Post on 19-Nov-2018
“ASSALTANTE, TERRORISTA, SUBVERSIVO”: REPRESENTAÇÕES DE
CARLOS MARIGHELLA NA REVISTA VEJA (1968-1969)1
Sandro Leite Souza2
Durante o período que vigorou a ditadura civil militar no Brasil (1964-1985), vários sujeitos
se destacaram na luta contra o regime instaurado a partir de um golpe civil militar. Nesse
sentido, elegemos Carlos Marighella como nosso objeto de estudo. Assim, pretendemos
entender como foram construídas as representações em torno deste homem que tanto lutou e
que perdeu a vida em nome da luta pela liberdade e pela democracia. Para que tentássemos
responder aos nossos questionamentos utilizaremos algumas reportagens da Revista Veja que
trataram sobre Marighella entre 1968-1969 nos valendo metodologicamente da análise do
discurso na perspectiva de (ORLANDI, 2010). Dentro das discussões teóricas nos embasamos
nas fundamentações de (RIDENTI, 2010), (RAUTENBERG, 2011), (SOARES, 2012),
(CHARTIER, 1990) e (SILVA JÚNIOR, 2005). Marighella foi líder de uma das maiores
organizações que lutou contra a ditadura, mas para muitos era apenas “(...) líder de um grupo
de subversivos, assaltantes, e terroristas candidatos a guerrilheiros (...)”. Partindo desse
pressuposto o que se pretende é analisar como foi construído o perfil desse guerrilheiro que
atuou como um dos maiores combatentes ao regime militar instaurado no Brasil em 1964.
Palavras-chaves: Marighella, Representações, Ditadura.
INTRODUÇÃO
Durante o tempo que vigorou a ditadura Civil-militar no Brasil, vários sujeitos se destacaram
por resistirem ao regime. Dentre tantos, elegemos um para estudarmos. Nesse trabalho iremos
debruçar nossas análises sobre um personagem específico, Carlos Marighella. Nesse texto
trabalharemos com as representações acerca de Marighella a partir das análises de algumas
reportagens que a Revista Veja publicou a seu respeito. Para tanto, o nosso objetivo aqui é
compreender como a VEJA divulgou e construiu a imagem de terrorista e subversivo sobre
Marighella.
1 Trabalho orientado pela professora Sandra Regina Barbosa da Silva Souza. Atualmente atua na coordenação da
Comissão Estadual da Verdade – Bahia. 2 Graduando em História pela Universidade do Estado da Bahia Campus XVIII Eunápolis-ba. E-mail:
sandroleite6@hotmail.com.
O período da ditadura civil-militar no Brasil foi uma época em que os movimentos sociais e
as guerrilhas foram fundamentais para o declínio do Regime Militar implantado no nosso país
a partir de 1964. Contudo, segundo (RIDENTI 2010, p 29)
Ogolpe civil-militar e a derrota sem resistência das força ditas progressistas em
1964 marcaram profundamente os partidos e os movimentos de esquerda brasileiros.
Os nacionalistas, a POLOP e outros grupos, que já advertiam para a necessidade e
resistência armada a um golpe de direita, praticamente nada fizeram para levar
adiante a resistência, enquanto o PCB e outras forças reformistas assistiram
perplexos à demolição de seus ideais. Logo se faria sentir sobre o conjunto da
esquerda o “terremoto” de 1964, com a dispersão da maior parte das forças
populares que começavam a adentrar na cena política. (...).
Nessa conjuntura política que surge a Ação Libertadora Nacional (ALN) comandada por
Carlos Marighella e que se tornou uma das mais famosas organizações da esquerda durante a
ditadura civil militar instaurada em 1964. Com objetivo de realizar ações contra a ditadura
tanto no campo quanto a na cidade a ALN se destaca pelo seu caráter revolucionário
agrupando os dissidentes do PCB. Para Ridenti,
As principais cisões do PCB, nas bases e na cúpula, foram as capitaneadas pelo líder
Carlos Marighella, que criaria a Ação Libertadora Nacional (ALN), e pelo dirigente
Mário Alves, que daria origem ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário
(PCBR). ALNe PCBR tiraram militantes do PCB em todo o país, organizando-se
nacionalmente, embora a ALN tivesse sua força principal em São Paulo e o PCBR
na Guanabara. (RIDENTI, 2010, p. 30).
Com o surgimento das novas organizações de esquerda no país, passa-se a ter um
enfrentamento ao regime militar. Nessa luta cada um se valia da arma que tinha para se
defender ou atacar. Nesse cenário de combate entre esquerda e direita que se dá as ações de
Carlos Marighella como líder da ALN. Em meio a essedueloideológico surge a Revista Veja,
lançada em1968 com o objetivo de manter a sociedade brasileira informada sobre os
acontecimentos do Brasil e do mundo.
No primeiro editorial da revista, seu editor anuncia a chegada de uma revista inédita no país.
No texto, o autor coloca para que finalidade a revista nasceu.
Prezado leitor:
Onde quer que você esteja, na vastidão do território nacional, estará lendo estas
linhas praticamente ao mesmo tempo em que todos os demais leitores do País. Pois
VEJA quer ser a grande revista semanal de informação de todos os brasileiros. (...)
No decorrer dos últimos três meses, preparamos treze edições experimentais
completas — com capa, texto, fotos e anúncios —, a fim de treinarmos para a
grande jornada que hoje se inicia. (...) Devemos esta revista — em primeiro lugar —
aos milhões de leitores que através dos anos têm prestigiado nossas publicações. Às
classes governantes, produtoras, intelectuais que reclamaram da Abril este
lançamento. Aos jornalistas, que com dedicação e espírito profissional o tornaram
possível. Aos quase mil gráficos que participam, entusiasticamente, de seu complexo
esquema de produção semanal. Aos distribuidores, jornaleiros e transportadores que
aceitaram o desafio de vencer as enormes distâncias nacionais na corrida até as
bancas, toda segunda-feira. E às agências e aos anunciantes que tomaram todo o
nosso espaço disponível sem sequer conhecerem o projeto final da revista, numa
comovedora prova de confiança. Conscientes da responsabilidade assumida ao editar
VEJA, dedicamos a revista a todas essas pessoas. Ao Brasil de hoje e de amanhã.
(VEJA 1ª edição 11/09/1968, p. 21-22).
No início do seu discurso Veja já diz a que veioque esta será a “voz” do país de norte a sul,
como a mesma afirma: “Onde quer que você esteja, na vastidão do território nacional, estará
lendo estas linhas praticamente ao mesmo tempo em que todos os demais leitores do País”, ou
seja, seu discurso enaltecedordos grandes empresários edo governo como sendo o clamor da
sociedade. Nesse sentido, entendemos que a imprensa e em especial a Revista Veja, tem
grande influência sobre seus leitores. Muitos desses sujeitos aceitam o que os periódicos
trazem como uma verdade e são incapazes de questioná-las. Dessa premissa, concordamos
com Edina Rautenberg (2011) quando afirma que:
A hiperabundância de informações veiculadas pela mídia constitui-se em uma
história que se resume em: subinformação (quantidade sem qualidade); sucessão de
fatos sem nexo; conhecimento fragmentado, não sistematizado e banalizado; os
elementos necessários para a compreensão crítica do evento estão sempre ausentes
(o evento é apresentado como inevitável; é dissociado de seus antecedentes,
retirando-o do processo histórico; é dissociado de seu contexto; é “analisado” em
escala local, sem referência a contextos mais amplos) (...) (RAUTENBER, 2011, p.
65).
Essa passividade dos receptores e intencionalidades vinculadas pela mídia, que permite aos
veículos de informação agir de maneira corrupta, manipulando o que é divulgado conforme
seus interesses, tanto políticos, econômicos e ideológicos. Nesse jogo de interesses “a
imprensa torna-se, portanto, importante instrumento de alguns atores dessa luta, onde os
setores dominantes implementam seu programa partidário, apresentado e recoberto de suposta
neutralidade, realizando uma distribuição específica de poder”3. Nessa perspectiva a Revista
Veja não fica de fora quando entendemos que a “notícia” não é necessariamente expressão da
verdade, mas algo produzido com um fim precípuo, o de ser vendido como qualquer outro
3 RAUTENBERG Edina. A revista Veja durante a ditadura civil-militar brasileira: uma discussão a respeito do
seu papel no campo do poder e da luta de classes. In: Em Debat: Rev., ISSNe 1980-3532, Florianópolis, Santa
Catarina, Brasil n. 5, p. 64-85, 2011. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/emdebate/article/view/1980-3532.2011n5p64/19853.
produto”4. Com isso, acreditamos que o interesse maior da maioria dos meios de comunicação
não é meramente informativo, pois “não refletem a realidade - como se fosse sobre ela um
espelho - mas têm algum tipo de relação com a realidade, que acaba por distorcê-la,
apresentando outra realidade que passa a ser base para a compreensão do real daqueles que os
ouvem/assistem/leem.”(SILVA, 2006, p.05).
Por saber dessa relação da imprensa com a manipulação da realidade que nesse trabalho
estamos procurando entender como o Guerrilheiro Carlos Marighella foi retratado pela
Revista Veja. Nesse sentido segundo Chartier (1990, p. 17)
As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem
estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma
autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto
reformador ou justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas.
Assim, entendemos o discurso de Revista Veja acerca de Carlos Marighella como uma
construção ideológica, pautada na negativação das suas ações através das informações
publicadas sobre ele. Deste modo, na noção de representação trabalhada por Chartier ele lança
mão para designar o modo pelo qual em “diferentes lugares e momentos uma determinada
realidade é construída, pensada, dada a ler”por diferentes grupos sociais (CHARTIER, 1990,
p.16). Nessa perspectiva, foram-se criando as representações sobre os movimentos de
esquerda e suas lideranças que atuavam em ações combativas contra o regime. Nessa
construção a Revista Veja serviu de fio condutor da ideologia do regime militar enquanto um
periódico de circulação nacional ao construir uma imagem descontextualizada sobre a
esquerda brasileira do período da ditadura.Nesse sentido Chartier nos auxilia dizendo que:
As representações do passado construídas ao longo de tempo os fizeram seus
protagonistas. As representações mentais sempre distorcem, ocultam ou manipulam
o que foi e essa é a razão pelaqual focalizar sobre elas não pode senão abrir os
caminhos do relativismo, do ceticismo e das falsificações. Para que possam exercer-
se de maneira adequada a “função critica que e inerente a historia”, os historiadores
precisam se libertar das representações ilusórias ou manipuladoras do passado e
estabelecer a realidade do que foi. (CHERTIER 2011, p. 16).
Percebendo essa dicotomia que assumem os sujeitos e seu papel na história,que optamos em
estudar Carlos Marighella e suas representações no discurso da Veja. Nesse caso entendemos
4 SILVA, Carla. Estudando a imprensa para produzir história. III Simpósio Estadual Lutas Sociais na América
Latina, 2006, Londrina. In: ANAIS, Crise das democracias latino-americanas: dilemas e contradições. Londrina:
Eduel, 2006.
discurso como algo que “se constitui em seus sentidos porque aquilo que o sujeito diz se
inscreve em uma formação discursiva e não outra para ter um sentido e não outro.”
(ORLANDI, 2010, p, 43). Todo discurso proferido tem um sentido que carrega em si a
ideologia de quem o produziu. Por isso, entendemos que ao fazer a análise do discurso da
Veja sobre Marighella entenderemos o posicionamento da revista em relação ao Regime
Militar e seus opositores.
Desse modo, os sentidos sempre são determinados ideologicamente. Não há sentido
que não o seja. Tudo que dizemos tem, pois, um traço ideológico em relação a
outros traços ideológicos. E isso não está na essência das palavras mas na
discursividade, isto é, na maneira como, no discurso, a ideologia produza seus
efeitos, materializando-se nele.(...). (ORLANDI, 2010, p. 43).
Assim, o que é produzido pela revista Veja pode-se dizer que é um discurso materializado de
ideologias com a intenção de informar e ao mesmo tempo dizer como a população (leitores)
devem agir ou pensar segundo a ordem governante vigente.
CARLOS MARIGHELLA NAS PÁGINAS DA VEJA
Na edição de 11 de novembro de 1968 a revista traz em sua capa uma foto de Marighella com
a seguinte manchete: “Procura-se Marighella chefe comunista, crítico de futebol em
Copacabana, fã de cantadores de feira, assaltante de bancos, guerrilheiro, grande apreciador
de batidas de limão”. Na manchete que estampa a capa percebe-se que no discurso da Veja há
uma tentativa de desmoralização de Marighella com uma alternância de adjetivos pejorativos,
pois as expressões chefe comunista,assaltante de bancos e guerrilheiro veem em destaque
tentando chamar a atenção do leitor para àquele que a revista diz ser “crítico de futebol, fã
de cantores de feira e grande apreciador de batidas de limão”. Ao nos depararmos com
esse jogo de palavras proferido pela revista, percebemos que há um desencontro de
informações que nos leva a um paradoxo em relação da identidade que a revista que passar
sobre Carlos Marighella. Ela seria o mocinho ou o bandido da história? Cabe-nos nesse
trabalho tentar desvendar essas contradições geradas pela Veja como podemos ver na
imagem5 abaixo.
A primeira reportagem de Veja sobre Marighella com ele na capa foi intitulada “A caçada”,
com a manchete da capa “Procura-se” apresenta-o como uma pessoa pacata, que gosta de
tomar sol nas praias de Copacabana. Segundo a revista esta vida tranquila acabou depois da
prisão de um estudante em um posto de gasolina que seria um dos informantes. Com a prisão
do estudante Paulo César Bezerra e depois de sua confissão, Carlos Marighella passou a ser
procurado como líder de uma organização nacional que realizava assalto a bancos e ações
subversivas em todo país.
De pé diante de um balcão de botequim no Posto Quatro de Copacabana, tomando
batida de limão, Carlos Marighela prestava o seu depoimento: "A seleção brasileira
de futebol este ano está muito fraquinha". Não muitos dias depois, começava a caça
nacional ao homem robusto de pele morena e cabelo claro já grisalho, que
diariamente tomava três horas de banho de sol e mar, comia cachorro-quente nas
praias cariocas e conversava com crianças. Sempre tendo à mão ou sobre mesinhas
de bar um copo de batida - sua bebida predileta -, vindo depois a laranjada e a água
de côco-da-baía. Ainda não tinha sido preso o estudante Paulo César Bezerra, que o
aponta como chefe nacional de uma organização subversiva que anda assaltando
bancos. (VEJA, 20/ 11/68, p. 15).
Nessareportagem a revista apresenta um discurso debochado, e mal intencionado, pois narra
as ações dos “terroristas” de meros vândalos que atacam e saqueiam sem nenhuma
preocupação. Falando sobre Marighella a revista afirma em tom de sarcasmo que sua vida se
transformou em uma grande novela, onde pode-se encontrar de tudo. Percebemos uma
5Capa Revista Veja 11 de outubro de 1968
intencionalidade da Veja em criar uma imagem distorcida de Carlos Marighella ao levantar
várias suposições sobre as pessoas envolvidas no que a revista chama de “novela”. São
criadas várias personagens para compor a trama novelística como é tratada a situação na
reportagem de Veja. Há assaltantes armados, louras fatais, intrigas familiares e tudo que
compõe uma boa trama de novela.
Na novela desta caçada não falta nada do que compõe um bom programa de
televisão. Há assaltos espetaculares de homens com metralhadoras em bancos de
todo o País: há intrigas familiares - o principal acusador, o estudante Paulo César,
filho de um falecido militante comunista, é namorado da filha de um tenente-coronel
que já prestou serviços ao Serviço Nacional de Informações. Não faltam aventuras
amorosas - a mãe de Paulo César seria amante de Carlos Marighela, homem de 57
anos. Há também a inevitável loura de 35 anos, suposta companheira de Marighela
nos amores e nos assaltos, que seria estudante de Medicina no Ceará ou aluna de
Filosofia em São Paulo, mas sempre é apontada como loura de franjinhas. Ela atende
pelo nome de Sílvia e usa luvas cirúrgicas quando carrega metralhadoras para
assaltar bancos. (VEJA, 20/11/68, p. 15-16).
No discurso apresentado acima, quando a Veja compara as ações dos guerrilheiros com um
programa de televisão, há uma tentativa de desvalorizar as atitudes das pessoas envolvidas nas
ações que a revista chama de “subversivas”, principalmente Marighella. Em uma sociedade
movida por uma moral cristã, nada mais perspicaz do que criar uma imagem de adúltero de
uma dos maiores líderes da esquerda do período. Há uma dupla representação no discurso que
nos é apresentado pela Revista Veja. Primeiro “não faltam aventuras amorosas - a mãe de
Paulo César seria amante de Carlos Marighela”. Segundo, “há também a inevitável loura de
35 anos, suposta companheira de Marighela nos amores e nos assaltos, que seria estudante de
Medicina no Ceará ou aluna de Filosofia em São Paulo, mas sempre é apontada como loura de
franjinhas”.
Nos casos apresentados, cria-sea imagem de uma pessoa que é dada aos desejos e prazeres
carnais, um galanteador que sai ficando com todas as mulheres envolvidas nos esquemas
organizados por Marighella. Nesse sentido, entendemos que a Veja deseja ganhar o apoio da
sociedade, criando uma imagem distorcida ao apresentar uma visão sobre Carlos Marighella
de adúltero, boêmio, que passava seus dias pegando uma praia em Copacabana.
Segundo Ronchi (2011) uma das medidas adotadas pelo regime era a desmoralização política
da sociedade com a cassação dos mandatos políticos dos seus opositores, criminalização dos
movimentos e dos seus líderes.
As medidas ditatoriais adotadas na primeira fase do regime militar visavam, além de
desmobilizar politicamente a sociedade, marginalizar as lideranças civis em relação
aos processos decisórios, agigantar o poder Executivo Federal frente aos demais
poderes e à autonomia dos estados e, por fim, exercer rígido controle sobre os
processos eleitorais a nível federal, estadual ou municipal. (RONCHI, 2011, p. 36).
Com isso, Veja faz muito bem seu papel ao criar uma imagem caricata de Marighella
colocando seus feitos como uma grande novela, cheia e confusões e conflitos. Destas
construções discursivas que a boa parte da sociedade passará a julgar todos àqueles que se
colocaram contra o regime ditatorial instaurado no país em 1964. Por muito tempo esse foi o
papel da imprensa na ditadura. Assim,
As empresas jornalísticas devem ser vistas como partidos de determinados grupos
políticos e econômicos, em consonância com seus programas, ou seja, suas
interpretações da realidade, acabam interferindo no conhecimento que se tem sobre a
realidade e na tomada de posições sobre elas. (SILVA, 2006, P. 02).
Partindo desse pressuposto, concordamos com (RONCHI, 2011, p. 09) quando este afirma
que, “o governo militar recorreu, em todo o período ditatorial, a diversos mecanismos
coercitivos os quais variaram da repressão policial às manifestações de rua até a
sistematização de todo um aparelho de espionagem, policiamento político e censura.” E
também ao poder dar mídia como fica claro a influência da Revista Veja pelo caráter de
alcance nacional.
A Veja tenta de todas as maneiras criar uma visão negativa sobre as ações guerrilheiras no
país “É preciso que o povo sinta a alta periculosidade dos elementos que estão tentando
quebrar a ordem no País, e nos ajude dando informações e evitando que esses elementos se
ocultem de nós”. (VEJA 25/09/68, p.23-24). Com esse tipo de informação sendo levada a
todos os cantos do Brasil, a Revista diminui todo o caráter ideológico e de resistência das
ações dos guerrilheiros, ao criar uma imagem pejorativa sobre seus atos.
A REVISTA VEJA E A MORTE DE CARLOS MARIGHELLA
Sobre Carlos Marighella se construiu várias representações no decorrer da sua vida e também
sobre a sua morte. “Segundo a polícia, a morte do dirigente comunista aconteceu devido à sua
resistência à prisão. Marighella teria reagido, e seus seguranças teriam trocado tiros com os
policiais.” (SOARES, 2012, p. 08).
Nesse sentido, Veja levanta algumas possibilidades sobre como teria ocorrido a emboscada
que resultou na morte de Marighella.Na edição número 62 Marighella aparece ne sessão terror
da revista com a seguinte manchete “estratégias para matar o terror” se referindo ao aparato
policial que se formou para emboscar Carlos Marighella.
Ilustrando a primeira página da matéria, três fotos: Marighella morto no interior do
Volskswagen, seu corpo já fora do carro, e, por fim, a cova onde foi sepultado. As imagens
são acompanhadas pela seguinte afirmação: “Carlos Marighella está morto, sepultado em uma
cova rasa [...] Sua última batalha [...] acabou com o mito de que os generais do terror eram
perfeitos estrategistas” (VEJA, 12/11/69, p.22).
Seguindo com a reportagem a revista Veja levanta algumas possibilidades sobre como teria
ocorrido a emboscada que resultou na morte de Marighella. Veja cita o Mini Manual do
Guerrilheiro para desestabilizar as ações naquele dia. Faz uma fala, citando Marighella com
trechos retirados do seu livro onde ensina como o guerrilheiro deve agir em situações
extremas. No discurso apresentado pela Revista VejaMarighella aparece como aquele que
sabe dá conselhos, mas não os sabe seguir. Há um ar de sarcasmo com que dizendo, você não
era o melhor, o mais procurado, o mais temido e acabou caindo na sua própria armadilha.
Marighella em seu Mini Manual diz que "contra a surpresa o inimigo nada pode opor e rende-
se perplexo ou é aniquilado” dessa fala Veja ironiza a atual situação em que se encontra
Marighella afirmando que:
A surpresa, que Carlos Marighella considerava fundamental para o êxito de ações
subversivas, foi a arma usada pelo DOPS de São Paulo para derrotá-la. Em seu
"MiniManual do Guerrilheiro Urbano", o homem apontado como a alma da escalada
do terror no Brasil ensinava que "contra a surpresa o inimigo nada pode opor e
rende-se perplexo ou é aniquilado". Na noite de terça-feira da semana passada,
surpreendido numa armadilha, cercado por quase quarenta policiais, Marighella não
se rendeu. E foi aniquilado. (VEJA 12/11/69 p. 22).
A Vejase ampara no seu poder de alcance na sociedade e do grande número de pessoas que a
companha para disseminar e criar suas verdades e que vá de acordo com os interesses do
regime militar. Nesse caso especifico a Revista cria uma situação onde Carlos Marighella,
apesar de todo seu conhecimento sobre as ações subversivas, suas táticas falhou ao se deparar
com a astúcia dos policiais do DOPS, ao montarem o esquema que resultou na sua morte.
Segundo a revista Marighella e seus companheiros estavam confiantes demais no esquema
que haviam planejado que nem se deram conta que estavam indo pra uma emboscada.
“Esse esquema falhou. Seu mais eficiente guarda costas, "Gaúcho", não observou
outro ensinamento do Mini-Manual: "O guerrilheiro urbano deve possuir uma
grande capacidade de observação, estar muito bem informado de tudo,
principalmente dos movimentos do inimigo". (VEJA 12/11/69 p. 22).
Com a morte de Marighella imaginou-se que haveria uma recuada das ações guerrilheiras no
país, como nos afirma Soares (2012),
A morte de Carlos Marighella, se não significa o fim do terrorismo, põe por terra
pelo menos a impressão de uma estrutura sólida e imbatível da subversão. Em todo o
país, as declarações de autoridades policiais, militares e de políticos revelam essa
tendência otimista para o combate ao terror. (...) (p. 25).
Marighella era tido como o líder máximo do terror, “o inimigo número um da ditadura”, mas
segundo discurso apresentado pela Revista Veja, foram usadas na captura de Carlos
Marighella as mesmas táticas para se capturar um criminoso comum. Citando a fala do
delegado DOPS6 que afirma que as táticas são as mesmas tanto para terroristas ou bandidos
comuns. Nesse discurso, a intencionalidade é inferiorizar um dos maiores líderes da esquerda
brasileira tratando-o como um bandido qualquer, como evidenciamos no trecho da Veja que
segue.
Usaram sua experiência no combate a marginais comuns. Para eles, a motivação
política era secundária. Um assalto a banco, praticado por terrorista, deveria ser
investigado como um assalto comum. O terrorista que roubasse um automóvel
deveria ser procurado como qualquer "puxador". A tática usada no cerco de
Marighella, segundo um delegado do DOPS, foi a mesma empregada normalmente
na captura de marginais: "Quando a gente prende um malandro, ladrão ou assassino,
enfim um bandido, e a gente sabe que ele tem um companheiro, obrigamos o preso a
nos levar até o barraco onde o outro mora. O bandido vai lá, bate na porta, o outro
pergunta 'Quem é?', e o bandido responde 'Sou eu'. O camarada abre a porta e
entram dez policiais junto com o bandido". (VEJA, 12/11/69 p. 26).
Das construções discursivas apresentadas na Revista Veja sobre Marighella há uma tendência
em sempre mostrar um lado negativo, carregado de pretensões, que os leitores,na maioria das
vezes desinformados do real contexto onde se realizou a ação, se apropriam desse discurso
6 Departamento de Ordem Política e Social.
como sendo a verdade. Assim, entendemos que uma narrativa é sempre carregada das
ideologias de quem a produziu. Os discursos tomam formatos de acordo com as
intencionalidades do seu produtor, chegando aos seus receptores como algo verdadeiro e
inquestionável. De maneira geral a imprensa tem esse poder, pois, a sua narrativa nunca é
neutra e gera interpretações sobre os diversos aspectos da vida humana: seja o
macroeconômico, seja o micro comportamental. Através delas as pessoas tomam posição e
circunscrevem suas visões de mundo. Acaba sendo uma forma de manutenção da hegemonia
vigente. (SILVA, 2006, p. 02).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse trabalho tentamos entender como foram construídas as representações sobre Marighella
à luz das reportagens da Revista Veja, e como esta influenciava os seus leitores disseminando
suas verdades. Carlos Marighella sempre aparece na sessão intitulada “Terror” ou
“Subversivos”. Diante disso, percebemos que o periódico tentou a todo o momento criar uma
imagem negativa, distorcida, sobre Marighella. São passadas informações
descontextualizadas, criando assim estereótipos sobre todos que uma forma ou de outra atuou
nas ações de combate à ditadura civil-militar que se instaurou no Brasil em primeiro de abril
de 1964.
Carlos Marighella está longe de ser o representante do povo brasileiro durante a ditadura. Foi
um homem que lutou contra um sistema econômico e político de exclusão e exploração.
Almejava um sistema socialista, sonho que com a ditadura ficou impossível de realizar.
As imagens de terrorista, subversivo, inimigo, traidor, etc. foram assimiladas por grande
parte da sociedade deixando no esquecimento o lado herói, justiceiro, libertador dos
oprimidos. O que aconteceu com Marighella não é diferente de hoje, muitos dos heróis que
possuímosestão aclamados nos estádios de futebol lotados. Este que deu a vida pelo que
acreditava, por muito tempo foi esquecido pela sociedade, ficou ausente da memória, da
história do povo brasileiro. As memórias construídas – à esquerda e à direita – não servem à
história. E, provavelmente, uma e outra sejam desconhecidas do povo brasileiro. Homens sós,
nas suas vidas, nas suas mortes e assim permanecem nas memórias que os isolam da história.
REFERÊNCIAS
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel,
1990.
______. Defesa e ilustração da noção de representação. In.:Fronteiras,Dourados, MS, v.
13, n. 24, p. 15-29, jul./dez. 2011.
ORLANDI,Eni Puccinelli. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 9ª edição,
Campinas, SP. Pontes Editora – 2010.
RAUTENBERG Edina. A revista Veja durante a ditadura civil-militar brasileira: uma
discussão a respeito do seu papel no campo do poder e da luta de classes. In: Em Debat:
Rev., ISSNe 1980-3532, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil n. 5, p. 64-85, 2011. Disponível
em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/emdebate/article/view/1980-3532.2011n5p64/19853
SILVA, Carla. Estudando a imprensa para produzir história. III Simpósio Estadual Lutas
Sociais na América Latina, 2006, Londrina. In: ANAIS, Crise das democracias latino-
americanas: dilemas e contradições. Londrina: eduel, 2006.
RONCHI, Luís Fernando de Lima. Violência contra violência: a inter-relação entre as
propostas de luta armada e o fechamento ditatorial: 1964-1969 – Maringá, 2011.
SILVA JÚNIOR, Edson Teixeira: Um combate ao silêncio: a ALN (Ação Libertadora
Nacional e a Repressão Política). Niterói, 2005.
SOARES,Wagner dos Santos. De inimigo público a herói nacional: representações da
morte de Carlos Marighella. Dissertação (Mestrado em História). 2012. 136 f. Universidade
Estadual de Maringá: Maringá, 2012.