Post on 21-Dec-2015
description
AUTARQUIA EDUCACIONAL DO VALE DO SÃO FRANCISCO
FACULDADE DE CIÊNCIAS APLICADAS E SOCIAIS DE PETROLINA
CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO
TARCIZIO AUGUSTO CAMPÊLO DEUSDARÁ
A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM DEFESA DOS
INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
PETROLINA
2014
TARCIZIO AUGUSTO CAMPÊLO DEUSDARÁ
A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM DEFESA DOS
INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
Monografia apresentada como exigência parcial do
grau de bacharelando em Direito à comissão
julgadora da Autarquia Educacional do Vale do
São Francisco pelo Prof. Pedro Henrique Matos
Souza de Santana.
PETROLINA
2014
TARCIZIO AUGUSTO CAMPÊLO DEUSDARÁ
A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM DEFESA DOS INTERESSES
TRANSINDIVIDUAIS
Defesa em __/__/__ Nota: _____
Banca examinadora:
____________________________________
Pedro Henrique Matos de Souza Santana (Orientador)
____________________________________
Bárbara Alves de Amorim (Especialista)
____________________________________
Catarine Marcelino (Especialista)
PETROLINA
2014
RESUMO
O Ministério Público é órgão incumbido da defesa e preservação dos interesses dapopulação, desde os referentes ao estado da pessoa até a guarda do patrimôniopúblico, histórico e cultural. A presente obra visa discutir a atuação do Parquet emdefesa dos interesses transindividuais, quais sejam, interesses difusos, coletivosstricto sensu e individuais homogêneos, que refletem situações onde se atingem osdireitos de uma pluralidade de indivíduos, estejam estes ligados por uma situaçãofática ou uma situação jurídica. Para isso, fazendo-se uso do arcabouço legal eacadêmico do Direito, mostrar-se-á quais são as ferramentas utilizadas peloMinistério Público, enfatizando a atuação judicial através da Ação Civil Pública,instrumento mais largamente utilizado na defesa dos interesses em questão.Ademais, serão demonstradas soluções alternativas que igualmente alcancem o fimalmejado, que é a promoção do acesso à justiça para as pessoas que não possuemcondições de provocar o Poder Judiciário por si próprias – ou quando as demandasindividuais são insuficientes para a solução dos conflitos.
Palavras-chave: Ministério Público. Acesso à justiça. Interesses Transindividuais.
Ação Civil Pública. Processo Coletivo.
ABSTRACT
The Public Ministry is an state institution responsible for protecting and preservatingpeople's interests, from individual's condition to public, historic and cultural patrimony.This work claims to discuss the Parquet performance in defense of transindividualinterests, namely diffuse interests, collective stricttly and homogeneous individual,which reflect situations that reach a plurarity of individuals, who are connected by afatual situation or a legal situation. For this, making use of Law legal and academicalframework, it will be shown what are the tools used by Prosecutors, emphasizing thejudicial activity by the Public Civil Action, which is the most widely used instrument indefense of these rights. Futhermore, it will be demonstrated how alternative solutionscan also reach its goal, which is to promote access to justice for people who do nothave conditions to cause Justice themselves – or when individual actions areinsufficient to solve those conflicts.
Keywords: Public Ministry. Access to justice. Transindividual interests. Public Civil
Action. Collective Process.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..............................................................................................................6DIREITOS E INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS.......................................................8
Os interesses transindividuais em meio ao interesse estatal....................................8Direitos e interesses: divergência..............................................................................9Conceituação de direitos transindividuais................................................................11Direitos difusos.........................................................................................................13Direitos coletivos (stricto sensu)..............................................................................15Direitos individuais homogêneos.............................................................................16Questões complementares sobre os interesses transindividuais............................17
ASPECTOS PROCESSUAIS DA ATUAÇÃO MINISTERIAL – LEGITIMIDADE, PRINCIPIOS E AÇÃO CIVIL PÚBLICA.....................................................................20
Legitimidade na defesa dos direitos transindividuais e o acesso à justiça pela atuação do Ministério Público..................................................................................20Princípios atinentes à tutela de interesses transindividuais....................................22Procedimento investigatório: o inquérito civil e as peças de informação................24Observações processuais acerca da Ação Civil Pública.........................................27
ALTERNATIVAS À AÇÃO CIVIL PÚBLICA, DEFESA PENAL DOS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS E PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE E ÀS MINORIAS........30
Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta e transação judicial.............30A intervenção por meio da Ação Popular.................................................................31O Ministério Público como impetrante do Mandado de Segurança Coletivo..........33A tutela penal dos interesses transindividuais.........................................................34Defesa do meio ambiente e dos grupos sociais diversificados...............................36
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................39REFERÊNCIAS ..........................................................................................................41
6
INTRODUÇÃO
O acesso à justiça é um princípio constitucional que, em simples
palavras, objetiva promover ao cidadão o direito de dirigir-se aos órgãos do Poder
Judiciário em busca da solução de determinado conflito, conferindo-lhe a
preservação de suas prerrogativas e o restabelecimento da sua dignidade enquanto
ser humano.
Numa sociedade como é a brasileira, onde a quantidade de demandas
judiciais provoca o emperramento da “máquina”, o acesso à justiça enfrenta
obstáculos que limitam o cidadão na sua militância em reaver o direito violado,
necessitando, assim, de amparo por meio de uma instituição que disponha de
melhor aparelhamento e organização. Contudo, não se fala apenas em demandas
individuais – este contra aquele, mas também em demandas coletivas, que
envolvem grupos e, muitas vezes, multidões transtornadas.
Seja por questões relativas à proteção do meio ambiente, do direito do
consumidor ou do acesso à saúde, um único fato pode gerar a necessidade da tutela
de interesses de dezenas, centenas ou milhares de pessoas, culminando em direitos
transindividuais de ordem difusa, coletiva ou individual homogênea. O presente
trabalho se encarregará de discriminar essas espécies de direitos coletivos (em
sentido amplo), argumentando acerca da importância do processo coletivo enquanto
propulsor de uma litigância mais célere e benéfica. Para tanto, é necessário não só
que a Justiça esteja apta a julgar essas demandas, como que igualmente exista um
denominador comum – um agente – capaz de catalisar tais interesses e reivindicá-
los através de um só instrumento.
Conforme será analisado nesta obra, o Ministério Público – ou Parquet,
denominação sinônima que será amplamente aproveitada – é um dos órgãos
legitimados a agir em prol dos interesses transindividuais, por meio, principalmente,
da Ação Civil Pública, sendo este um caminho de suma importância para tentar
dirimir litígios que vão além da dicotomia entre Direito Público e Direito Privado, uma
vez que revestidos por interesse eminentemente social. Discutir-se-á a natureza de
tal legitimidade em consonância com os princípios que regem as tutelas coletivas.
As ações coletivas têm, em geral, duas justificativas atuais de ordemsociológica e política: a primeira, mais abrangente, revela-se no princípio doacesso à Justiça; a segunda, de política judiciária, no princípio da economia
7
processual. (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2012, p. 35)
Resta saber, contudo, se a atuação do Ministério Público é eficiente na
solução dos conflitos supramencionados e se propicia o devido acesso à justiça
daqueles que necessitam de amparo jurisdicional, desafogando, ao mesmo tempo, o
volume de trabalho nos Tribunais. Com esta finalidade é que serão avaliados os
mecanismos do referido órgão, tais como a já citada Ação Civil Pública, além do
inquérito civil (instrumento de atividade investigatória) e os Ajustamentos de
Conduta.
A relevância deste estudo mostra-se comprovada através da nuance
metamórfica do direito, que não mais retrata somente a busca por interesses
individuais particulares, mas também aqueles tidos como difusos e transgressores.
Como experiência pessoal, traz-se o período de estágio na 5ª Promotoria de Justiça
de Juazeiro/BA, responsável, à época, por lidar com direitos difusos, enriquecendo o
conhecimento através do contato com o tema em apreço.
8
DIREITOS E INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
Os interesses transindividuais em meio ao interesse estatal
Já foi superada a ideia de que o direito serve para tratar somente de
meras questões de interesse individual, numa posição entre credor e devedor. Cada
vez mais se atenta para situações onde o bem-estar social é a causa de uma lide,
levando para o polo ativo da demanda uma quantidade indeterminável de pessoas.
De início, é o Estado que deve prover, através de sua política, o bem-
estar mencionado. Melhorias na educação, conservação do patrimônio público,
promoção de segurança, lazer, dentre outros fatores que compõem relevância
social. Há momentos em que a população é indagada a se manifestar, como nos
casos de referendos e plebiscitos, entretanto, com pouca assiduidade.
Por conseguinte, nem sempre os interesses do Estado se refletem no
anseio da população, quando ambos deveriam caminhar em consonância. Assim,
existe uma divisão conceitual entre interesse público (eminentemente estatal) e
interesse social (o bem geral da sociedade). Para Adriano Andrade, Landolfo
Andrade e Masson (2011, p. 16-17), há o interesse público primário, onde se
comportam os apelos populares em unanimidade social ou conflituosidade mínima, e
o interesse público secundário, transmitido através dos atos da Administração
Pública.
De modo mais crítico, pode-se conceber o interesse público, como um
todo, nas razões de agir do Estado pela esfera administrativa. É a forma estatal de
se portar diante do que julga necessário em relação a melhorias e manutenções das
mais diversas ordens. Paralelamente, o interesse social é o povo dando ênfase ao
que preceitua como fundamental ao progresso, tanto de forma imediata
(pavimentação de ruas, remoção de lixo) quanto de forma mediata (maior
investimento em saúde e educação). Infelizmente, não é raro haver conflituosidade
entre esses distintos posicionamentos.
Para melhor esclarecer a respeito de tal dicotomia, não há exemplo
mais palpável do que os dois eventos esportivos mais aguardados e celebrados a
nível mundial, que, oportunamente, acontecerão no Brasil: a Copa do Mundo de
2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Estado e população convergem no sentido de
que esses espetáculos serão memoráveis e trarão lazer singular ao país, além de
9
impulso extraordinário ao turismo, disso não há dúvida. Porém, cabe indagar,
afastando-se do frisson causado pelo clima de festejo, se há homogeneidade entre
interesse público e interesse social no que concerne aos jogos que se aproximam.
Não há.
Como leciona Mazzilli (2013, p. 49):
Ao tomar decisões na suposta defesa do interesse público, nem sempre osgovernantes fazem o melhor para a coletividade: políticas econômicas esociais ruinosas, guerras, desastres fiscais, decisões equivocadas,malbaratamento dos recursos públicos e outras tantas ações daninhas nãoraro contrapõem governantes e governados, Estado e indivíduos.
Assim, ainda que a vinda da Copa e das Olimpíadas tenha agradado
muitas pessoas, diante do mau uso do dinheiro público para a realização das obras
necessárias e dos casos de corrupção, resta claro que o interesse social teria
preferido que os esforços do governo estivessem voltados a outras ações, como a
utilização da verba para o aperfeiçoamento da saúde, tema recorrente em se
tratando de interesses transindividuais, como será posteriormente explanado. Logo
se observa que, mesmo trazendo pontos positivos, os esforços do interesse público
podem não ser suficientes para satisfazer o interesse social.
Não se pode, todavia, antagonizar completamente o interesse estatal.
Por vezes, a população anseia por medidas que são idealizadas mediante forte
impulso emocional, como o clamor pela redução da maioridade penal e a instituição
da pena de morte (além da situação prevista na Constituição Federal [BRASIL,
1988] para os casos de guerra declarada, em seu artigo 5º, inciso XLVII, alínea a).
Particularmente, entende-se que a melhoria do sistema prisional como um todo seria
suficiente para afastar tais reclames.
Finalmente, com o progressivo distanciamento entre o que o Estado
promove e o que a nação deseja, os direitos transindividuais têm o escopo de
buscar a satisfação de interesses que atinjam diretamente o bem-estar social, uma
vez que, por mais que se manifeste e se pronuncie o propósito almejado, o povo
nem sempre é atendido pelo governo. Ao menos pacificamente.
Direitos e interesses: divergência
Primeiramente, cumpre destacar a diferença (se existe) entre direitos e
10
interesses, já que ambas as denominações são utilizadas corriqueiramente em
caráter sinônimo.
Para Didier Jr. e Zaneti Jr. (2012, p. 88-94), a expressão “interesses” é
equivocada, pois se trata da defesa de “direitos” transindividuais, não meros
interesses. Justificam que o uso contíguo dos dois termos veio por transposição do
direito italiano, onde direitos subjetivos (caráter particular) são julgados pela justiça
civil e interesses legítimos (relacionados ao interesse social, onde há relação entre
particulares e administração pública) são analisados por órgãos da justiça
administrativa, no que se entende por dualidade da jurisdição. Na Itália, ambos são
tidos como direitos, ao passo que no Brasil, como prevalece a unidade da jurisdição,
a distinção entre interesses e direitos não faria sentido. Eis que concluem, em
esclarecedora citação:
“Os termos 'interesses' e 'direitos' foram utilizados como sinônimos, certo éque, a partir do momento em que passam a ser amparados pelo direito, os'interesses' assumem o mesmo status de 'direitos', desaparecendo qualquerrazão prática, e mesmo teórica, para a busca de uma diferenciaçãoontológica entre eles.” (WATANABE apud DIDIER JR. e ZANETI JR., 2012,pg. 94).
De forma mais objetiva, Mazzilli (2013, p. 62) fala de interesses
enquanto gênero, sendo direito subjetivo o interesse tutelado pelo ordenamento
jurídico. Uma vez que “nem toda pretensão à tutela judicial é procedente, temos que
o que está em jogo nas ações civis públicas ou coletivas é a tutela de interesses,
nem sempre direitos” (MAZZILLI, 2012, p. 62). Terminou, ainda, por entender que o
interesse não precisa estar tutelado pelo ordenamento, diferentemente do que se
interpreta quanto ao direito. É o que se depreende do que foi dito em tópico anterior,
com relação ao clamor da população pela instituição da pena de morte em casos
que vão além da situação de guerra declarada.
Parece mais acertada e didática, contudo, a posição de Adriano
Andrade, Landolfo Andrade e Masson (2011, p. 14-15), ao conceituarem “interesse”
como toda e qualquer pretensão que pode ou não encontrar respaldo no
ordenamento jurídico. O direito seria, por conseguinte, o interesse garantidamente
tutelado pela jurisdição em provento de uma pessoa, um ente ou a coletividade.
Alertam, ainda, que tanto a Constituição (BRASIL, 1988) quando o Código de
Defesa do Consumidor (BRASIL, Lei nº 8.078/90) consideram os dois termos de
forma indistinta, com os mesmos propósitos.
11
Diante das correntes expostas, entende-se mais plausível, para os fins
que esta obra visa, relacionar interesses transindividuais e direitos transindividuais
como sinônimos, posto que prevalece no Brasil a unidade da jurisdição (não existe
uma justiça eminentemente administrativa, para questões entre particulares e o
Estado) e que toda situação suplicante por uma demanda judicial ainda não é um
direito garantido (já que ainda não houve sentença e posterior trânsito em julgado),
necessitando haver instrução, com a devida obediência aos princípios do
contraditório e da ampla defesa. Sendo a pretensão tida como improcedente, não há
que se falar em interesse, muito menos em direito. A razão é simples: se não é
tutelado pelo ordenamento jurídico, não é direito, já que se configura como inerente
ao direito a sua possibilidade (ou mesmo obrigatoriedade) de tutela; tampouco é
interesse, visto que não há objeto a ser tutelado. Ademais, dado o fato que a CF/88
(BRASIL, 1988) e o CDC (BRASIL, Lei nº 8.078/90) não se preocuparam em
diferenciar tais institutos, depreende-se que a pormenorização não se faz
necessária.
Conceituação de direitos transindividuais
O público enquanto aparente e visível a todos, instrumento para a
posteridade, basilar à permanência do mundo como é conhecido para aqueles que
ainda nascerão. O privado como o íntimo, não divulgado, oriundo da própria
privação da relação com os outros. Na obra A Condição Humana, Hannah Arendt
(2007) discutiu uma bipolarização que até hoje não se tornou terreno pacífico nas
divagações do mundo jurídico.
No Brasil, durante muito tempo, o direito foi dividido simplesmente
entre Direito Público e Direito Privado. Não que estivesse errada, mas essa
dicotomia não mais prospera diante do crescimento de demandas que não
conseguem se encaixar numa definição tão simples.
Com os conflitos sociais gerados diante da Revolução Francesa e da
Revolução Industrial (ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p. 2-3),
acentuados devido a um modelo jurídico insuficiente para satisfazer os interesses de
todos, houve a formação de agrupamentos organizados para conseguir a atenção do
Estado. Os chamados “corpos intermediários” defendiam interesses que nem tinham
íntima conexão com o Estado e tampouco compunham relações meramente
12
individuais, se fixando numa linha centralizada.
Como resposta aos clamores desses corpos intermediários, os Estadosforam sendo gradualmente forçados a reconhecer direitos econômicos,culturais e sociais (direito à proteção contra o desemprego e condiçõesmínimas de trabalho, direito à educação básica, direito à assistência nainvalidez e na velhice etc.), que ficaram conhecidos como “direitos deigualdade” ou liberdades reais, concretas, materiais (por visarem à reduçãodas desigualdades materiais que então se disseminavam), ou públicaspositivas (pois implicavam prestações positivas do Estado para redução dasdesigualdades. (ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p. 3).
Assim foram criados os chamados Direitos Humanos de Segunda
Dimensão, capazes de tutelar interesses de uma classe ou grupo de pessoas,
alheios à bifurcação do Direito Público e Direito Privado. A partir desse ponto houve
um aprofundamento da referida tutela coletiva, culminando na proteção de direitos
da humanidade como um todo, independentemente de uma classe de indivíduos
determinados (Direitos Humanos de Terceira Geração). Por exemplo, fala-se do
direito de proteção ao meio ambiente equilibrado e à saúde, que são direitos
pertinentes a qualquer pessoa, sem distinções.
A bem da verdade, cada vez mais o meio social rejeita a distinção
entre o público e o privado. Tratar do privado não é mais falar de uma vontade
absoluta da parte hipersuficiente, eis que há normas de interesse geral a serem
consideradas, não sendo característica exclusiva do ramo público. Da mesma forma,
costumes do âmbito privado influenciam a flexibilidade do âmbito público, tendo-se
como exemplo a adequação das relações homoafetivas ao direito de família,
transformando o antigo conceito do seio familiar que abrangia necessariamente pelo
menos um homem e uma mulher. O crescimento da preocupação para com os
direitos fundamentais (desde a Constituição de 1988 [BRASIL]) mostra que, antes de
tudo, deve-se atentar para a dignidade e a liberdade do ser humano (MIGUEL;
SANTOS, p. 7).
Superada a discussão entre Direito Público e Privado, cumpre
conceituar os interesses transindividuais. Durante muito tempo se deu um sentido
homogêneo também às denominações de direitos transindividuais e direitos
coletivos, não havendo um certo parâmetro para a diferenciação de ambos, sendo
hoje entendido que direitos transindividuais (ou metaindividuais, supraindividuais)
são, simplesmente, direitos coletivos lato sensu. Ou seja, são direitos que atingem
uma amplitude de indivíduos, seja por uma relação fática, seja por uma relação
13
jurídica.
Tratam-se, por sua vez, do gênero, da reunião de direitos que vão além
do interesse individual. São espécies desse gênero os direitos difusos, os direitos
coletivos stricto sensu e os direitos individuais homogêneos. Cada espécie possui
uma finalidade distinta, mas todas promovem a tutela de direitos que extrapolam a
mera relação entre credores e devedores particulares. São situações onde uma
única ação (não uma ação judicial, mas uma ação gerada de um fato ou norma
jurídica) confere direitos, divisíveis ou não, a uma pluralidade de indivíduos.
Foi o CDC (BRASIL, Lei nº 8.078/90) que trouxe, de forma clara e
objetiva, a definição das espécies de direitos transindividuais. Embora trazidos em
legislação tão específica, os conceitos das espécies de direitos metaindividuais
também devem ser aceitos em relação a tutelas que não abordem necessariamente
questões de consumo:
Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimaspoderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos destecódigo, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titularespessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos destecódigo, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo,categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária poruma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos osdecorrentes de origem comum. (BRASIL, Lei nº 8.078/90)
Os pontos principais para a diferenciação das espécies de direitos
supraindividuais são: a possibilidade de identificar os seus sujeitos, bem como de
dividir o objeto tutelado; o fator que agrega os sujeitos – fático ou jurídico
(ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p. 20).
Direitos difusos
Foi lecionado pelo CDC (BRASIL, Lei nº 8.078/90) o interesse difuso
como sendo aquele que se presta à tutela de quantidade indeterminada ou
indeterminável de pessoas, gerada por uma relação fática de natureza indivisível.
Evidencia-se a amplitude deste direito quando se fala que ele tutela
uma quantidade indeterminada de pessoas. É o que ocorre, num exemplo clássico,
14
quando se veicula na televisão uma propaganda enganosa. Impossível saber
quantas pessoas estavam assistindo à TV enquanto a propaganda ia ao ar, mas
todas as que foram atingidas ganharam o mesmo respaldo para desejarem que o
comercial não mais seja transmitido, assim como as que poderiam ter assistido. Ou
seja, não se considera somente a exposição efetiva, mas igualmente a potencial.
Quando se abre um buraco numa rua movimentada, o dano não é atinente
exclusivamente às pessoas que moram nas proximidades, mas também aos
indivíduos que pela rua passam habitualmente ao se deslocarem ao trabalho, ou
mesmo a quem eventualmente por ela transita num passeio.
Todos estão necessariamente interligados. Existem interesses tão
abrangentes que podem corresponder até mesmo ao próprio interesse público,
como a preservação do meio ambiente como um todo. Outros interesses, embora
partilhados por certa coletividade, não transmitem o interesse geral da sociedade,
como a conservação das ruas do município de Petrolina, em Pernambuco. Contudo,
também há determinados interesses que representam parcela incerta, quando não
minoritária da população, como o apoio à legalização da maconha.
Por “circunstâncias de fato” entende-se que são casos onde não se
exige um vínculo jurídico prévio. É fato que todos têm direito à saúde, ainda que não
contribuam com a Previdência Social (INSS), ainda que não estejam protegidos por
Planos de Saúde ou que não tenham celebrado qualquer contrato. O direito difuso à
saúde nasce com o próprio ser humano, amparado pelo princípio da dignidade da
pessoa humana. A chuva forte que causa a derrubada de árvores, que, por sua vez,
danificam os postes de eletricidade, também se traduz em “mero” fato, enquanto
acontecimento da natureza. Capaz, todavia, de gerar direitos que interessam a uma
quantidade enorme de pessoas, como verdadeiramente gera. Nasce, então, uma
pretensão jurídica oriunda de uma relação fática. Acerta Mazzilli (2013, p. 53) ao
dizer que “no caso dos interesses difusos, a lesão ao grupo não decorrerá
diretamente da relação jurídica em si, mas sim da situação fática resultante”. A tutela
jurídica é consequência óbvia do fato.
Por “natureza indivisível”, quer-se dizer que “a coisa julgada que advier
das sentenças de procedência será erga omnes (para todos), ou seja, irá atingir a
todos de maneira igual” (DIDIER JR.; ZANETI JR.; 2012, p. 76). Ora, se o fato ligou
os indivíduos de maneira homogênea, igualmente necessitará haver homogeneidade
nas decisões judiciais. Quando a sentença determina que o buraco na rua deverá
15
ser tapado pela Prefeitura, tal provimento atinge toda a coletividade, pois satisfaz os
moradores da rua onde se localiza a ruptura, bem como quem eventualmente passa
por aquele trecho, ou poderia passar. Não se ignora que podem ter havido outros
danos, em nuance particular, como na situação de alguém que assiste à propaganda
enganosa e compra o produto, que não atende às necessidades como foi
demonstrado. Nesse caso, há o interesse particular, e o indivíduo lesado obterá a
prestação jurisdicional em seara eminentemente privada.
Para eliminar qualquer dúvida acerca do caráter indivisível dos
interesses difusos: imagine-se outro exemplo no qual uma fábrica emita poluentes,
colocando em risco a saúde dos habitantes de uma determinada região. O interesse
discutido é indivisível porque não há como proteger apenas uma das pessoas
expostas ao perigo sem preservar as demais. Se for determinado o fechamento da
fábrica ou a implantação de dispositivos de purificação do ar, todos serão
beneficiados.
Direitos coletivos stricto sensu
Em sentido estrito, direitos coletivos são, assim como os difusos,
indivisíveis, entretanto, tutelam uma categoria, classe ou grupo de pessoas
interligadas por uma relação jurídica base.
Ao se falar em categoria, classe ou grupo de pessoas, entende-se que
são indivíduos determinados ou determináveis. O que os identifica, portanto, é a
relação jurídica vinculante. Há diversos grupos onde as pessoas estão inseridas:
consorciados, condôminos, associados da Ordem dos Advogados do Brasil,
contratantes de uma empresa promotora de eventos, contribuintes do Imposto sobre
Produtos Industrializados, dentre inúmeros outros casos. A relação jurídica é o
vínculo dotado de poder normativo: contratos, leis, estatutos e outras fontes. São
situações que preveem direitos e deveres em âmbito delimitado, somente para
aqueles que integram certa categoria.
Exemplo exaustivamente utilizado pela doutrina ao tratar de interesse
coletivo em sentido estrito é o da cláusula abusiva em contrato de adesão. Tal
cláusula gera dano aos celebrantes do contrato, implicando direito coletivo à sua
eliminação ou modificação. Sendo o objetivo alcançado através de provimento
judicial, será obtido efeito ultra partes, quer dizer, perante todos aqueles que
16
celebraram o contrato de adesão. Não há que se falar em efeito erga omnes, pois
interfere apenas naquela classe devidamente identificada. Em suma, “não por outro
motivo a coisa julgada será 'ultra partes' [...], ou seja, 'para além das partes', mas
limitada ao grupo, categoria ou classe” (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2012, p. 77).
Direitos individuais homogêneos
O CDC (BRASIL, Lei nº 8.078/90) foi menos claro ao tratar desta
espécie de interesse metaindividual, definindo-a meramente como direito coletivo de
interesse comum. Através desse conceito não se pode extrair de forma satisfatória o
significado dos direitos individuais homogêneos. Já a Lei do Mandado de Segurança
(BRASIL, Lei nº 12.016/09) define como interesse decorrente de origem comum e da
atividade ou situação específica que interliga os impetrantes deste remédio
constitucional.
Com o auxílio da doutrina, tem-se que os interesses individuais
homogêneos caracterizam-se por serem divisíveis, terem por titular pessoas
determinadas ou determináveis e uma origem comum, de natureza fática. Diferem
dos interesses difusos porque têm sujeitos determinados ou determináveis, e seu
objeto é divisível (MAZZILLI, 2013, p. 60).
Dessa forma, assim como no interesse coletivo em sentido estrito, os
sujeitos são delimitados. A diferença é que o direito em comento surge através de
uma circunstância de fato.
Relembrando o exemplo do buraco na rua movimentada: aqueles que
sofrerem danos devidos à irregularidade – como tropeços que implicam fraturas ou
um acidente automobilístico – terão interesse individual homogêneo na reparação de
seus respectivos danos. Daí se extrai a divisibilidade do objeto, uma vez que a
jurisdição, embora necessitando apenas de uma ação judicial, deverá dar
provimentos específicos a todos os envolvidos (a indenização para quem torceu o pé
não é a mesma da de quem teve a sua motocicleta destruída após ir de encontro a
uma parede de concreto). Com relação ao contrato de adesão que possui cláusula
abusiva, suponha-se que o contrato tenha como objeto a prestação de serviços de
telefonia móvel e que nele conste cláusula prevendo à empresa contratada o direito
de interromper a prestação do serviço total ou parcialmente em decorrência de
razões técnicas. É comumente sabido que, a depender das circunstâncias, numa
17
mesma cidade, determinadas pessoas poderão estar com o serviço funcionando
corretamente, enquanto outras terão a prestação interrompida por determinado
tempo e mais alguns sofrerão restrição por um período ainda maior. Assim,
logicamente, embora uma só ação possa tutelar esses direitos, cada indivíduo
lesado será indenizado de acordo com a extensão do seu dano.
Como se pode observar, ainda que o direito individual homogêneo
surja através de circunstâncias de fato, a origem dessas circunstâncias poderá ser
tanto uma relação fática (um buraco em via pública) como uma relação jurídica
(cláusula abusiva em contrato de adesão).
É preciso se atentar, todavia, que o direito pode ser meramente
individual, sem ser homogêneo. Quando um produto produzido em larga escala
apresenta defeito e é vendido a um consumidor, este possui direito individual de
indenização, simplesmente. Por sua vez, quando toda a série de produtos está
prejudicada, aqueles que os comprarem terão interesses individuais homogêneos
(MAZZILLI, 2013, p. 58).
Questões complementares sobre os interesses transindividuais
Embora analisados separadamente e devidamente discriminados,
nada impede que uma só tutela possua mais de um interesse transindividual
presente. Quando proposta ação civil pública (instituto que será melhor estudado
adiante) para declarar a nulidade de cláusula abusiva em contrato de adesão, a
referida nulidade será almejada tanto em favor daqueles que fazem parte da relação
contratual quanto em proveito dos que poderão celebrar o negócio jurídico no futuro.
Assim, simultaneamente, estão sendo defendidos interesses coletivos e difusos.
Num consórcio onde há aumento ilegal das prestações, os
consorciados possuem direito coletivo, pois trata-se de um grupo lesado através de
uma relação jurídica. Porém, quanto à restituição do que foi pago, existe interesse
individual homogêneo, pois o valor depende das cotas de cada consorciado,
necessitando de uma decisão judicial divisível.
“Numa única ação civil pública ou coletiva, é possível combater os
aumentos ilegais de mensalidades escolares já aplicados aos alunos atuais, buscar
a repetição do indébito e, ainda, pedir a proibição de aumentos futuros” (MAZZILLI,
2013, p. 59). Ou seja, todos os interesses transindividuais serão defendidos,
18
respectivamente: coletivos, individuais homogêneos e difusos. É errado dizer,
contudo, que um só interesse pode ser caracterizado por mais de um direito
metaindividual. O que pode acontecer é o caso onde existem vários interesses a
serem tutelados, mas cada um corresponde a um direito específico.
Quanto aos direitos difusos e individuais homogêneos, que se originam
de um fato, não se nega que haja uma relação jurídica igualmente presente,
enquanto na hipótese de interesses coletivos também existe uma circunstância de
fato interligando todo o contexto do elemento jurídico. Consequentemente, as
particularidades sobre a situação que origina o direito, a determinabilidade dos
sujeitos e possibilidade de uma jurisdição divisível são apenas um guia para a
identificação do interesse que vem a surgir. É por essa orientação, por exemplo, que
se aponta quando a defesa de idosos, deficientes ou crianças será a tutela de um
direito difuso, coletivo ou individual homogêneo.
Existe uma divergência doutrinária no que concerne à separação entre
direitos difusos e coletivos e direitos individuais homogêneos. Certo posicionamento
afirma que interesses individuais homogêneos não podem ser considerados
interesses transindividuais, por serem materialmente divisíveis e possuírem sujeitos
determinados, possibilitando que um dos lesados busque a tutela apenas do seu
direito particular (ZAVASCKI, apud ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p.
31). Reforçando esta tese, diz-se que o direito difuso ou coletivo de apenas uma
pessoa pode ser tutelado por ação civil pública, mas não um só direito individual
homogêneo.
Posicionamento contrário parte da premissa de que, se um direito pode
ser defendido coletivamente, então é uma espécie de interesse transindividual
(MAZZILLI, apud ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p. 31-32). O que se
entende é que os posicionamentos expostos se baseiam, respectivamente, no
caráter material e no caráter processual dos interesses transindividuais. Para esta
obra, considera-se o direito individual homogêneo como legítimo direito
transindividual, por envolver uma pluralidade de pessoas em meio a uma
circunstância de fato e possibilitar a tutela desses interesses mediante ação civil
pública ou coletiva.
Apesar disso, há diferenças entre as já amplamente analisadas
espécies de direitos transindividuais que as põem em uma bifurcação à parte,
segundo parcela da doutrina: interesses essencialmente coletivos e interesses
19
acidentalmente coletivos (sentido amplo da noção de direito coletivos).
Por tutelarem interesses indivisíveis e, ao menos inicialmente, de
pessoas indeterminadas (embora seja possível a determinação em caso de direito
coletivo em sentido estrito), direitos difusos e coletivos stricto sensu são
classificados como os essencialmente coletivos. Os interesses individuais
homogêneos seriam acidentalmente coletivos pela determinabilidade dos titulares e
a divisibilidade de sujeitos. Ambos os lados, entretanto, se juntariam em razão da
possibilidade de tutela através de ação coletiva ou ação civil pública (ANDRADE, A.;
ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p. 32-33).
Tal divisão não prospera no entendimento de Didier Jr. e Zaneti Jr.
(2012, p. 83), que dizem, a respeito dos interesses individuais homogêneos, que “ao
contrário do que se afirma com foros de obviedade não se trata de direitos
acidentalmente coletivos, mas de direitos coletivizados pelo ordenamento”, com o
fito de se obter a tutela jurisdicional. Particularmente prefere-se que não haja
enfoque no que tange a mais essa dicotomia, por não agregar importância ao
presente tema. Essencialmente ou acidentalmente, são direitos coletivos em sentido
amplo, abarcados pelo ordenamento como interesses que rompem com os simples
conceitos de Direito Privado e Direito Público.
20
ASPECTOS PROCESSUAIS DA ATUAÇÃO MINISTERIAL – LEGITIMIDADE,
PRINCÍPIOS E AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Legitimidade na defesa dos direitos transindividuais e o acesso à justiça pela
atuação do Ministério Público
A discussão sobre a legitimidade visa esclarecer quem são os entes ou
pessoas aptos a defenderem os interesses próprios ou alheios em juízo. Quando o
próprio lesado ajuíza uma ação para defender o seu direito prejudicado, tem-se a
legitimidade em caráter ordinário. É a situação, por exemplo, do casal que impetra
ação de divórcio consensual para dissolverem o casamento. Trata-se da regra no
processo civil tradicional, onde o titular do direito e o legitimado se confundem
(MANCUSO, 2007, p. 53).
Nem sempre é assim, entretanto. Na legitimação extraordinária, que
deve estar prevista em lei, a titularidade do direito material não necessariamente
configura a legitimidade para atuar em juízo. Dessa forma, ao ferir-se o direito de um
determinado grupo, pode ser dada legitimidade a um só indivíduo que venha a
defender o interesse solidário dos envolvidos. Outro modo se dá pela legitimidade
extraordinária através da substituição processual, onde um ente, em nome próprio,
vai a juízo defender o interesse alheio, quadro que, em tese, engloba o Ministério
Público na defesa dos interesses transindividuais.
Em tese porque, mais uma vez, a doutrina não é pacífica, pois há
parcela que entende que o Ministério Público, por ser naturalmente um defensor do
meio ambiente, do consumidor e de demais relações que envolvam direitos de
vários indivíduos, possui legitimidade ordinária na propositura da Ação Civil Pública
(MAZZILLI, 2013, p. 65). Não se entende tal posicionamento como o mais acertado,
por uma razão simples: quando uma escola aumenta o preço da mensalidade a um
valor completamente abusivo, determinados pais de alunos já matriculados podem
buscar a justiça, por conta própria, com o fito de obterem a anulação do dano.
Assim, nada impede que, mesmo com a legitimação do Ministério Público, um
indivíduo possa buscar a defesa do seu direito de forma individual. Ademais, caso o
dano seja revertido, ocorrerá o aproveitamento para todos os alunos da instituição,
mesmo para aqueles cujos pais permaneceram inertes.
Não é o que acontece, porém, quando um determinado consumidor, ao
21
ter comprado cinco caixas de leite oriundas de um lote estragado, pleiteia
indenização em juízo. A princípio, o cidadão que comprou uma caixa, constatou a
falta de qualidade do produto e a jogou fora, dispensando a provocação jurisdicional,
não irá ser beneficiado em nada. O maior trunfo da legitimação do Ministério Público
na defesa dos interesses transindividuais é possibilitar a tutela dos direitos de todas
as pessoas envolvidas na situação fática ou jurídica que gerou o caso concreto.
Neste último exemplo, portanto, por se tratar de direito individual homogêneo, onde
o caráter é divisível, a Ação Civil Pública seria apta a pleitear a justa indenização
àqueles que compraram o produto viciado, na medida da proporção dos seus danos.
Ampliando-se os pedidos, também poderia ser requerida a retirada de todas as
caixas de leite que continuam em estoque, com o fito de evitar novos prejuízos,
havendo uma defesa difusa de direitos.
Entretanto, vale salientar o terreno pantanoso que é o tema, havendo
uma terceira corrente igualmente relevante, defendida por Nelson Nery Jr., que fala
em uma legitimação autônoma, onde não se confunde o indivíduo que teve o seu
bem material lesado com o ente legitimado legalmente a atuar na esfera processual
(DIDIER JR.; ZANETI JR., 2012, p. 200-201). Ou seja, a atuação ministerial
independe da participação dos indivíduos que sofreram o dano.
Exemplifica-se com a sua concepção acerca de ação de mandado desegurança coletivo, que, para o autor, serve para reparar ou prevenir atoilegal ou abuso de poder. Assim, a norma é processual no inc. LXX ematerial no inc. LXIX e atinge, portanto, direito individual, coletivo ou difuso.Nesse sentido, seria forçoso concluir que “o conceito de mandado desegurança coletivo prende-se, à atribuição de legitimidade ativa 'ad causam'para a impetração da ação de segurança, e não ao direito material que porintermédio dele se defende (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2012, p. 200-201).
Todavia, sabe-se que, antes da proposição de Ação Civil Pública, é
plenamente possível que várias pessoas já tenham ajuizado ações em interesse
próprio para uma tutela que, em verdade, é difusa. De toda sorte, agindo em
substituição processual àqueles que tiveram efetivamente um direito lesado, ou
defendendo situações de potencial lesão ao consumidor, o Ministério Público
possibilita um acesso à justiça integral, proporcional e igualitário, motivo pelo qual
acredita-se, na presente obra, que a legitimidade do referido Órgão seja
extraordinária, posição mais aceita.
A importância da discussão acerca da legitimidade possui um propósito
principal: possibilitar o acesso à justiça de todos os indivíduos lesados, que terão
22
seus direitos reivindicados pelo Ministério Público e levados a juízo sob a redoma do
devido processo legal. Assim, procura-se relativizar a ideia de que “o direito não
socorre aqueles que dormem”, uma vez que boa parte da população –
coincidentemente as pessoas mais carentes financeiramente – ainda vê a Justiça
como algo distante, segregador, que ampara somente seres privilegiados. É
importante desenvolver o pensamento de que o acesso à justiça é democrático e,
principalmente, gratuito, incentivando todas as classes sociais a buscarem a defesa
de seus interesses, quando não individualmente, através de órgãos legitimados.
Princípios atinentes à tutela de interesses transindividuais
Tal como na discussão acerca da legitimidade, há que se estabelecer a
peculiaridade dos princípios que traduzem o norte da tutela coletiva, já que,
naturalmente, os mecanismos processuais utilizados numa demanda pluralística não
são exatamente os mesmos que se encaixam na lide individual. Por conseguinte, até
mesmo o devido processo legal urge por uma adaptação ao se falar em tutela
coletiva.
De acordo com Didier Jr. e Zaneti Jr. (2012, p. 113-114), a própria
legitimação, tópico debatido anteriormente nesta obra, é intrínseco ao devido
processo legal coletivo, eis que a tutela jurisdicional demanda por um ente capaz de
corresponder à natureza ampla da lide que se discute, seja ela difusa, coletiva ou
individual homogênea. Como já se concluiu no subcapítulo passado, o Ministério
Público é um órgão que possui legitimidade para a defesa dos interesses
transindividuais em juízo, pois a sua atuação é capaz de dar acesso à justiça às
pessoas lesadas e lhes proporcionar um processo adequado e munido de
ferramentas aptas ao alcance da jurisdição.
Nota-se a clara influência sofrida pelas ações coletivas brasileiras
diante das class actions americanas, demandas coletivas oriundas da common law
dos Estados Unidos que precisam preencher diversos pressupostos para serem
efetivamente consideradas como tal (ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011,
p. 45). Dentre esses requisitos, está a verificação da existência de questões de fato
ou de direito que corroborem para justificar a tutela transindividual. Trocando em
miúdos, cumpre observar se há circunstâncias em comum que uniram uma
pluralidade de pessoas para que haja a representação judicial através de um ente
23
legitimado, algo facilmente detectado logo quando são conceituadas as espécies de
direitos metaindividuais, porque sempre haverá uma situação fática ou jurídica que
unem os indivíduos nesta seara.
Um ponto, entretanto, ainda não expressamente delineado em nosso
ordenamento, é o princípio da adequada certificação da ação coletiva, mediante o
qual se avalia a justa causa da elaboração de uma demanda eminentemente plural
em juízo.
“Como bem observado por Wouter de Vos, pela perspectiva do réu, queestá sendo acionado em juízo pelo grupo, podendo ser responsabilizado apagar ou despender uma grande quantia, é importante que sejaestabelecida a certeza, em uma fase inicial do procedimento, de que setrata mesmo de uma ação coletiva legítima. De outra forma, seria possívelameaçar o réu por um longo período com uma ação coletiva incabível, como objetivo de forçá-lo a entrar em um acordo ou simplesmente prejudicá-lo.Em face da importância dos interesses em jogo, trata-se de uma incertezaintolerável. É surpreendente, portanto, que o direito brasileiro não disponhaexpressamente de uma fase formal em que o juiz determine se a ação podeou não prosseguir na forma coletiva. Todavia, há dispositivos no direitoindividual que podem superar essa lacuna. Pode-se equiparar a fase decertificação da ação coletiva americana com o “saneamento do processo”no direito brasileiro”. (GIDI apud DIDIER JR.; ZANETI JR., 2012, p. 115)
Imagine-se a seguinte problematização: uma escola, em determinada
época, aumenta absurdamente o valor da mensalidade de todos os alunos em
decorrência de uma reforma no refeitório. O Ministério Público ajuíza a Ação Civil
Pública, porém, “oportunamente”, inclui na demanda, quando da exposição dos fatos
e nos pedidos, a indenização por danos morais em favor de duas alunas que, em
data próxima, sofreram bullying no referido colégio por parte dos próprios
funcionários, por razões distintas. Ora, no que tange ao aumento das mensalidades
de modo irresponsável, tem-se o cabimento da Ação Civil Pública em decorrência de
um direito coletivo evidentemente maculado. Por sua vez, a situação das alunas que
sofreram preconceito destoa do âmbito coletivo da demanda, sendo imperiosa a
retirada da citada ocorrência, a qual deverá ser abordada em processos individuais,
prosseguindo a ação transindividual somente no que concerne ao aumento indevido
das mensalidades.
Note-se que essa certificação ainda não está positivada no direito
brasileiro, sendo objeto de discussão para implantação no Código de Processo Civil
Coletivo (ainda em forma de projeto), como apontam Didier Jr. e Zaneti Jr. (2012, p.
112). Isso porque, a bem da verdade, o próprio CPC (BRASIL, Lei nº 5.869/73) é
24
eminentemente voltado para as lides individuais, aspecto que influi quando da
própria aplicação das leis processuais civis, que deve ser feita subsidiariamente,
como expõe o princípio do macrossistema. Assim, “o Código de Processo Civil […]
somente será aplicado nos diplomas de caráter coletivo de forma residual, ou seja,
se houver omissão específica a determina norma”, como explica Mazzei (apud
DIDIER JR.; ZANETI JR., 2012, p. 125).
Outro princípio fundamental é o da reparação integral do dano, pelo
qual conclui-se que todos aqueles que tiveram seus interesses tutelados em uma
demanda coletiva deverão, em caso de decisão favorável, ter o prejuízo reparado e
indenizado. Exemplificando-se, uma Ação Civil Pública que objetiva a retirada de
animais soltos em via pública para reconduzi-los a ambiente adequado traduz uma
tutela de direitos difusos que serão plenamente atendidos quando a decisão for
cumprida. Em se tratando de Ação Civil Pública fundada em interesses individuais
homogêneos, o princípio será respeitado se todos os representados (determinados
ou determináveis) obtiverem indenização correspondente ao dano sofrido – como
seria o caso de um profissional contratado pela Prefeitura para podar as árvores de
determinado bairro e que, ao fazê-lo, danifica os automóveis de diversos indivíduos,
no momento da derrubada dos galhos. É notório que os prejuízos serão fracionados
de acordo com quem sofreu qual dano, e todos precisarão ser recompensados.
Por fim, um último princípio que merece ser mencionado é o da
atipicidade, pois a própria conceituação dos interesses transindividuais como é
conhecida hoje pode sofrer alterações futuras, tanto legislativamente quanto
doutrinariamente. Assim, “quaisquer formas de tutela serão admitidas para a
efetividade desses direitos, nos termos do que prevê o art. 83 do CDC” (DIDIER JR.;
ZANETI JR., 2012, p. 126).
Procedimento investigatório: o inquérito civil e as peças de informação
Em linhas gerais, inquérito civil é o “procedimento destinado à colheita
dos elementos probatórios necessários ao ajuizamento da ação civil pública”
(GARCIA, 2005, p. 295). Por conseguinte, é afeto ao processo coletivo.
Assim como na esfera criminal, o Ministério Público, antes de intentar a
sua demanda, pode fazer um levantamento de pontos a serem apurados, com o fim
de verificar a amplitude, eficácia, ou mesmo necessidade de levar determinada lide à
25
Justiça. Ainda mantém similaridade com o inquérito policial por ser um procedimento
geralmente inquisitivo – eventualmente contraditório, de natureza principalmente
instrutiva, não sendo imperiosa a sua utilização para a propositura de ação
transindividual (ou seja, o Ministério Público pode dispensar o uso do inquérito civil).
Quer esteja o inquérito civil arquivado ou em andamento, isso em nadainterfere com a possibilidade de que os colegitimados ajuízem diretamente,a qualquer momento, a ação civil pública ou coletiva. Muito menos suainstauração ou seu arquivamento impedem ou condicionam o ajuizamentode ações individuais. (MAZZILLI, 2013, p. 496)
A instauração do inquérito civil independe da provocação de terceiros,
significando dizer que o Parquet pode instaurá-lo simplesmente ao tomar
conhecimento de um fato que gerou dano de natureza transindividual. Munido das
informações colhidas inicialmente, pode o Ministério Público, desde já, ajuizar a
ação. Não havendo elementos suficientes para tanto, será admitida a realização de
diligências, com o fito de colher provas complementares. Aqui, os meios serão
variados: do convite a testemunhas para prestarem declarações a ofícios a órgãos
públicos, para que forneçam informações e/ou documentos. Vale frisar que essas
diligências são meras solicitações, em virtude do caráter também informal do
inquérito civil (MAZZILLI, 2013, p. 496). Assim, não há sanção a quem se recusar a
ser testemunha no procedimento investigatório, tampouco incorrerá no crime de
desobediência o servidor de determinado órgão público que se negar a fornecer
dados sigilosos.
Também é dada a oportunidade para que se chegue a um acordo
extrajudicial, por meio dos chamados compromissos de ajustamento de conduta,
assim como se pode estabelecer a realização de audiências públicas e o
acatamento de algumas recomendações (MAZZILLI apud DIDIER JR.; ZANETI JR.,
2012, p. 230). Isso porque nem sempre é proveitoso movimentar a máquina
judiciária para que se obtenha a tutela dos interesses transindividuais.
O inquérito civil é procedimento realizado exclusivamente pelo
Ministério Público, constitucionalmente garantido (ANDRADE, A.; ANDRADE, L.;
MASSON, 2011, p. 152), pelo meio do qual o órgão realiza atividades investigativas,
enquanto o inquérito policial, como é notório, ampara-se na atuação policial, com a
supervisão do Delegado de Polícia.
No inquérito policial, verificando-se a insuficiência de elementos
26
formadores da opinio delicti (possibilidade de se obter um juízo de valor acerca dos
fatos), o Ministério Público requererá o arquivamento da peça inquisitória, a ser
conferido pelo juiz, da forma que preceitua a lei processual penal (DIDIER JR.;
ZANETI JR., 2012, p. 231). Em se tratando do inquérito civil, o Ministério Público tem
autonomia para, desde logo, arquivá-lo. Contudo, exige-se a remessa dos autos ao
Conselho Superior do Ministério Público, para uma revisão obrigatória (MAZZILLI,
2013, p. 496-497). Também arquiva-se o inquérito civil quando, em vez da Ação Civil
Pública, o Ministério Público firma compromisso de ajustamento de conduta. Nesse
caso, o arquivamento deverá ser homologado pelo CSMP.
Outra distinção ocorre no sentido que o inquérito civil não é um
procedimento sigiloso, como é o policial. Para Mazzilli (apud DIDIER JR.; ZANETI
JR., 2012, p. 238), a publicidade será mitigada quando integrem os autos informação
sigilosa ou quando a própria investigação deva ser secreta, sob pena de prejudicar a
atividade coletora de informações.
Por fim, urge salientar o que difere o inquérito civil das peças de
informação. Enquanto aquele é um procedimento investigatório instaurado pelo
Ministério Público através de portaria, dentro do qual estarão concentradas os
resultados da investigação feita – secretamente ou não, as peças de informação são
documentos de conteúdo diverso sobre os quais o Parquet possa se basear para a
eventual proposição de Ação Civil Pública.
Diferentemente das ações coletivas impetradas com base em provas
colhidas em sede de inquérito civil, o Ministério Público também poderá acionar o
Poder Judiciário através de dossiês, denúncias fundamentadas, fotografias, vídeos,
cartas anônimas e outros meios, bastando que sejam lícitos e aptos a demonstrarem
a veracidade e os indícios de autoria dos fatos comunicados. Uma desvantagem,
porém, diz respeito ao prazo decadencial para reclamação dos vícios constatados, a
exemplo do CDC (BRASIL, Lei nº 8.078/90), obstado quando da instauração do
inquérito civil, o que não ocorre com as peças de informação (MAZZILLI, 2013, p.
497). Dessa forma, o inquérito civil proporciona maior estabilidade no
prosseguimento das investigações, podendo abarcar até mesmo as provas obtidas
com as referidas peças de informação que, ainda assim, poderão ser arquivadas e
deverão ser remetidas ao CSMP para averiguação obrigatória.
27
Observações processuais acerca da Ação Civil Pública
A Ação Civil Pública é, por excelência, a ação competente para a
defesa dos interesses transindividuais. Embora o CDC (BRASIL, Lei nº 8.078/90)
utilize a nomenclatura “Ação Coletiva”, prefere-se adotá-la como gênero, do qual são
espécies o mandado de segurança coletivo, a ação popular e, naturalmente, a Ação
Civil Pública.
Havendo lesão a interesse transindividual, o Ministério Público não tem
direito, mas sim o dever de agir. “A atuação do Ministério Público em prol dos
interesses que a Constituição e a lei lhe determinam proteger é, portanto, regida
pelo princípio da obrigatoriedade” (ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p.
65). É compreensível atribuir essa obrigatoriedade em razão da natureza dos
interesses transindividuais, pois se atua em defesa de inúmeras pessoas, muitas
das quais vivem sob condições de extrema pobreza, dificultando não só o acesso à
justiça, mas o próprio conhecimento dela. Assim, garante-se que todos os lesados –
ou potencialmente lesados – estejam amparados pelo devido processo legal, com
contraditório e ampla defesa, sob igualdade de condições. O princípio também é
aplicável quando o Parquet vislumbrar, após a sentença, fundamentos que ensejem
a impetração de recurso. Só haverá mitigação dessa obrigatoriedade quando a
própria lei estabelecer hipóteses em que seja permitido o juízo de conveniência pelo
Órgão Ministerial, como frisa Mazzilli (2013, p. 95), desta vez em respeito ao
princípio da discricionariedade controlada.
Logicamente, devem ser observados os casos em que, realizada
instrução pré-processual, não se verificou lesão ou ameaça a direito metaindividual,
ou quando soluções alternativas são mais eficazes, quais sejam, os firmamentos de
compromissos de ajustamento de conduta e as realizações de audiências públicas,
tal como debatido no subcapítulo anterior.
A ACP deverá ser proposta no juízo do local onde ocorreram os danos
(ou onde há risco de que ocorram), através de uma competência funcional, como
depreende Mancuso (2007, p. 67) da leitura da LACP (BRASIL, Lei nº 7.347/85). Isto
posto, quer-se dizer que o juízo competente para julgar a ação é aquele que se
encontra mais próximo de onde ocorreram os fatos, no intuito de facilitar a obtenção
de lastro probatório. Trata-se de exceção à regra geral de competência territorial,
que costuma ser o domicílio do réu. Caso se trate de situação em que o dano,
28
consumado ou iminente, assuma caráter regional, ou mesmo nacional, o CDC
(BRASIL, Lei nº 8.078/90) afirma que, nas ações que envolvam direito individual
homogêneo, a ACP será proposta na capital do Estado ou no Distrito Federal. Não
há previsão normativa no que tange aos interesses difusos e coletivos, mas
entende-se que deverá ser adotado o mesmo critério, ainda que não haja relação de
consumo (MAZZILLI, 2013, p. 292, 293).
Existe a possibilidade de que diversas pessoas, individualmente,
provoquem o judiciário para a obtenção de suas respectivas tutelas. Essas
diferentes ações podem conter similaridades no que concerne à sua causa de pedir
(o mau serviço de uma empresa de telefonia móvel, por exemplo) ou ao pedido
(indenizações devidas em virtude de cobranças abusivas por determinado banco),
ou até ambos podem ser iguais. Assim, sempre que possível, o magistrado deverá
reunir as causas semelhantes, através do critério conceituado como prevenção
(DIDIER JR.; ZANETI JR., 2012, p. 167). Utiliza-se tal artifício para processar as
demandas simultaneamente, gerando maior economia processual. Entretanto,
mesmo havendo conexão (objeto ou causa de pedir semelhantes) ou continência
(demandas semelhantes, onde o objeto de uma abrange a outra, por ser mais
ampla), existirão casos em que a melhor opção provavelmente seja manter as ações
correndo separadamente, em respeito à celeridade processual e até ao devido
processo legal – imagine-se reunir mais de vinte demandas originárias de mais de
vinte indivíduos separadamente, em busca de indenizações pela queda de energia
em determinada cidade.
Dito isso, não é difícil crer na possibilidade de existência de conexão
ou continência entre uma ACP e ações individuais, já que uma demanda coletiva
pode, de uma só vez, discutir as três espécies de interesses transindividuais –
difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, estes últimos sendo o alvo
constante das similaridades petitórias. Do exposto, bem-vinda será a reunião destas
ações, salvo hipóteses que acarretem prorrogação de competência absoluta (reunir
ação oriunda de Justiça Estadual com ação de competência da Justiça Federal),
dificuldade do acesso à justiça (reunir a uma ACP proposta em Salvador a ação
individual de um morador do estado do Acre), união de processos em estágios
muitos distantes ou que impliquem a junção de um número absurdo de litigantes,
como lecionam Adriano Andrade, Landolfo Andrade e Masson (2011, p. 146-147).
De acordo com Mazzilli (2013, p. 282-284), as ações individuais
29
impetradas após ACP que esteja em andamento, em se tratando de interesses
individuais homogêneos, poderão ser suspensas ou até extintas, de acordo com a
vontade dos respectivos autores, para que possam se beneficiar da coisa julgada na
demanda coletiva. Entretanto, nada impede que continuem e esperem pelo
provimento de suas próprias ações individuais, sempre respeitando o acesso à
justiça.
Após estas considerações, cumpre ressaltar o cabimento de
litisconsórcio e intervenção de terceiros na tutela transindividual, sendo plenamente
possível a atuação conjunta dos Ministérios Públicos de outros Estados, incluindo o
Ministério Público da União, além da colaboração dos demais entes legitimados à
proposição da ACP, bem como os próprios indivíduos que tiveram seu direito lesado,
hipótese já exposta. Sendo assim, são bem-aceitos institutos como denunciação à
lide, chamamento ao processo e nomeação à autoria (ANDRADE, A.; ANDRADE, L.;
MASSON, 2011, p. 126-138).
30
ALTERNATIVAS À AÇÃO CIVIL PÚBLICA, DEFESA PENAL DOS INTERESSES
TRANSINDIVIDUAIS E PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE E ÀS MINORIAS
Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta e transação judicial
Como já exposto anteriormente, é possível que a defesa dos
interesses transindividuais alcance o seu objetivo sem a necessidade da propositura
de uma ação judicial. Isso se dá, pois, através de um acordo firmado entre o
Ministério Público e o causador do dano em questão, o qual se compromete em
reparar os prejuízos causados, obedecendo às determinações legais.
O Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta possui natureza
jurídica de título executivo extrajudicial, realizado de forma bilateral e consensual,
embora não seja uma espécie de contrato. Diz-se isso pois o objeto da transação
não é mero patrimônio passível de ser negociado (MAZZILLI, 2013, p. 451), mas,
sim, o próprio ajuste de conduta. Ademais, a bilateralidade indicada não representa
qualquer concessão a ser feita pelo órgão público, devendo o responsável pela
lesão arcar com todos os procedimentos necessários à reparação da malfeitoria
(LEONEL apud MANCUSO, 2007, p. 246). Se as exigências não forem cumpridas
totalmente, mesmo que tenham sido adimplidas em sua maior parte, o Parquet
poderá ingressar em juízo para garantir a plenitude do ressarcimento do dano. Em
havendo cumprimento integral, ocorrerá o encerramento da investigação (FARIAS;
PINHO).
A bem da verdade, o Ministério Público não é o único legitimado a
propor esse tipo de acordo, sendo uma faculdade disponível igualmente às pessoas
jurídicas de direito público, relacionadas com a administração pública direta e
indireta, ou mesmo às pessoas jurídicas de direito privado que exerçam serviços
públicos (PEDRO, 2013). Sendo assim, empresas de saneamento e esgoto, por
exemplo, podem propor a realização de TCAC para a preservação de determinada
área de um Município. Todavia, em se tratando das situações de largo espectro, que
atingem parcela considerável da população, entende-se ser mais adequada a
atuação ministerial, em virtude dos mecanismos de fiscalização de que dispõe.
A título de exemplo, o Ministério Público pode propor TCAC ao
proprietário de cavalos que deixa os animais soltos na cidade. Trata-se de um ato
prejudicial a quantidade indeterminada da população, uma vez que os cavalos
31
podem obstruir o trânsito ou mesmo atacar os transeuntes. Contudo, como a via
judicial poderia ser um meio desproporcional para a solução do conflito, o ajuste de
condutas surge como uma alternativa suficientemente pacificadora. No termo, será
estipulado o prazo para a retirada dos cavalos da via pública, sob pena de multa
pecuniária e, fatalmente, a propositura da Ação Civil Pública.
Superada a discussão acerca da transação extrajudicial, insta
comentar sobre a composição judicial envolvendo direitos metaindividuais, que
também é possível. Ela ocorrerá em juízo seguindo moldes semelhantes ao do
TCAC, com algumas sensíveis diferenças. A primeira é a de que, havendo transação
numa Ação Civil Pública, o título executivo será judicial, e não extrajudicial
(MAZZILLI, 2013, p. 458-459). A segunda trata da legitimação em firmar o acordo,
eis que
Nos ajustamentos de conduta, que se dão extrajudicialmente, não haveriaquem pudesse impedir que associações privadas, eventualmente, fizessemconcessões indevidas sobre o direito material. Já em juízo esse risco éafastado, visto que em toda ação coletiva o Ministério Público atual comofiscal da lei, e, uma vez que não concorde com eventual acordo judicial,poderá contra ele se insurgir, inclusive, se for o caso, apelando contra ahomologação indevida. (ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p.206)
Em contrapartida, ambos os segmentos são impedidos de implicar
renúncia do direito material em baila (MAZZILLI, 2013, p. 458-459), pois o ajuste
presta-se tão somente a determinar como o direito transindividual ferido ou
ameaçado será preservado. Dito isso, depreende-se que tanto o TCAC quanto a
composição judicial visam estabelecer condições para que, retornando ao exemplo
dos cavalos soltos em via pública, sejam estes animais recolhidos e alocados em
ambiente próprio, livrando a população de eventuais transtornos. A transação é
amistosa, mas deve solucionar o problema completamente.
Intervenção por meio da Ação Popular
A Ação Popular é instrumento para defesa dos interesses da
coletividade com previsão constitucional e lei própria. Como dispõe a Carta Magna
(BRASIL, 1988), no artigo 5º, inciso LXXIII, é o cidadão parte legítima para propor a
AP com o objetivo de anular ato pernicioso ao patrimônio público.
32
No caso da ação popular, a cidadania deve ser comprovada por meio daapresentação do título de eleitor, ou documento que a ele corresponda (art.1º, § 3º, da Lei 4.717, de 29.6.65, denominada de Lei da Ação Popular).Assim, para aquilo que à ação popular interessa, o reconhecimento dalegitimidade ativa dependerá da demonstração da cidadania ativa, que setraduz no direito de votar. (NETO)
Dois pontos devem ser estabelecidos: em primeiro lugar, como ao ato
impugnado é imprescindível a lesão ao patrimônio público, ou seja, possui escala
abrangente, a AP não é apta a defender interesses individuais homogêneos, mas
figura como importante instrumento para tutelar direitos difusos. Em segundo lugar, a
legitimidade, ao menos em regra, para a propositura da AP, é do cidadão, não do
Parquet.
Voltando-se para o Ministério Público, este atua, normalmente, como
um fiscal da lei, acompanhando todos os atos da ação e tomando as providências
que julgar necessárias (pedidos de diligências, por exemplo). Existe divergência
doutrinária acerca da possibilidade de arguir irregularidades durante o processo,
mas prevalece o entendimento positivo de que, enquanto custos legis, o Ministério
Público deve zelar pela legalidade e pela vontade estatal que seja benéfica à
sociedade, obrigando-se a opinar, ainda que contra o demandante (CAMPELO,
2010).
Também é possível agir em auxílio ao autor popular na produção de
provas. No exemplo utilizado por Adriano Andrade, Landolfo Andrade e Masson
(2011, p. 303), tem-se que o cidadão acionante, na intenção de solicitar a oitiva de
uma testemunha, pode encontrar dificuldades em obter o seu endereço. O Ministério
Público, contudo, ao dispor de acesso a dados cadastrais, como os da Receita
Federal, facilita essa busca, instruindo o processo de maneira eficiente e ágil.
Ademais, é possível utilizar diferentes meios na instrução probatória, como a
apresentação de documentos e a requisição de perícia.
Embora a lei não lhe confira a legitimidade para propor AP, o Ministério
Público poderá suceder o autor demandante, de acordo com previsão na própria
LAP (BRASIL, Lei nº 4.717/65), quando aquele desistir da ação ou der causa à sua
extinção (inércia, que é o caso mais comum). Fazendo valer esta faculdade, uma
vez que, em tese, não é obrigado, o Ministério Público dispõe desta que pode ser
chamada de legitimidade ativa ad causam superveniente (CAMPELO, 2010). Há de
se comentar que, em uma situação como esta, ter-se-ia, na verdade, Ação Civil
33
Pública sob o manto de Ação Popular, sem grandes modificações.
Igualmente é possível a sucessão ministerial quando o demandante
deixa de promover a execução da sentença condenatória proferida em até sessenta
dias. Neste caso, trata-se de uma obrigação do Parquet, pois a sua inércia
configurará falta grave (ANDRADE, A.; ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p. 305).
O Ministério Público como impetrante de Mandado de Segurança Coletivo
O mandado de segurança é uma ação constitucional de natureza cível e ritosumário, voltada à proteção de direitos líquidos e certos, não tuteláveis porhabeas data ou habeas corpus, contra atos ofensivos de agentes públicosou privados no exercício de funções públicas. (ANDRADE, A.; ANDRADE,L.; MASSON, 2011, p. 317)
A forma coletiva do writ está prevista na Constituição Federal (BRASIL,
1988), em seu artigo 5º, inciso LXX, assim como encontra amparo em maior
amplitude através da Lei do Mandado de Segurança (BRASIL, Lei nº 12.016/09).
Trata-se de instrumento de uso restrito, pois somente está prevista a sua impetração
por partido político com representação no Congresso Nacional e por organização
sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída há pelo menos um
ano, situação em que os interesses a serem tutelados devem estar intimamente
ligados aos seus associados.
Deve-se frisar que a taxatividade acerca da impetração do MSC não é
absolutamente aceita, sendo muitos os que defendem a legitimidade ativa do
Ministério Público, havendo argumentos para ambos os lados, formando, assim, as
chamadas posições restritivas e ampliativas (FONSECA, 2011). A corrente restritiva
aponta que a própria Carta Magna (BRASIL, 1988) propôs essa taxatividade, ao
apresentar em seu texto somente os partidos políticos com representação no
Congresso e as entidades de classe. É um argumento que ganha força em virtude
do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei nº 5.869/73), o qual, no artigo 6º, observa
que só será possível a propositura de ação em nome próprio, para defesa de
interesse alheio, quando a lei assim o permitir. Ademais, como o Ministério Público
tem si para o poder de ajuizar a Ação Civil Pública, em que são possíveis os mais
diversos tipos de pedidos, a necessidade de utilização do MSC seria inócua.
Ainda de acordo com Fonseca (2011), aqueles que adotam a posição
ampliativa argumentam que a Constituição, ao expor a legitimidade
supramencionada, apenas a fez de forma exemplificativa, não gerando
34
exclusividade. Ademais, por ter natureza jurídica de ação coletiva, não há instituição
mais adequada que o Ministério Público a propô-la, uma vez que foi
constitucionalmente incumbido da tarefa de zelar pelos interesses transindividuais.
A jurisprudência já se tem mostrado favorável à atuação ministerial
através do MSC, conforme a decisão a seguir, onde se discutiu o dever do Estado
do Paraná de fornecer medicamentos a uma paciente:
O Ministério Público tem legitimidade ativa para propor mandado desegurança a fim de proteger interesses difusos e coletivos, bem comointeresses individuais, indisponíveis e homogêneos. Desta feita, constituifunção institucional do Ministério Público buscar a entrega da prestaçãojurisdicional para obrigar o Estado do Paraná a custear o medicamentoessencial à saúde de pessoa hipossuficiente economicamente. (PARANÁ,Tribunal de Justiça, Ap. 1212006-8, Relator: Des. Luiz Mateus de Lima,2014)
Para solucionar de vez esta controvérsia, tramita no Congresso
Nacional a Proposta de Emenda Constitucional nº 74/07, da autoria do ex-senador
Demóstenes Torres, que pretende a legitimação ministerial à propositura do MSC,
emendando o inciso LXX do art. 5º da Constituição (BRASIL, 1988). A PEC obteve
parecer favorável pela Comissão de Constituição e Justiça e atualmente aguarda a
sua colocação em pauta no Senado (BRASIL. Senado Federal, Projetos e Matérias
Legislativas).
Em face dos argumentos exposados, crê-se que o Ministério Público
deve, sim, estar legitimado à propositura do writ coletivo. O Parquet, como defensor
do bem-estar social, precisa ter à sua disposição todos os elementos processuais
cabíveis a uma atuação plena, que defenda os interesses transindividuais. Assim, o
MSC, em função de sua natureza mais célere, já que dispensa dilação probatória e é
impetrado junto a prova pré-constituída (fala-se em direito líquido e certo), constitui
ferramenta de utilização também possível pelo Ministério Público, ainda que não
encontre previsão taxativa na Carta Política (BRASIL, 1988).
A tutela penal dos interesses transindividuais
É comum visualizar a esfera penal no âmbito da individualidade, onde
o agressor, por ter lesado a vítima (pense-se no crime de homicídio, por exemplo),
será julgado e condenado pelo Estado, que o encaminha ao encarceramento.
Analisando o quadro por este viés, crê-se árdua a tarefa de imaginar o Direito Penal
35
incidir sobre um bem jurídico (patrimônio, honra, liberdade etc.) mais amplo, coletivo
ou até difuso.
Todavia, cresce em nosso ordenamento a aceitação de que existem
bens jurídicos transindividuais a serem tutelados. Primeiramente, deve-se entender
que, assim como na esfera cível, os interesses transindividuais penais jamais podem
ser confundidos com interesses transindividuais civis, uma vez que o direito de punir
o delito é inerente ao Estado, no exercício da sua soberania (MAZZILLI, 2013, p.
269).
Outrossim, é controversa a classificação dos direitos metaindividuais
quando se fala em direito penal. É comum utilizar a subdivisão tradicional, já
abordada nesta obra e partilhada por doutrinadores como o próprio Mazzilli (2013).
Entretanto, Smanio (2004) propõe a existência de uma classificação diferenciada,
apontando que
quando a doutrina penal cita bens jurídicos coletivos, está fazendoreferência ao interesse público, ou seja, àqueles bens que decorrem de umconsenso coletivo, em que há unanimidade social de proteção e forma deproteção. Os conflitos que podem gerar, portanto, ocorrem entre o indivíduoque pratica o crime e a autoridade do Estado efetuando a punição. Emrelação aos bens jurídicos difusos, a conflituosidade de massa estápresente em suas manifestações, contrastando interesses entre grupossociais na sua realização. Dessa forma, o Estado realiza muitas vezes umaintermediação, ou melhor, dispõe uma diretriz para as condutas socialmenteconsideradas, ao tipificar tais condutas como crime, ou não tipificá-las,deixando outros ramos do Direito realizarem a solução. (SMANIO, 2004)
Portanto, tem-se que, com relação aos bens jurídicos coletivos, a
conduta criminosa interfere de modo homogêneo sobre a sociedade, lesionando a
todos. Tome-se como exemplo o crime de ato obsceno, previso no artigo 233 do
Código Penal Brasileiro (BRASIL, Decreto-Lei nº 2.848/40), onde o autor pratica o
ato em local público, exposto aos olhares de mulheres, idosos, crianças e enfermos.
Esta conduta fere a coletividade como um todo, exigindo uma resposta única do
Estado. Já no que tange aos bens jurídicos difusos, pressupõe-se conflito dentro da
própria coletividade, onde há interesses contrapostos, nem sempre abarcados pelo
supracitado Código Penal (BRASIL, Decreto-Lei nº 2.848/40), como no caso do meio
ambiente, o qual gera divergências entre os que sugerem melhor aproveitamento
econômico e os que prezam pela preservação da natureza.
Nesta obra, a fim de um melhor entendimento acerca do tema, prefere-
se utilizar a sistemática tradicional, que diferencia interesses coletivos e difusos
36
quanto à origem (relação jurídica e relação fática, respectivamente) e grau de
abrangência (sujeitos determinados ou determináveis e sujeitos indeterminados ou
indetermináveis). Contudo, qualquer que seja a posição adotada, consolida-se a
existência da tutela penal de interesses transindividuais, a qual também é
promovida, neste caso com maior intensidade, pelo Ministério Público, através da
ação penal pública.
Embora argumente que a tutela penal dos direitos metaindividuais só
ocorra indiretamente, como reflexo da proteção destes direitos na esfera cível,
Mazzilli (2013, p. 269-276) aponta exemplos para situações de interferência que
podem haver entre a ação penal perante a ação civil e vice-versa: se um juiz civil
decreta a nulidade de um casamento, esta decisão afeta o julgamento do juiz penal
acerca do eventual cometimento do crime de bigamia; em via reversa, se o juiz
penal, munido de provas bastantes, inocenta o réu em um processo que julga a
autoria em um roubo, também haverá interferência na ação civil que o mesmo
demandado responde pelo dano patrimonial da coisa subtraída.
De todo modo, resta que o Ministério Público é o detentor privativo do
dever de promover a ação penal pública, incumbência dada pela Constituição
Federal (BRASIL, 1988), no artigo 129, inciso I. Isso quer dizer que, havendo
qualquer crime, de amplitude coletiva ou não, interferindo ou não na sociedade como
um todo, o Ministério Público é quem deverá intentar a ação penal pública para a
defesa desses interesses em juízo. A única ressalva a ser feita, logicamente, se dá
com relação aos delitos que são processados através de ação penal privada, a qual
deverá ser intentada pela própria vítima.
Defesa do meio ambiente e dos grupos sociais diversificados
Em tempos de escassez de recursos naturais e má administração das
riquezas ecológicas no país, faz-se indispensável a defesa desses valores por meio
de mecanismos de fato eficazes, contando, para isso, com uma legislação
especializada e um órgão dotado de legitimação para atuação processual.
O Brasil, tendo em vista que porção considerável de sua sociedade aindanão dispõe de condições para defesa individual dos direitos asseguradospela Constituição – dentre os quais os relativos à preservação ambiental –atribui o encargo da tutela destes direitos, perante a Justiça, ao MinistérioPúblico, instituição independente dos três outros poderes, que age em nome
37
do povo e do interesse público. (GRECO, O MINISTÉRIO PÚBLICO E ADEFESA...)
A primeira contribuição do Ministério Público data, ao que se tem
notícia, de 1983, em São Paulo, quando o órgão propôs uma ação ambiental com
pedido de cautelar em face do Ministério da Agricultura, que pretendia realizar uma
pulverização aérea no referido estado para combater uma praga nas regiões onde
se cultivava algodão (MAZZILLI, 2013, p. 165). Desde então, novos mecanismos
surgiram no auxílio do combate ao meio ambiente, como a própria LACP (BRASIL,
Lei nº 7.347/85), que expressa a sua preocupação para com a defesa da natureza
logo em seu primeiro artigo, inciso I.
Atualmente, o “Ministério Público ocupa o papel de maior destaque no
cenário jurídico nacional na defesa dos interesses supraindividuais, sendo o
responsável pelo ajuizamento de mais de 90% das ações civis públicas na defesa do
meio ambiente” (CAPPELLI, O MINISTÉRIO PÚBLICO E OS INSTRUMENTOS...),
sendo mais ativo que as próprias associações de defesa ambiental. Isso quer dizer
que, sem a atuação ministerial, a maioria das lesões à fauna e à flora – seja
patrimonial ou criminal – estaria impune, pois não há outro órgão com tamanho
aparato para a apuração dessas infrações e tampouco poder para a atividade
judicial e extrajudicial.
Ao se falar em atividade extrajudicial (ou administrativa), têm-se os
mesmos mecanismos observados anteriormente: inquérito civil, recomendações,
ajustamento de conduta e eventual arquivamento. A diferença é que o Ministério
Público, ao proteger administrativamente os interesses transindividuais relativos ao
meio ambiente, age em conjunto com órgãos ambientais como o CONAMA
(Conselho Nacional do Meio Ambiente), IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente) e a Polícia Militar Ambiental (VASCONCELLOS, O MINISTÉRIO
PÚBLICO NA TUTELA...), que reforçam na apuração e prevenção de danos
ambientais.
Finalmente, com relação aos grupos sociais diversificados, denota-se
que este conceito, criado para explanação na presente obra, abrange tanto os
segmentos da sociedade que gozam de maior proteção legislativa – interesses
relativos à proteção das mulheres, crianças, idosos, deficientes físicos e negros –
quanto às efetivas minorias, que sofrem preconceitos e abusos em decorrência de
religião, etnia, posição política ou orientação sexual.
38
Muitos avanços ocorreram na proteção aos direitos da mulher, como se
observa através da Lei Maria da Penha (BRASIL, Lei nº 11.340/06), a qual coíbe as
agressões físicas e psicológicas ao gênero feminino no seio familiar; o mesmo
aconteceu com as pessoas com mais de sessenta anos, que possuem diploma legal
próprio regulador de seus interesses (Lei nº 10.741/03, o Estatuto do Idoso),
atribuindo-lhes, por exemplo, prioridade no atendimento junto aos órgãos públicos e
privados prestadores de serviços públicos; e os menores de idade, que desde 1990
contam com o amparo do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA (Lei nº
8.069/80). Nestes casos, a legislação pátria é generosa, fazendo com que a atuação
judicial e extrajudicial possa angariar resultados positivos à população.
Em contrapartida, grupos sociais como o dos homossexuais não
encontram (ainda) uma legislação que os abarque de modo específico, sendo
imperioso que se retorne à Carta Política (BRASIL, 1988) em busca dos direitos e
garantias fundamentais do ser humano. De qualquer forma, com relação à sua
defesa em juízo, sempre poderá (e o fará) o Ministério Público a sua proteção
através da ACP e demais mecanismos de que dispõe, pois o processo coletivo é o
instrumento mais poderoso na tutela dos interesses transindividuais, quaisquer que
sejam (MAZZILLI, 2013, p. 780-781).
39
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As mudanças na sociedade afetaram diretamente o Direito, tanto com
relação às demandas a serem pretendidas quanto com relação às partes
componentes do processo. Observou-se que, progressivamente, o Estado foi se
tornando incapaz de prover à sua população a jurisdição que lhe bastasse
individualmente.
Isto posto, o interesse estatal tornou-se diverso do interesse social,
causando a insatisfação deste (MAZZILLI, 2013, p. 49). Somando-se o fato de que
as relações privadas também passaram a gerar controvérsias de âmbito pluralístico,
irrompeu a figura dos interesses transindividuais, tutelados tanto no âmbito do
Direito Público quanto no âmbito do Direito Privado, demonstrando que tal dicotomia
é regra ultrapassada perante o acesso à justiça.
Os interesses – ou direitos – transindividuais tiveram o seu embrião
formado a partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, que forçaram os
Estados a “reconhecer direitos econômicos, culturais e sociais” (ANDRADE, A.;
ANDRADE, L.; MASSON, 2011, p. 3), os quais evoluíram para direitos mais amplos,
que conferem ao ser humano a dignidade de que este necessita para viver.
Subdivididos em direitos difusos, direitos coletivos em sentido estrito e direitos
individuais homogêneos, os direitos supraindividuais possibilitam, numa ação judicial
concentrada, discutir os interesses violados das pessoas que não obteriam o mesmo
sucesso em demandas individuais, em função de não disporem de mecanismos de
apuração adequados.
Ciente de tal limitação, o Estado incumbiu o Ministério Público do dever
de amparo aos interesses transindividuais. Judicialmente, o Parquet realiza esta
proteção, em sua maior parte, através da Ação Civil Pública, obtendo diversas
decisões em favor da população. Subsidiariamente, o Ministério Público também
pode atuar junto ao cidadão na Ação Popular, auxiliando na produção de provas e
até sucedendo processualmente o demandante. Outrossim, em casos onde a
dilação probatória seja dispensável, começa-se a admitir a impetração de Mandado
de Segurança Coletivo pelo Órgão Ministerial, já havendo projeto de emenda
constitucional nesse sentido (BRASIL. Senado Federal, Projetos e Matérias
Legislativas).
No campo extrajudicial, tem-se como ferramenta os Compromissos de
40
Ajustamento de Conduta, acordos firmados entre o causador do transtorno e o
Parquet, estabelecendo as condições para o cumprimento da transação,
dispensando a propositura de uma demanda judicial. Entretanto, não sendo
satisfatória a tentativa de conciliação, desde logo o Ministério Público é autorizado
para intentar a ação cabível à proteção dos interesses transindividuais.
Proposta a discussão acerca da tutela penal dos interesses
transindividuais, observou-se que é plausível a lesão a esses interesses na esfera
penal, ao menos indiretamente, considerando que determinados crimes, como o de
ato obsceno, praticado em público, ferem bens jurídicos de uma coletividade,
implicando um gravame social. Por sua vez, o Estado, detentor do direito de punir,
atribuiu ao Ministério Público o dever de promover a ação penal pública,
resguardando o acesso à justiça das vítimas de tais delitos.
Finalmente, buscou-se mostrar a importância da atuação ministerial em
defesa do meio ambiente e dos grupos sociais minoritários, dada a preocupação
com a sustentabilidade dos recursos naturais no mundo contemporâneo e com a
intolerância perante parte da população que apresenta particularidades acerca de
sua etnia, religião, posição política e/ou orientação sexual. Assim, enquanto pela
defesa do meio ambiente existem leis protetivas e órgãos próprios que auxiliam o
trabalho do Parquet, a defesa dos interesses transindividuais inerentes às minorias
ainda constitui tarefa árdua, em virtude da falta de legislação específica. Contudo,
isso não impede que o Ministério Público aja em amparo a toda população, por meio
da ACP e dos demais mecanismos explicitados.
Por tudo aquilo que foi exposto, conclui-se que o Ministério Público é
uma instituição de fundamental importância na defesa dos interesses
transindividuais, sem o qual o acesso à justiça de inúmeras pessoas estaria
maculado em maiores proporções. Dito isso, deve-se promover cada vez mais a
informação e a educação, a fim de que todos aqueles que venham a ser lesados –
qualquer que seja a origem ou o grau dessa lesão, saibam da existência de órgãos
capazes de defenderem os seus interesses, em juízo ou fora dele.
41
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Adriano; ANDRADE, Landolfo; MASSON, Cleber. Interesses Difusos eColetivos: Esquematizado. São Paulo: Método, 2011.
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 2007.
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
_________. Código de Defesa do Consumidor. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de1990.
_________. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
_________. Código de Processo Civil. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973.
_________. Constituição Federal. Constituição da República Federativa do Brasilde 1988.
_________. Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965. Regula a ação popular.
_________. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública.
_________. Lei nº 8.069/80, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto daCriança e do Adolescente.
_________. Lei nº 10.741/03, de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto doIdoso.
_________. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir aviolência doméstica e familiar contra a mulher.
_________. Lei nº 12.016, de 7 de agosto de 2009. Disciplina o mandado desegurança individual e coletivo e dá outras providências.
CAMPELO, Silvia Galesi. A Atuação do Ministério Público em Sede de AçãoPopular, 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/14158/a-atuacao-do-ministerio-publico-em-sede-de-acao-popular/1>. Acesso em: 12 set. 2014.
CAPPELLI, Sílvia. O Ministério Público e os Instrumentos de Proteção ao MeioAmbiente. Disponível em: <http://www.mprs.mp.br/ambiente/doutrina/id14.htm>.Acesso em: 3 nov. 2014.
DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil:Processo Coletivo, v. 4. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2012.
FARIAS, Bianca Oliveira de; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Apontamentossobre o compromisso de ajustamento de conduta na lei de improbidade
42
administrativa e no projeto de lei da ação civil pública. Disponível em:<http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6468>. Acesso em: 29 out. 2014.
FONSECA, Bruno Gomes Borges da. A legitimidade ativa do Ministério Públicono mandado de segurança coletivo, 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/20449/a-legitimidade-ativa-do-ministerio-publico-no-mandado-de-seguranca-coletivo>. Acesso em: 4 nov. 2014.
GARCIA, Emerson. Ministério Público: Organização, Atribuições e RegimeJurídico. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
GRECO, Pablo José Perez. O Ministério Público e a defesa do meio ambiente.Disponível em: <http://www.zwarg.com.br/artigo8.html>. Acesso em: 12 nov. 2014.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública: em defesa do meioambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores. 10. ed. rev. e atual. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2007.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: meioambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses.26. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.
MIGUEL, Paula Castello; SANTOS, Ricardo Goretti. Irradiação de DireitosFundamentais nas Relações Jurídicas de Direito Privado: A Aproximação dePólos Dicotômicos. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/anais/36/13_1644.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2014.
NETO, Pedro Jorge. O Ministério Público e as Principais Ações em Defesa dosDireitos Difusos e Coletivos: Uma Análise Evolutiva. Disponível em: <http://www.mp.ce.gov.br/esmp/publicacoes/ed1/artigos/ministerio_publico_principais_acoes_defesa_direito_difuso_e_coletivo.pdf>. Acesso em: 3 nov. 2014.
PARANÁ. Tribunal de Justiça. Ap. 1212006-8, Relator: Des. Luiz Mateus de Lima, 3jun. 2014. DJ, 23 jun. 2014. Disponível em: <http://tj-pr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/25145048/conflito-de-jurisdicao-cj-12120068-pr-1212006-8-acordao-tjpr>. Acessoem: 8 nov. 2014.
PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro. Desvendando o Termo de Ajustamento deConduta, 2013. Disponível em: <http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/colunas/66485/desvendando+o+termo+de+ajustamento+de+conduta.shtml>. Acesso em: 27out. 2014.
Senado Federal. Portal Atividade Legislativa: Projetos e Matérias Legislativas.Disponível em: <http://www.senado.leg.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=82169>. Acesso em: 12 nov. 2014.
SMANIO, Gianpaolo Poggio. O conceito de bem jurídico penal difuso, 2004.Disponível: <http://jus.com.br/artigos/5714/o-conceito-de-bem-juridico-penal-difuso>.Acesso em: 11 nov. 2014.
43
VASCONCELLOS, Emanueli Berrueta de. O Ministério Público na Tutela do MeioAmbiente. Disponível em: <http://www.amprs.org.br/arquivos/comunicao_noticia/emanueli.pdf>. Acesso em: 14 nov. 2014.