeitado como signo do atrasoquanto celebrado como signo de uma genuna identidade nacional. Em: Representao do Sertanejo e Idiade Brasil Moderno em Nestor Duarte. Dissertao de Mestrado. Departamento de Histria da UniversidadeFederal de Pernambuco, 2010, p. 15.45 Duas narrativas da histria dessa escola podem ser lidas em: Jos Calasans. A Faculdade Livre de Direitoda Bahia Subsdios para a sua Histria. Centro de Estudos Baianos, n. 105. Salvador : CEB/UFBa, 1984; eAntnio Gidi. Anotaes para uma Histria da Faculdade de Direito da Bahia nas Comemoraes do seuPrimeiro Centenrio. Salvador: Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 1991.46 Sobre esse aspecto, v. os argumentos desfiados por Consuelo Novais Sampaio. Poder & Representao OLegislativo da Bahia na Segunda Repblica 1930-1937. Salvador: Assemblia Legislativa, 1992, p. 179 ess.; e Paulo Santos Silva. ncoras de Tradio Luta Poltica, Intelectuais e Formao do DiscursoHistrico na Bahia (1930-1949). Salvador: Edufba, 2000, p. 129 e ss.47 A descrio de Pedro Calmon em suas Memrias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 81-82.
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(ento diretor da faculdade), Affonso de Castro Rebello (paraninfo de sua turma), Virglio
de Lemos (mestre de Filosofia do Direito), Filinto Bastos (Direito Romano), Demtrio
Ciraco Tourinho (Medicina Legal e Criminologia), Homero Pires (Direito Constitucional)
e Bernardino de Souza (Direito Internacional Pblico), dentre outros. Em meio a seus
contemporneos de alunado, tambm possvel encontrar um bom nmero de nomes que,
mais tarde, obteriam destaque nas letras, na poltica e na burocracia baiana e brasileira,
como Alosio de Carvalho Filho48, Aliomar Baleeiro49, Adalcio Nogueira50, Hermes
Lima51 e Jayme Junqueira Ayres52, para citar apenas alguns. Genolino Amado53 e Pedro
48 Filho de um famoso jornalista baiano da virada do sculo (conhecido por Lulu Parola), Alosio de CarvalhoFilho (1901 1970) foi advogado, professor (Direito Penal) e diretor da Faculdade de Direito da Bahia. Comopoltico, foi deputado federal constituinte em 1934 e senador constituinte em 1946. Dados biogrficos deAntnio Loureiro de Souza. Baianos Ilustres, j citado.49 Soteropolitano, Aliomar Baleeiro nasceu em 1905 e se formou em 1925. No incio dos anos 1930, ligou-sea Juracy Magalhes, elegendo-se deputado estadual em 1935. Depois de 1945, foi um dos fundadores da UDNda Bahia, tornou-se deputado federal constituinte em 1946 e, durante a dcada de 1950, fez parte da famosabanda de msica do partido no Congresso Nacional. Apoiou inicialmente o regime militar de 1964, masdepois de ser nomeado ministro do STF, em 1965, passou a defender o retorno do pas ao Estado de Direito, oque fez durante toda a dcada de 1970. Foi professor (Direito Tributrio) das faculdades de Direito na Bahia eno Rio de Janeiro. Faleceu em 1978. Dados extrados do Dicionrio Histrico-Biogrfico Brasileiro ps-1930, j citado.50 Nascido na cidade de Inhambupe, em 1902, Adalcio Coelho Nogueira fez carreira na magistratura echegou a ser ministro do STF, na dcada de 1960. Foi professor (de Direito Romano) e depois Diretor daFaculdade de Direito da Bahia. Foi ainda membro da Academia de Letras da Bahia e do Instituto Geogrfico eHistrico da Bahia. Faleceu em 1990. Dados extrados de suas memrias: Adalcio Nogueira. Caminhos deum Magistrado. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1978.51 Hermes Lima (1902 1978) nasceu em Livramento do Brumado, no serto baiano. Formado em Salvador,tornou-se professor, com passagens pelas faculdades de So Paulo e do Rio Janeiro, da qual foi ainda Diretor.Seu manual de Introduo Cincia do Direito, ainda hoje em uso, conheceu mais de 50 reedies ao longodos anos. Publicou ainda livros de ensaios e uma biografia intelectual de Tobias Barreto que lhe valeram umaeleio para a Academia Brasileira de Letras. Como poltico profissional, foi sempre reconhecido porposies de esquerda e, depois de diversos mandatos como deputado estadual e federal, chegou ao cargo deprimeiro-ministro na experincia parlamentarista do governo Joo Goulart. Foi ainda ministro do STF.Faleceu em 1978. Dados extrados de sua autobiografia: Hermes Lima. Travessia Memrias. Rio de Janeiro:Jos Olympio, 1974. Srgio Miceli, em seu Intelectuais Brasileira (So Paulo: Companhia das Letras, 2001,p. 120), considerou-o um desses bacharis livres bem-sucedidos, cujo intinerrio algo errtico acompanhaas oscilaes da oferta em diferentes setores do mercado de postos [...] em busca de um lugar ao sol em meios transformaes por que passava a diviso do trabalho poltico e cultural das dcadas de 1920 e 1930.52 Jayme Junqueira Ayres (1902 1973) nasceu em Salvador. Depois de formado, foi professor de DireitoCivil na Faculdade de Direito da Bahia e poltico, chegando a ocupar a presidncia da Assemblia Legislativado Estado, entre 1947 e 1949. Fez tambm parte da Academia de Letras da Bahia. Dados retirados de MarietaAlves. Intelectuais e Escritores Baianos Breves Biografias. Salvador: Fundao Museu da Cidade, 1977.53 Sergipano, Genolino Amado nasceu em 1902. Era irmo de Gilberto Amado e primo de Jorge Amado.Formado em 1924, no Rio de Janeiro, mudou-se para So Paulo e se tornou jornalista do Correio Paulistano.Mais tarde, de volta ao Rio, fez carreira como escritor, cronista e professor no ensino mdio e superior.Entrou para a Academia Brasileira de Letras em 1977 e faleceu em 1989. Traos biogrficos retirados do stio.
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Calmon54, tambm da mesma turma, apesar de terem iniciado os estudos em Salvador,
acabaram recebendo seus diplomas na Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro.
Na falta de registros de lembranas do prprio Nestor Duarte sobre sua experincia
como estudante de Direito, buscamos nos valer de memrias publicadas por alguns de seus
colegas de gerao, para procurar traar um esboo desse momento e daqueles que dele
participaram. Hermes Lima, por exemplo, assim relembra a atmosfera intelectual e
ideolgica dos seus tempos de faculdade:
a formao intelectual da minha gerao [...] recebia contribuies einfluncias que a distinguiam da gerao anterior. Alm do choque daPrimeira Grande Guerra, de sua literatura inspirada em costumes eaudcias novas, luziam revrberos da Revoluo Russa que coloriamconversas e debates dos estudantes, abstratamente divididos emmaximalistas e minimalistas. A viso era confusa, mas excitante, ainformao, deficiente. O sentido do novo perdia-se nas abstraes e arealidade circundante comandava, na prtica, nossas atitudes. Salvador eracalma, repousante. No havia seiva, nem motivao para outra coisa queno fosse discutir, especular com os fiapos do mundo apanhados nos livrose nas notcias. O clssico, o costumeiro, enchia a ambincia.55
Alguns dos professores catedrticos de ento tambm ressurgem dessas memrias,
vistos atravs dos olhos de seus alunos. De Antnio Carneiro da Rocha, diretor da
faculdade, temos o seguinte testemunho de Pedro Calmon: a tradio de bengala e chapu-
do-chile, ministro da Marinha e da Agricultura na monarquia, senador do Imprio [...], era a
flor da aristocracia vicejando na decrepitude burguesa do conselheiro56. Acerca de
Homero Pires, professor de Direito Constitucional, Hermes Lima registra que elaborou
admirvel sistematizao do disperso pensamento poltico e constitucional de Ruy
Barbosa e que era mais homem de estudo que de ao; nada derramado, como um bom
54 Pedro Calmon (1902 1985) era baiano de Amargosa. Nascido em uma das famlias mais ilustres doEstado, era sobrinho de Miguel Calmon, ministro da Repblica, que o levou para o Rio de Janeiro em 1922.De volta Bahia, foi deputado estadual no fim da Repblica Velha. Depois, foi deputado federal na dcada de1930, e ministro da Educao na presidncia Gaspar Dutra. Professor (Direito Constitucional) e Diretor daFaculdade Nacional de Direito, chegou a ser Reitor da Universidade do Brasil (depois UFRJ) por quase vinteanos seguidos. Historiador com vasta obra publicada, foi ainda membro do Instituto Histrico e GeogrficoBrasileiro e da Academia Brasileira de Letras. Dados retirados de suas Memrias, j citado.55 Hermes Lima. op. cit., p. 34-35.56 Pedro Calmon, op. cit., p. 82.
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sertanejo57. ainda de Calmon que nos chega a descrio de dois outros lentes da poca:
Filinto Bastos, de Direito Romano, idoso e catlico, um monge, a batina oculta pelo fraque
pobre, de Desembargador conspcuo; oposto a ele, o alagoano Virglio de Lemos. Jornalista
de flego, acumulava o pendor pela polmica com a sabedoria dialtica. Animava-se a
inovar a Filosofia do Direito; um Tobias Barreto obeso, que negava a Providncia
cumprindo-lhe a moral, revolucionrio por fora, adorvel inimigo do dogma, comparsa
generoso dos alunos; clebre pelo materialismo de socialista e pela gula de
gastrnomo58. E ainda sobre Virglio de Lemos, temos, mais uma vez, Hermes Lima:
alm de mestre, Virglio foi um companheiro. Baixo de estatura, gordo, ventre saliente,
tinha bom humor, gostava de ces, gostava da vida, era comunicativo59.
Por fim, o prprio Nestor Duarte tambm tem seu retrato pintado por seus antigos
colegas, por vezes numa fuso entre as lembranas da juventude com aquilo que veio a
realizar depois, o que bem denota o trabalho da memria sendo construda pelos nossos
informantes. Dos depoimentos emergem traos de sua personalidade que nos parecem
dignos de nota: em nossa turma de bacharis de 1924, Nestor, alm do talento, destacava-
se pela graa do porte fsico, pela alegria que seu riso e seus olhos lhe estampavam no rosto
aberto, sedutor60; impetuoso e inteligente, que h de ser um dos modelos de
combatividade e bom humor da Cmara dos Deputados, grande professor de Direito61;
esprito atormentado por uma perene inquietao intelectual, parlamentar aguerrido,
advogado intrpido, mestre admirado por muitas geraes62.
Depois de formado, Duarte comeou a escrever para alguns dos principais
peridicos da capital baiana poca, como o Dirio da Bahia63 e O Imparcial64. Nesse
57 Hermes Lima, op. cit., p. 21.58 Pedro Calmon, op. cit., p. 90.59 Hermes Lima, op. cit., p. 20.60 Hermes Lima. op. cit. , p. 163.61 Pedro Calmon. op. cit., p. 87.62 Adalcio Nogueira. op. cit., p. 15.63 O Dirio da Bahia, fundado em 1856, foi um dos jornais mais tradicionais de Salvador, circulando, comalgumas interrupes, por pouco mais de um sculo. No Imprio, era ligado ao Partido Liberal, e naRepblica passou por diversas fases, abrigando, em diferentes momentos, seguidores de Ruy Barbosa, ManoelVitorino, Severino Vieira e, na dcada de 1920, de Ges Calmon. Cf. diversos artigos publicados em LusGuilherme Pontes Tavares (org.). Apontamentos para a Histria da Imprensa na Bahia. Salvador: Academiade Letras da Bahia e Assemblia Legislativa do Estado da Bahia, 2005. Acerca da experincia no Dirio daBahia, Hermes Lima escreveu em suas memrias: [...] incorporei-me turma do Dirio da Bahia, velhorgo liberal, agora sob a direo de Henrique Cncio [...]. Fazamos jornalismo antes com esprito deamadores que de profissionais Clemente Mariani, Alosio de Carvalho Filho, Nestor Duarte, Sodr Viana,
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particular, seguia o costumeiro roteiro do Imprio e da Primeira Repblica, em que o
diploma de bacharel e a prtica jornalstica funcionavam como antecedentes importantes
para a carreira poltica. Escrevia ento, principalmente, artigos de crtica literria, a
exemplo da resenha que deixou do romance A Bagaceira, de Jos Amrico de Almeida;
com a leitura do paraibano, declarou ter recebido:
um verdadeiro batismo nas veias, tal a correspondncia sentida aocontato com suas pginas reais. Eu mesmo senti em mim a experincia. Aleitura deixou-me idntica sensao quela, quando, em viagem pelointerior, proporo que o mar ficou atrs e a zona da mata vai sedistanciando, vou sentindo, ao contato da capoeira rala, o cheiro a flor dosalecrins picantes (o serto cheira a flor) [...] Fiz, assim, minha viagemsentimental, atravs do livro evocador.65
Tambm em O Imparcial, j em 1930, Duarte escreveu um pequeno artigo sobre o
cangaceiro Lampio, que vale destacar. Aqui, interessante notar o que diz o autor a
respeito das influncias do meio (a caatinga) no que concerne ao fenmeno social do
cangao66:
Lampio quase nada, mas na caatinga alguma coisa de mais terrvel etemvel do que nunca ousar conceber a pequena e bem policiadaimaginao de todos ns, na cidade. Falamos muito em pegar Lampio,sem pensarmos em vencer a caatinga. Esta no se vence com coragempolicial. [...] Ali, no ermo, tudo annimo na vastido de um silncio deterra maldita. Nem uma estrada. Uns trilhozinhos tortuosos levam a gente
Alfredo Curvelo, Mrio Rego, Albrico Fraga, Luiz Viana Filho [...] Essa passagem pelo Dirio, vivemo-lacomo temporada num palco. Em: Hermes Lima, op. cit., p. 30.64 O Imparcial era um peridico mais novo, estabelecido em 1918. Inicialmente conduzido por Lemos Brito,foi depois dirigido por Homero Pires (quando Duarte foi redator) e, na dcada de 1930, sob outra direo,chegou a se tornar um dos principais rgos do movimento integralista na Bahia. V. Las Mnica ReisFerreira. Integralismo na Bahia Gnero, Educao e Assistncia Social em O Imparcial 1933-1937.Salvador: Edufba, 2009, especialmente o captulo 1.65 Nestor Duarte. Um Livro Nacional. Em: O Imparcial, Salvador, 28 de abril de 1928. Apud GiselleLaguardia Valente, op. cit.. O livro A Bagaceira apontado, por alguns crticos, como importante influnciana composio do romance Gado Humano, de Duarte. Cf. Waldir Freitas Oliveira. Apresentao. Em: NestorDuarte. Gado Humano. 2 edio. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo, Conselho Estadual de Cultura,EGBa, 1998.66 O clssico Os Sertes, de Euclides da Cunha (1902, vrias edies) parece ter inaugurado, na literaturascio-poltica brasileira, a percepo de que o meio geogrfico e social do serto modela nossa formaocomo nacionalidade. Recentemente, diversos trabalhos vm tambm se debruando sobre a temtica, como,por exemplo, dentre outros: Candice Vidal e Souza. A Ptria Geogrfica Serto e Litoral no PensamentoSocial Brasileiro. Goinia: Editora UFG, 1997 e Nsia Trindade Lima. Um Serto chamado Brasil Intelectuais e Representao Geogrfica da Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 1999.
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para a cilada, para um brinquedo trgico de esconde-esconde que estmais adiante. Lampio, ali, ainda no morreu, porque est de braosdados com a caatinga. [...] O estudo do meio, da sua fisiografia,mentalidade, hbitos e preconceitos, numa resenha pernstica e abundantesobre causas sociais, deixaria mostra a figura desse celerado, surgindo,no serto, determinantes histricas que s outras causas, tambm sociais,faro desaparecer.67
poca em que redigiu esse texto, Duarte j havia passado por uma experincia
profissional importante, que lhe possibilitou aprofundar ainda mais seus laos com a
realidade geogrfica e social do serto. Em 1926, pouco depois de formado, foi nomeado
Delegado do Convnio Interestadual de Combate ao Banditismo na Bahia, Alagoas e
Sergipe, e enviado para o municpio sertanejo de Jeremoabo, onde permaneceu por quase
um ano68. O Convnio, chancelado pelo ento Chefe de Polcia baiano (cargo que equivalia
ao atual Secretrio da Segurana Pblica), Bernardino Madureira de Pinho, foi estabelecido
com o objetivo de combater os grupos de cangaceiros que atuavam na rea da divisa entre
os trs estados, como o bando de Lampio, mas tambm para tentar conter o avano da
Coluna Prestes atravs da regio. Alm das foras do Convnio, os batalhes patriticos
vinculados aos coronis do interior do pas foram tambm essenciais ao governo federal
na campanha contra a Coluna (1925-1927). O Batalho das Lavras Diamantinas, por
exemplo, liderado por Horcio de Matos, chegou a persegui-la at a fronteira da Bolvia69.
Madureira de Pinho de quem Duarte era prximo70 e a quem, depois, inclusive
dedicaria o romance Gado Humano foi Chefe de Polcia durante os governos Ges
Calmon (1924-1928) e Vital Soares (1928-1930). Na sua gesto frente da polcia baiana,
67 Nestor Duarte. Leia quem quiser... Em: O Imparcial, Salvador, 5 de janeiro de 1930. Republicado emWaldir Freitas Oliveira, op. cit.68 De acordo com Antnio Loureiro de Souza, Baianos Ilustres, citado, p. 337.69 Sobre o ponto, v. Eul-Soo Pang, j citado, que acrescenta: essas unidades recebiam dinheiro e armas dogoverno federal, e os oficiais e todos os outros homens receberam postos como se pertencessem ao Exrcito(p. 187).70 Cf. o relato de Pricles Madureira de Pinho, filho de Bernardino, no perfil biogrfico que escreveu do pai:os ltimos anos de Madureira de Pinho na Bahia, at 1934 [quando se mudou para o Rio de Janeiro],transcorreriam entre um grupo de amigos, no seu gabinete do antigo Corredor da Vitria, onde voltara aoslivros com entusiasmo. Alosio de Carvalho Filho, Nestor Duarte, Joo Mendes, Lus Viana Filho, JaymeJunqueira Ayres, Nlson Pinto, Albrico Fraga, para citar apenas os mais ntimos, formavam o grupo que,com os filhos, constitua sua famlia. Leituras, planos de trabalhos, organizao de revistas especializadas[como a Revista de Cultura Jurdica, criada em 1929, que teve curta existncia], concursos para auniversidade, tudo se planejava ali onde se encontravam instrumentos de ao na biblioteca escolhida e sordens de todos. Em: Pricles Madureira de Pinho. So Assim os Baianos. Rio de Janeiro: Editora Fundo deCultura, 1960, p. 193.
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duas aes se destacam. Primeiro, a criao do Conselho Penitencirio, rgo colegiado
formado por mdicos e juristas com o objetivo de prestar uma assessoria tcnica qualificada
ao Judicirio, em matria de fiscalizao da execuo penal e de outorga do livramento
condicional. (De passagem, creio que vale a pena ressaltar que o pai de Nestor Duarte, o
desembargador Francisco Duarte Guimares, foi presidente desse Conselho entre 1926 e
1931, quando veio a falecer)71. E, em segundo lugar, a consecuo da reforma que
estabeleceu a chamada polcia de carreira, tornando o cargo de delegado exclusivo de
bacharis em Direito nomeados pelo Executivo estadual. Esta ltima foi uma inovao
polmica, de grande repercusso, uma vez que limitou a tradicional influncia dos chefes
polticos locais sobre a autoridade policial nos municpios do interior72. E foi no contexto
da reforma da polcia de carreira que Nestor Duarte foi nomeado delegado do Convnio
Interestadual de Combate ao Banditismo na Bahia, Alagoas e Sergipe, a que j nos
referimos.
O governo Ges Calmon notabilizou-se como um dos primeiros momentos, na
histria da Bahia republicana, em que se realizaram algumas reformas modernizadoras da
mquina pblica e da burocracia, como no caso das iniciativas de Madureira de Pinho
listadas acima. A proposta de instituir o Imposto Territorial, apesar de derrotada pela
oposio dos coronis (pois taxava a propriedade imvel, base de seu poder poltico), teve
tambm o mesmo sentido73. Outras aes do governo chegaram a ter um sentido liberal e
mesmo democrtico, como a reforma educacional liderada pelo ento diretor da Inspetoria
Geral de Educao Pblica, Ansio Teixeira, que procurou tornar obrigatria a educao
pblica e gratuita e, por conta da qual, a dotao oramentria do estado destinada ao
ensino, que nos anos de 1924 e 1925 era de 6,98%, cresceu, em 1926, para 17,44%74.
71 Cf. Thas Dumt Faria. A Festa das Cadernetas O Conselho Penitencirio da Bahia e as TeoriasCriminolgicas Brasileiras no Incio do Sculo XX. Dissertao de Mestrado em Direito. Universidade deBraslia, 2007, captulo II.72 Cf. Pricles Madureira de Pinho, citado, p. 186: a organizao de um corpo de delegados, bacharis emDireito, para substituir as autoridades locais, identificadas com os grupos polticos dominantes, constituasubverso de um regime de ordem pblica e social secularmente arraigado em nossa vida poltica. Sobre oponto, v. ainda Consuelo Novais Sampaio, op. cit., p. 208.73 O assunto est bem analisado no livro da historiadora Consuelo Novais Sampaio, citado na nota anterior,onde se l, ainda, a informao de que em 1929, o governador Vital Soares considerou prudente a suspensotemporria do imposto territorial, por ser ainda inadaptvel ao meio, indo de encontro a costumestradicionais da populao (p. 209).74 Mais uma vez, Consuelo Novais Sampaio, op. cit., p. 208. Lus Henrique Dias Tavares, em sua Histria daBahia, citada (p. 350), completa a informao: est na ordem de importncia das reformas educacionais
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Nestor Duarte j era prximo de Ansio Teixeira nessa poca, e foi um dos que o
assessorou na feitura do projeto de reforma, logo aprovado75.
Francisco Marques de Ges Calmon (1874 1932), conhecido advogado e
banqueiro (presidente do Banco Econmico e do Instituto da Ordem dos Advogados da
Bahia), apesar de pertencer a uma das famlias mais tradicionais da poltica baiana, com
nomes de destaque desde os tempos do Imprio, nunca havia ocupado qualquer outro cargo
pblico antes de se tornar o maior mandatrio do estado, em 1924. Seu irmo Miguel
Calmon que era um poltico de prestgio, ministro da Agricultura, Indstria e Comrcio de
Artur Bernardes (1922-1926) e um dos lderes da oposio ao ento governador, J. J.
Seabra. A candidatura Ges Calmon foi lanada por Seabra, em uma tentativa frustrada de
atrair para seu lado o grupo calmonista, mas que acabou significando sua sada do poder e a
ascenso da oposio, que se manter no governo at a Revoluo de 1930.
Jos Joaquim Seabra (1855 1942) havia dominado a poltica baiana por doze anos,
desde o bombardeio de 191276. Filho de um rico comerciante, formou-se pela Faculdade de
Direito do Recife (onde lecionou por vrios anos no fim do sculo XIX) e se tornou um
poltico de bases urbanas e mtodos muitas vezes acusados de truculentos. Governou o
estado em dois mandatos (1912-1916 e 1920-1924). Depois de Ruy Barbosa, foi
provavelmente o poltico baiano de maior destaque nacional no perodo, ministro nas
presidncias Rodrigues Alves e Hermes da Fonseca e candidato a vice-presidente em 1922,
na chapa oposicionista encabeada por Nilo Peanha. O preo da derrota nessa ltima
campanha foi a perseguio renhida que lhe passou a mover o presidente eleito, seu antigo
aliado Artur Bernardes, culminando com uma interveno federal, no final de seu segundo
mandato, que o tirou do poder na Bahia. Seabra permanecer na oposio estadual at
1930, quando tentar aderir ao movimento revolucionrio da Aliana Liberal. Mas,
rejeitado pelos jovens tenentes revolucionrios, por ser considerado um dos
carcomidos da Repblica Velha, acabar se unindo a seus antigos inimigos em uma
realizadas no Brasil naquela dcada: So Paulo, 1920; Cear, 1923; Bahia, 1925; Minas Gerais