Post on 04-Feb-2021
COMUNIDADE SÃO JOSÉ DO MATA FOME A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE CULTURAL
CARMEN LÚCIA MIRANDA CANTUÁRIA*
SANDRA UANNE CANELA DA MOTA*
RESUMO Este artigo retrata os modos de vida da Comunidade São José do Mata Fome, localizada em Macapá (AP). Residem famílias remanescentes de quilombolas com relações de parentesco, agricultura familiar e religiosidade nos santos católicos. O objetivo centra-se na importância dos festejos de São José para esta comunidade como forma de preservação das raízes, significados e autoafirmação. Levantaram-se hipóteses de que a festa é um instrumento eficaz para a identidade cultural e a religiosidade se faz presente, expressando mais que a crença desse povo. Utilizou-se bibliografia pertinente ao tema, resistência, fugas e protestos de quilombos e mocambos na Amazônia Colonial e a tradição cultural nas festas aliando catolicismo e cultos afros. Para a pesquisa de campo buscou-se, enquanto recursos metodológicos, ouvir as fontes para entender o sentido dos festejos no decorrer do tempo. Reconhecer o papel de cada indivíduo ou grupo social na estrutura da festa e quais foram as mudanças. Os registros, com fotografias e gravações, e entrevista aberta com a filha do primeiro morador. O método proposto concerne à história oral a partir da construção das fontes e com a constituição do documento através da memória e da identidade. O recorte temporal vai desde a criação do lugar, em 1950 até os dias atuais. Palavras-chave: Religiosidade. Festas. Quilombos. Comunidade.
* Carmen Lúcia Miranda Cantuária. Pós-Graduanda em História e Historiografia da Amazônia pela Universidade Federal do Amapá. Graduada em Licenciatura e Bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Amapá. E-mail para contato: lucantuaria13@gmail.com. * Sandra Uanne Canela da Mota. Pós-Graduanda em História e Historiografia da Amazônia Universidade Federal do Amapá. Graduada em Licenciatura Plena em História pela Universidade Vale do Acaraú. E-mail para contato: wannymota@hotmail.com
2 INTRODUÇÃO
Esta pesquisa apresenta os modos de vida da Comunidade São José do Mata
Fome, localizada a 20 quilômetros de Macapá, no Estado do Amapá. Foi criada em 1950,
sendo o primeiro morador o Senhor Eugênio da Silva Nery. Atualmente residem 85 pessoas
remanescentes de quilombolas. O contexto do lugar refere-se a relações de parentesco, a
religiosidade centra-se nos cultos e festas a São José.
O que se pretendeu levantar diz respeito à importância dos festejos de santos
enquanto eixo identitário da comunidade, forma de preservação da cultura, significados e
autoafirmação. As hipóteses levantadas refere-se que a festa é um instrumento eficaz na
preservação da identidade cultural dos moradores da Comunidade do Mata Fome, capaz de
apresentar as raízes históricas da gênese daquele lugar; a religiosidade se faz presente e é um
método para expressar mais que a crença desse povo, e sim sua própria vida e saberes.
Buscou-se conhecer a contribuição da matriz quilombola na região do Mata Fome,
verificar as metodologias que essa comunidade possui para a preservação de sua raiz
afrodescendente, contemplar os moradores do ontem e do hoje, como agentes ativos na
formação do processo histórico, compreender a força da religiosidade na comunidade como
um instrumento que possui múltiplas funções e mostrar a Festa de São José como sendo um
dos principais meios para a manutenção da identidade histórico e cultural.
Será oportuno trabalhar a definição de quilombo e a preservação das raízes
histórico-culturais, onde os livros Festa e Ritual de José Clerton Martins (2002);
Quilombolas: tradições e cultura da resistência de Rafael Anjos (2006); Festa dos Quilombos
de Gloria Moura (2012) e Quilombos em Festa de Carla Ladeira Águas (2012) servirão como
aporte teórico.
Para se pontuar acerca do “ser quilombola” e as formas de constituição de
quilombos no Amapá a partir da resistência, conflitos, fugas e formas de protestos, são
oportunos os estudos de Flávio dos Santos Gomes (1999; 2005). Rebuscando identidade e
memória no que tange às festividades na Comunidade São José do Mata Fome, se recorreu
aos clássicos Jacques Le Goff (1990) e Astor Antônio Diehl (2002).
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O método utilizado concerne à história oral com referencial de Gwyn Prins e Ciro
Flamarion Cardoso (1992 e 1997). A pesquisa de campo, como fonte para compreender os
modos de vida e as formas de relações nos festejos, ocorreu em novembro de 2013, com
observação, registro de imagens do local e entrevista com a Senhora Raimunda Nery.
PROTESTO NEGRO NO AMAPÁ: A RESISTÊNCIA DÁ INÍCIO AOS QUILOMBOS E MOCAMBOS
Para se falar de quilombos e mocambos é necessário referenciar sobre liberdade.
Nesse sentido, Flávio dos Santos Gomes (1999; 2005) avalia que a região do Amapá, no final
do século XVII e início do século XVIII, por constituir fronteira, interesses e fugas de
escravos descortinavam esse ideal.
A região do Amapá – justamente a que divisava com a Guiana Francesa – era a que mais causava apreensão. Com ajuda de comerciantes e grupos indígenas, negros, escravos, tanto do lado português como do francês migravam à procura da liberdade. Desde 1732 existia, porém, um tratado internacional assinado pelas duas Coroas, acordando a respeito da devolução de negros fugitivos. As disputas territoriais tornavam, entretanto, o controle e o policiamento dessa área cada vez mais difícil. Havia desconfiança mútua entre França e Portugal com relação aos domínios coloniais da região. (GOMES, 1999, p. 226).
Apesar dos acordos, as fugas aconteciam, sendo constantes e em massa. Havendo
restituição e castigos. O problema era bem mais complexo e as formas de fugas, das mais
diversas, ocorriam através da via fluvial, com canoas e jangadas. “Os quilombolas (tanto os
fugidos de Caiena como os do Pará) estabeleciam seus mocambos bem junto às fronteiras,
migrando por toda a região”. (GOMES, 1999, p. 232-233). Observa-se que este espaço de
fronteira representava lugar seguro para estes fugitivos e quilombolas. Além de constituírem
relações econômicas com os colonos franceses.
Nesse contexto, mocambos na Amazônia Colonial eram dignos de preocupação
por parte das autoridades, as quais pretendiam extingui-los. “Rapidamente, mocambos
começavam a aparecer e se multiplicavam. De norte a sul, leste a oeste da imensidão desta
área colonial, mocambos e/ou quilombos eram formados”. (GOMES, 1999, p. 252).
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Cabe destacar que os mocambos eram constituídos tanto por negros quanto por
indígenas, como explica Gomes (2005, p. 64), o que é pouco citado nos documentos.
Notando-se que tais resistências e estratégias revelavam uma reorganização “em grupos
étnicos e socioeconômicos”. Crescendo, assim, estas formas de organização e suas táticas de
defesa e proteção.
Na Amazônia Colonial, negros e índios fugitivos criavam certa estabilidade.
Tornando-se audaciosos com artilharia e espécie de fortificações. Além de haver uma rede de
comunicações e hierarquia política, de acordo com o tempo no lugar. Faziam visitas à Vila de
Macapá, especialmente nos dias de festa, ou, para praticar furtos, sequestros e trocas
mercantis, o que gerava, para o Estado, gastos e responsabilidades. (GOMES, 1999; 2005).
De um lado, a capacidade de mobilização frente à mata e às doenças e notícias
sendo repassadas. Por outro lado, o efeito simbólico, social e econômico para o estado. Figura
aqui, a região do Amapá – ainda que não fosse a única – como um dos principais centros de
mocambos.
DEFINIR PARA ENTENDER: O QUE É UMA COMUNIDADE QUILOMBOLA?
Ao voltar o olhar sobre os quilombos e mocambos, cabe neste trabalho, realizar
um recorte acerca das comunidades remanescentes. Para tanto, são relevantes as palavras de
Gloria Moura (2012, p. 32) que nas “comunidades negras rurais onde se agrupam
descendentes de escravos que vivem da cultura de subsistência”. A autora realizou sua
pesquisa no meio rural brasileiro, onde a história se conta por meio das proteções,
perseguições, senzala e casa grande, trabalho e rituais. A posse da terra pode ter se dado de
várias formas, seja por quilombo de resistência ou pelas doações.
O conceito de quilombo (ou mocambo) no Brasil, na visão do rei português ao
Conselho Ultramarino, em 1740, “como toda habitação de negros fugidos que passem de
cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões
neles”. (MOURA, 2012, p. 45).
Perscrutando este vocábulo na linguagem africana, observa-se, que os kilombos
surgem a partir da formação de vários grupos étnicos que saíram de suas comunidades, os
5 quais, nesses espaços, viviam seguindo o “modo africano de ser”, com plantações, pesca e
artesanato que lhes davam o alimento e formas de trocas com os vizinhos.
As trocas culturais e as alianças foram feitas intensamente entre africanos oriundos de diversas regiões da África, além, é claro, daquelas nascidas das relações que desenvolveram com habitantes locais, negros e mestiços aqui nascidos, brancos e índios (MOURA apud REIS; GOMES, 2012, p 47).1
Atualmente, falar de quilombo remonta a se pensar em novos significados, não se
tratando de grupos totalmente isolados ou homogêneos. Todavia, cabe ressaltar que suas
identidades são marcadas por experiências vividas enquanto continuidade do grupo.
Desde a reforma constituinte de 1988, no Brasil, abriu-se a oportunidade de
reconhecimento dos espaços que guardam relação histórica com a escravidão, assegurando-
lhes direitos sobre os territórios ocupados, com o reconhecimento e prioridade de posse sobre
tais. O Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT),2 trouxe
consigo um aparato legal que procura relacionar comunidades negras contemporâneas,
portadoras de determinadas especificidades étnicas, com experiência histórica com
quilombos.
Nesse sentido, Carla Águas (2012) observa que, na contemporaneidade, falar de
quilombo vai além das apreciações arqueológicas ou biológicas. Não se tratando, também, de
simples grupos isolados ou homogêneos. O papel de resistência, manutenção e reprodução de
seus modos de vida remetem à consolidação de um território próprio.
Rafael Anjos (2006) confirma as definições acima de que comunidade quilombola
se origina no campesinato negro que, ao ocupar a terra, alcançam autonomia política e
econômica. Já, ao se referir a esse papel na contemporaneidade, reconhece que esse conceito
associa-se a algo mais amplo, sem, no entanto, esquecer os ideais de resistência em manter o
território étnico, mesmo que por vezes considerado inóspito, conseguindo nele se organizar e
reproduzir seu particular modo de vida.
1 Consultar: REIS, J. J.; GOMES, F. dos S. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 2 Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_28/artigos/Art_Claudio.htm.
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Vivências estas compreendidas e externalizadas através das festas em homenagem
aos santos protetores da comunidade, que representam a metodologia de preservação de suas
raízes históricas e culturais. Um meio de resistir às forças do tempo, explicitando sua
identidade cultural, o que será ponderado a seguir.
MOMENTO DE FESTA: UM MEIO PARA A PRESERVAÇÃO DAS RAÍZES HISTÓRICO-CULTURAIS QUILOMBOLAS
Ao associar identidade e memória, Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique
Silva (2009, p. 204) consideram: “sem recordar o passado não é possível saber quem somos.
E nossa identidade surge quando evocamos uma série de lembranças. Isso serve tanto para o
indivíduo quanto para os grupos sociais”.
Na comunidade popularmente conhecida como Mata Fome, essa premissa é
seguida, não exclusivamente pela configuração da comunidade que é formada pelos laços
parentais daquele que na década de 50 do século passado, se assentou na região, dando origem
ao povoado, igualmente, através da realização de festejos que homenageiam santos. Neste
contexto, trataremos especificamente da Festa de São José.
Carla Águas (2012) constatou que capacidade de manutenção dos elos identitários
da comunidade quilombola se dá através da continuidade das festas. A realização de festas em
homenagem a santos vêm imbuídas dos quesitos de manutenção da aurora daquele lugar. As
famílias que foram as precursoras da comunidade, mantém vivas suas matrizes, através da
realização de festividades em homenagem aos santos protetores.3
Festa é um mecanismo capaz de transformar um tempo em outro, pois representa
transição e externaliza as mutações da sociedade na qual está inserida, segundo José Clerton
Martins (2002). Dessa maneira, a festa de São José exprime o momento para demonstrar a
gênese daquela comunidade, o valor do seu berço afro e o poder da tradição, fazendo com que
sua matriz seja mostrada e provoque sua valoração.
A memória é parte integrante da festividade, sua valorização se torna eficaz à
medida que faz florescer nos participantes a recordação do que aconteceu há mais de meio
3 Em entrevista com antigos moradores do Quilombo de Mata Cavalo, em 2006, feita para sua Tese de Doutorado em Sociologia pela Universidade de Coimbra.
7 século e busca o reconhecimento e a representação da cultura quilombola através de músicas e
danças, confirmando o que Jacques Le Goff (1990, p. 477) expressa: “a memória, onde cresce
a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o
futuro”.
Michael Pollack (1989) ao falar de memória, esquecimento e silêncio atenta que a
continuação da festa, perpetua o sentimento de identificação com uma verdade, que foi a
muito tempo vivida e que não pode ser esquecida.
Esses pontos de referência de uma época longínqua, frequentemente os integramos em nossos próprios sentimentos de filiação e de origem, de modo que certos elementos são progressivamente integrados num fundo cultural comum a toda a humanidade. (POLLACK, 1989, p. 10).
O fato de atribuir à festa o sentido de explicitar a realidade do lugar é relevante
para entendermos que, outrora, essa significação poderia ser entendida somente pelos
moradores mais antigos do Mata Fome. Porém, com a continuidade da celebração passa a ser
compreendido como um símbolo cultural da comunidade remanescente, demonstrando o
orgulho de ser negro. A participação de outros sujeitos – moradores de comunidades próximas
ou mais distantes – revela como pano de fundo a integração dos aspectos culturais e o
compartilhamento da crença.
UM OLHAR SOBRE A COMUNIDADE SÃO JOSÉ DO MATA FOME
São José do Mata Fome é uma comunidade quilombola do Estado do Amapá.
Com um acesso de 15 quilômetros de estrada asfaltada, na AP 70, também conhecida como
Rodovia do Curiaú. Localizada entre as comunidades Ressaca da Pedreira e Casa Grande.
Saindo da Rodovia, percorre-se um ramal de chão de terra durante dois quilômetros para
chegar às residências.4
4 De acordo com a Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Amapá, existem 138 comunidades. Devendo-se ressaltar que a Comunidade ainda não recebeu o título definitivo de área quilombola através do reconhecimento da Fundação Palmares. Para mais detalhes, consultar: http://www.cpisp.org.br/terras ou http://www.mds.gov.br.
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No que diz respeito à origem do lugar, o Mata Fome surge, em meados da década
de 50, do século passado, as terras pertenciam ao Senhor José Luiz, morador da Ressaca do
Limão, distante oito quilômetros. As doações das imagens de São Sebastião, São José e Nossa
Senhora da Conceição foram feitas ao Senhor Eugênio da Silva Nery, com a garantia de dar
continuidade aos festejos e louvor desses santos.
O nome se destaca em homenagem ao santo protetor, “São José” e devido a
fartura do lugar, com muitas frutas e comidas, “Mata Fome”. Dessa forma, tanto os festejos
quanto a riqueza de alimentos levavam grande número de pessoas a se deslocarem de suas
localidades até à Comunidade.
Ao voltar o olhar sobre a Comunidade do Mata Fome nos dias atuais, foi feita
entrevista com a Senhora Raimunda Nery, 53 anos, filha do primeiro morador e Vice-
Presidente da Associação de Moradores.
Raimunda Nery é uma pessoa de uma simplicidade sem igual, fala pausada, no
rosto as marcas de uma vida de labuta na plantação e colheita ao sol. Com seu conhecimento
empírico narrou que o plantio da mandioca é feito nos meses de dezembro, janeiro e até em
fevereiro. E o tempo de colheita leva no máximo oito meses. Esse cultivo e venda representa
uma das principais fontes de renda.
Quando questionada sobre as roças apontou com os lábios que ficariam “logo
ali”. Tal percurso a pé leva quatro quilômetros, de ida e volta, o que para algumas pessoas
seria algo cansativo e desgastante, levando-se em consideração o sol. No entanto, para esta
senhora de meia idade, que traz as mãos calejadas, “trabalhar, pegar no batente se aprende
desde criança”, com singular orgulho apreendido com o pai.
As roças pertencem a cada família, onde se planta e colhe. A farinha é o principal
produto que a Comunidade produz, sendo comercializada em Macapá. Para complementar a
economia do lugar, plantam banana e melancia.
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Figura 1: Senhora Raimunda Nery descascando a mandioca para ralar. Foto: Edenval Calado.
Figura 2: Farinha torrada na Casa de forno. Foto: Edenval Calado.
O contexto da Comunidade Mata Fome é bastante simbólico, já que lá residem
vinte famílias, sobrevivem da agricultura familiar e possuem fortes laços com o catolicismo e
ritos afros. Tais características foram verificadas por Gloria Moura (2012) ao realizar sua
pesquisa na Comunidade Mato do Tição, em Minas Gerais.
Segundo a autora, quase todos que ali residem são parentes. Pescam, criam
animais e plantam hortas. A rotina está ligada ao ciclo da natureza, já que os fenômenos
naturais afetam o mundo do trabalho, as relações sociais, religiosas, entre outros. Suas
preocupações se definem através do ecossistema. A natureza reforça a cultura, os mitos e as
tradições. A crença interfere na caça e na pesca.
No Mata Fome, as políticas públicas refletem uma conjuntura de precariedade,
pois faltam escolas e assistência médica nas proximidades, o que os leva a irem até centros
urbanos na capital amapaense. Do mesmo modo, conforme já relatado, não existe urbanização
do ramal, o que dificulta o acesso à região.
Figura 3: Comunidade São José do Mata Fome. Foto: Wanessa Fortunato.
Figura 4: Posto de Saúde. Foto: Wanessa Fortunato.
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Quanto às celebrações dos santos, objeto deste estudo, Raimunda Nery avalia que
são os momentos mais alegres na Comunidade, sendo oportuno citar que na região existem
outras áreas quilombolas, havendo um deslocamento e integração entre estas.
A FESTA DE SÃO JOSÉ NA COMUNIDADE DO MATA FOME
Para se pontuar sobre festejos, cabe neste espaço, referir-se a identidade e
memória, sendo válidas as apreciações de Astor Antônio Diehl (2012) de que, na
historiografia contemporânea, a rememorização (estudo da memória e da identidade) deve ser
um processo dinâmico, fazendo-se uma ressubjetivação do passado. As fontes são
fundamentais, sejam estas documentais ou orais; ao que as primeiras não se tornam em prova,
e sim, um recurso onde essa documentação foi organizada. Já, as segundas, podem vir
pautadas na visão do “outro” e na representação de determinado indivíduo naquela sociedade.
Notadamente, Le Goff (1990, p. 477) infere que “memória é um elemento
essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das
atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”. É
possível perceber que a Festa de São José assume essa função de preservação identitária das
raízes étnicas dos moradores da Comunidade do Mata Fome, através dos costumes e cultura
afros, fazendo com que os participantes sintam e respirem essa tradição.5
O fato de compartilhar as experiências que permitem reconhecer as origens
históricas, as formas de pensar e agir e sua representação vêm imbuídas da preocupação em
não perder o sentido de coletividade e de permanência, ou seja, há o relacionamento entre a
memória, a história e a cultura, que são ingredientes essenciais para a formação social.
As menções feitas por Le Goff e Diehl (1990 e 2012) acerca de identidade e
memória se traduzem nas conversas com a Senhora Raimunda Nery, a qual narrou que –
através de relatos de seu pai e de sua própria vivência – as festas representam a conservação
da cultura entre as comunidades.
5 Eric Hobsbawn (2002) no livro A invenção das tradições afirma que uma das características mais fortes da tradição é sua característica invariável a partir de um conjunto de práticas fixas que, por serem sempre repetidas de uma mesma forma, remeteriam ao passado, real ou imaginado.
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Neste ponto, torna-se válido analisar sobre história oral, enquanto recurso
metodológico, para o historiador. Ciro Flamarion Cardoso (1997) destaca uma menor
evidência às fontes escritas e a uma ampliação ao uso das fontes orais. Tal reflexão denota a
vertente que se pretende buscar de esgotar as possibilidades dos documentos e partir a
oralidade, enquanto representação das mentalidades.
Confirmando esse pensamento, Gwyn Prins (1992) explica haver razões mais
profundas para este embate, pois:
Os historiadores vivem em sociedades alfabetizadas e, como muitos dos habitantes de tais sociedades, inconscientemente tendem a desprezar a palavra falada. Ela é o corolário de nosso orgulho em escrever e de nosso respeito pela palavra escrita.
Portanto, a história oral deve atuar como memória, tradição, passado e presente,
com detalhes, com humanidade, emoções e, sempre, ceticismo no que diz respeito ao todo.
A fala de Raimunda Nery constata: “é preciso lembrar o passado porque muita
coisa vai se perdendo. Eu ajudava meu pai nas festas. Eu ensino pros meus filhos, netos que
devem continuar as festas. Essas festas trazem nossa cultura”.
E, por falar em cultura negra, herança quilombola, e, de que forma os festejos
ajudam nessa preservação, a Senhora afirma: “a gente comemora os santos da Igreja Católica
e aproveita para fazer um batuque, um barulhinho lembrando que somos negros, nossa
cultura”. Notadamente, vê-se a presença marcante do catolicismo e dos cultos africanos; pois,
São José representa a Igreja Católica (figura 5) enquanto que a percussão, com os tambores de
Marabaixo (figura 6),6 são símbolo dos negros africanos no Amapá.
6 De acordo com Maria do Socorro Oliveira (1999, s/d), o Marabaixo “consiste numa prática religiosa de pessoas negras, remanescentes de quilombos, que expressam sua fé através da dança e do canto acompanhados por tambores, e da degustação da gengibirra (bebida alcoólica). (...) uma reunião de práticas religiosas e profanas de iniciativa popular, que não têm nada a ver com os cultos católicos eclesiásticos”.
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Figura 5: Capela de São José. Foto: Wanessa Fortunato.
Figura 6: Tambor de Marabaixo. Foto: Wanessa Fortunato.
Figura 7: Senhora Raimunda Nery e a Ministra da Igualdade Racial, Luiza de Bairros, no ano de 2011 em visita à Comunidade Mata Fome.7
É o que Gloria Moura (2012, p. 117) chama de “cultura da festa” e pertencimento
ao grupo:
Longe de se encontrarem “isolados”, vítimas do “atraso” e da pobreza no meio rural, os habitantes das comunidades negras vivem um processo dinâmico de criação e recriação de sua identidade étnica em torno de uma cultura da festa. O calendário festivo perpassa todo o ano civil e sobrepõe a ele um outro ano sagrado/religioso, que é responsável por manter aceso o espírito da diferença.
Um bom exemplo disso é que outras comunidades próximas ao Mata Fome
comemoram santos, inclusive, São José; sendo que, quando acabam as festividades nesse
local, logo, iniciam na Comunidade do Abacate da Pedreira. Além disso, participam do
calendário do estado referente às datas africanas, devendo-se citar, a Semana da Consciência
Negra que antecede o dia 19 de novembro, promovido pela União dos Negros do Amapá
(UNA).
Os festejos para São José, padroeiro de Macapá e protetor da referida
comunidade, ocorrem nos dias 18 e 19 de março. Inicia-se bem cedo com um café da manhã
e, em seguida, o levantamento do mastro. Ao meio-dia é servido almoço. À tarde
apresentação de Marabaixo. À noite atrações musicais. No outro dia, ocorre torneio de
futebol. À tarde, celebração da missa e, a procissão do padroeiro pela comunidade. Ao pôr-
7 Créditos da fotografia para o site: http://www.dalvafigueiredo.com.br/saojosedomatafome. .
13 do-sol, o mastro é derrubado e iniciam uma corrida de cavalos. A festa segue até a noite do
dia 20 de março.
Voltando para sessenta e quatro anos atrás, de acordo com Raimunda Nery, as
diferenças das festas “de agora” para àquelas “de antes” referem-se às questões relativas ao
tempo, o qual é menor; pois naquela época, os festejos duravam mais dias. Assim também,
mudança nos papéis sociais no que tange à organização e estrutura, que fica por conta dela.
Quanto à comida e bebida, cada comunidade visitante leva uma parte e dividem.
Décadas anteriores, durante as novenas serviam “bejucica”, feito de farinha de
mandioca e banana grande com café. A referida senhora criou o levantamento do mastro com
a bandeira do santo, a procissão, acompanhada de cavaleiros e seus cavalos em cortejo e, a
corrida de cavalos.8 O que permanecem para essas pessoas – moradores e visitantes – são os
desejos de fartura na colheita e proteção ao “Pai de Jesus Cristo, na terra”.
A tradição, conforme já mencionado, é algo marcante nos festejos, devendo-se
referenciar que uma “fusão e/ou superposição de religiões encontradas nos quilombos
contemporâneos está na África”. (MOURA, 2012, p. 121). É o sentido da fé, o apelo a um ser
superior. É a força ancestral pulsando nesses remanescentes da Comunidade São José do
Mata Fome.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A comunidade remanescente de quilombolas do Mata Fome constitui-se de
famílias negras organizadas em torno de um território que remete a memória da origem
histórica da região, onde, movido pela procura de um lugar para viver, o primeiro morador se
estabeleceu. A partir disso, iniciou-se um estilo de vida singular e um projeto de auto
reprodução que define e se encontra em um espaço de alteridade, uma territorialidade negra,
que não é apenas fundiária e agrária, no qual os laços parentais recriam o passado e o torna
vivo, com a compreensão que eles são os donos de sua própria história.
No Mata Fome, não há o receio de ser negro. Existe o orgulho e o apreço pelas
raízes quilombolas e a história de seus ancestrais, que remete a um outrora de luta e
8 Texto extraído do Blog: http://interiodoamap.blogspot.com.br/2011/02/sao-jose-do-mata-fome.html. .
14 resistência. Essa identidade é mostrada pela manutenção de práticas como a agricultura, o
beneficiamento da mandioca, a prática da subsistência familiar, métodos estes que não
sofreram mudanças com o passar de meio século e são símbolos da comunidade.
A religiosidade é tão forte que transpassa os limites da igreja e é vislumbrado nas
festas. É tão forte que é capaz de expressar o modo de vida desse povo, sua aurora embasada
resistência e na capacidade de sobreviver em um lugar distante, no qual a valorização da
natureza como principal meio de subsistência estão intrinsicamente ligadas e é a base da
economia até hoje.
A religiosidade é tão forte que é capaz de expressar autoafirmação enquanto
negros e agentes ativos de sua história, os quais optam por respeitar e manter suas raízes.
Através da religiosidade existe o sentimento de permanência do que é considerado bom e
alegre para os moradores, é exposta a tradição.
É possível então promover uma festa religiosa que engloba todas as estruturas
capazes de preservar e reavivar a identidade desse povo. É nesse contexto que os festejos em
homenagem ao santo protetor da comunidade surge. A Festa de São José serve para a
valorização do saber negro, expressa o poder de sua tradição e sua força pela manutenção das
raízes dos moradores da comunidade. É nesse momento que há o ápice do compartilhamento
das experiências que passam de pai para filho afim de que todos conheçam reconheçam e
compreendam a riqueza de sua história.
REFERÊNCIAS
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