Post on 19-Jan-2019
1
AS GREVES METALÚRGICAS DE 1978 EM SÃO PAULO: IMPACTOS NO
CICLO DE GREVES
A identificação de um ciclo de greves deve considerar o volume de paralisações
em um determinado período de tempo, a quantidade de jornadas não trabalhadas, a
média de dias parados, os setores e categorias envolvidos. A partir da análise destes
dados, o cientista político Eduardo G. Noronha elaborou um dos modelos possíveis de
periodização e classificação do ciclo de greves iniciado no Brasil com os metalúrgicos
da Scania em São Bernardo do Campo em maio de 1978. O autor sugere a ocorrência de
um grande ciclo entre 1978 e 1997 dividido em três fases: 1978-1984 – início e
expansão; 1985-1992 – “explosão” e 1993-1997 – resistência e declínio. A primeira
fase, por sua vez, merece de Noronha ordenamento em três subfases: 1978-1979 –
momento inaugural, concentrado nos metalúrgicos do ABC e espalhando-se para outros
municípios e estados envolvendo principalmente o setor privado. Nesta subfase teriam
se definido “características da atuação sindical que marcaram esse período” (p. 128).
Em seguida vem a subfase delimitada entre 1980 e 1982, que se distinguiria pela
retração do movimento grevista em função da conjuntura política e econômica
desfavorável e, por fim, os anos de 1983 e 1984, de retomada das greves com expansão
para o setor público e um abrandamento da repressão depois da eleição de governadores
de oposição à ditadura em 1982.
O presente artigo propõe-se a contribuir com o debate sobre as características e
o impacto do ciclo de greves iniciado em 1978 a partir do trabalho com fontes primárias
e de uma perspectiva de microanálise: concentra-se nas paralisações levadas a efeito
pelos metalúrgicos de São Paulo em maio, junho e outubro de 1978 e destaca aspectos
qualitativos do fenômeno, tais como as formas de organização, as características
específicas das paralisações em cada período do ano, as pautas e projetos dos sujeitos
coletivos envolvidos. Busca-se, com isto, uma compreensão do papel do movimento
operário na transição da ditadura para o regime democrático não apenas relacionando
conjunturas com estatísticas de paralisações, mas procurando reconstituir a inextricável
relação entre legislação antioperária, modelo econômico, regime fabril e ditadura, por
um lado, e a luta por liberdades democráticas, mudanças nas condições de vida e
reprodução das famílias de trabalhadores e transformações políticas e sociais, por outro.
Houve um tempo em que as “greves econômicas” provocavam imediatas e
inevitáveis ressonâncias políticas e os sujeitos sabiam, viviam e reagiam a esta condição
em cada situação. Trata-se, portanto, de reconstituir, dentro de um ciclo de média
duração (1978-1997), a ação dos sujeitos coletivos em conflito para desvendar como as
2
relações de forças vão se delineando no curso dos acontecimentos, condicionadas por
variáveis macroeconômicas e sociopolíticas.
Tomemos como exemplo a greve da empresa Toshiba, produtora de aparelhos
eletrônicos e semicondutores, situada, então, na Vila Arapua. Iniciou-se em 26 de maio
de 1978, uma sexta-feira, às 9 horas, depois do horário do café. Quase quinze dias,
portanto, após a greve inaugural da Scania. O impacto do movimento de São Bernardo e
Santo André no momento em que os operários e operárias da Toshiba cruzaram os
braços pode ser avaliado em duas dimensões mais visíveis: a da repercussão de uma
ação que testou, revelou e produziu uma nova relação de forças, mais favorável à luta
operária, e a do aprendizado prático de como realizar uma greve naquela conjuntura.
O primeiro aspecto surge em depoimentos como o do principal líder da parede
da Toshiba, Anísio Batista: “(...) as greves do ABC beneficiaram muito porque o
pessoal se entusiasmou bastante com as greves de lá. O pessoal achava que se tinha
greve no ABC podia ter na Toshiba também. Mas a greve foi organizada”.1 O
depoimento de Maria José Edviges sobre a paralisação na Philco, realizada também em
1978, reforça este “efeito demonstração” de aberturas e possibilidades: “(...) quando foi
1978, quando estouraram as greves em São Bernardo, para nós foi o estopim, é como
quem diz assim: lá eles fizeram, por que não nós? Nós podemos”.2
O aspecto do aprendizado pode ser apreendido na semelhança das formas de
organização das paralisações na Scania e Toshiba: ambas foram greves por fábrica,
iniciadas (e no caso da Toshiba finalizada) sem o envolvimento do sindicato e com os
operários e operárias de braços cruzados em frente às máquinas paradas. Sobre esta
tática, esclarece Anísio: “Nós decidimos que a greve nossa ia ser a greve de parado na
máquina, braços cruzados, cada um no seu posto, por tempo determinado por motivo de
salário. Porque uma greve de piquete igual antigamente a gente viu que os operários não
iam assumir”.3
A pauta de reivindicações da Toshiba, por sua vez, define o que importava
naquele momento: recuperação do valor dos salários, melhores condições de trabalho e
fim da repressão. Alcançar e manter estas conquistas impunha aos trabalhadores
organizar-se em coletivos maiores e opunha-os à política salarial em vigor, ao regime
fabril articulado pelo empresariado após 1964 e ao que restava da ditadura civil-militar.
1 “Depoimento de Anísio Leite para Márcia sobre a greve na Toshiba”. Centro de Memória Sindical.
Pasta Ca01 Metalúrgicos de São Paulo. ( O depoimento está transcrito em papel timbrado da Folha de São
Paulo. O sobrenome do depoente está registrado incorretamente) 2 Depoimento de Maria José Edviges a Murilo Leal em 13/1/18 3 “Depoimento de Anísio Leite para Márcia sobre a greve na Toshiba”. Centro de Memória Sindical.
Pasta Ca01 Metalúrgicos de São Paulo.
3
Sobre a pauta, a reportagem da Folha de S. Paulo registra que, em documento
destinado à direção da empresa, os empregados
...pedem melhorias nas condições de trabalho, reclamam da falta de segurança no
serviço e solicitam que a empresa marque nova eleição para membros da CIPA.
Também reivindicam da firma a contratação de novo convênio médico, mais próximo
da empresa e o pagamento das horas paralisadas, bem como melhoria na qualidade das
refeições.4
A leitura do próprio documento chama a atenção para os valores morais,
relacionados à dignidade humana, contidos em algumas das reivindicações e,
implicitamente, para a urgência da reconquista do direito de organização e greve:
3. Queremos um refeitório com condições de espaço e higiene para que possamos tomar
nossas refeições com tranquilidade necessária e evitar a triste e desumana situação onde
muitos companheiros chegam a almoçar nos vestiários e por cima de peças ou caixas em
diversos locais
(...)
6. Não apresentaremos nenhuma comissão que nos represente sem que tenhamos a
garantia de que os participantes dela não serão atingidos por nenhuma punição e que só
sejam demitidos se julgados por falta grave.
7. Por fim, queremos que nenhum companheiro seja punido por participar do nosso
movimento (...)
São Paulo, junho de 1978, Zona Sul5
Naquele contexto, a reivindicação salarial adquiriu uma conotação de Justiça e
de “reparação” após anos de sofrimento, desvinculando-se de seu referente específico,
“corporativo”. Em uma das reuniões da comissão com os administradores, após
“demonstração” em lousa das dificuldades da multinacional japonesa, um operário
pediu a palavra e ousou contrapor-se: “Puxa, e se em vez de colocarmos na lousa os
problemas da fábrica nós colocássemos os problemas dos operários depois de catorze
anos de arrocho salarial?”6
Cabe, finalmente, analisar as formas de organização da greve da Toshiba, já que
aparecem traços semelhantes em outras paralisações dos metalúrgicos de São Paulo,
diferenciado-se, neste ponto, dos modos de atuação adotados no ABC.
Como mencionado no depoimento de Anísio Batista, as greves de maio de junho
se formaram dentro das fábricas, sem a intervenção de piquetes e, em São Paulo, sem a
4 “Na Toshiba, 600 continuam parados”. Folha de S. Paulo, 29 de maio de 1978, p. 26. 5 Acervo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas). Pasta Histórico OSM/CPV – Acervo
digital para consulta/campanhas salariais-greves 1978. 6“Depoimento de Anísio Leite para Márcia sobre a greve na Toshiba”. Centro de Memória Sindical. Pasta
Ca01 Metalúrgicos de São Paulo.
4
intervenção ativa do Sindicato. Exigiam e pressupunham, portanto, grupos ou comissões
de fábrica.
Isto aparece claramente no depoimento de Anísio:
O pessoal mais velho se organizou numa comissão de onze pessoas, representantes de
cinco seções entre as quais se encontravam as três mais importantes por congregarem
maior número de operários: a usinagem, a estamparia e o rolamento de motor.7
O testemunho faz menção a outras comissões, ou à dilatação e recomposição da
mesma, logo no primeiro dia do movimento. Com as máquinas paradas, Anísio foi
convocado pelo Departamento de Pessoal. Alegou que era novo de casa, “não sabia de
nada” e que deveriam chamar um grupo de representantes para negociar. Formou-se,
então, uma comissão com trinta membros. Como não cabiam todos no escritório,
resolveram reunir-se no refeitório, aonde se juntaram cerca de duzentos trabalhadores.
Representando a empresa estavam um advogado, um engenheiro e o gerente de
produção. “O advogado começou logo falando que a greve era ilegal. Mas o pessoal
começou então a levantar os problemas da fábrica e não parou mais. O advogado ficou
irritado, disse que não dava para discutir com tanta gente e foi embora”.8 Elegeu-se,
então, uma comissão com 18 integrantes, para negociar e redigir as reivindicações.
Como já comentado, o processo na Toshiba deu-se sem a intervenção direta do
Sindicato dos Metalúrgicos. Quando o Delegado Regional do Trabalho, Vinicius Ferraz
Torres, convocou uma mesa redonda entre representantes da empresa, do sindicato e dos
trabalhadores, frustrou-se com a ausência dos últimos. Joaquim dos Santos Andrade,
presidente da entidade de classe, negou-se, então, a discutir o aumento salarial “sem a
presença dos empregados da empresa”. Esclareceu à reportagem da Folha de S. Paulo
que “o sindicato não foi solicitado pelos trabalhadores para realizar a intermediação
com a direção da empresa”.9 Finalmente, a 2 de junho, após negociações diretas entre
patrões e empregados, um acordo foi fechado e as máquinas voltaram a funcionar e só
então a entidade foi chamada para homologar a avença na DRT. Ainda segundo a
reportagem da Folha: “O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Joaquim dos Santos
Andrade, nem mesmo sabia ontem, até o final da tarde, que a empresa já havia firmado
o acordo e que os operários tinham retornado ao trabalho”.10
Podemos agora sumariar alguns traços da greve da Toshiba, que, como veremos,
marcaram também o início do ciclo na categoria dos metalúrgicos de São Paulo nos
meses de maio e junho de 1978.
7 Idem. 8 Idem. 9 “Greve na Toshiba ainda sem solução”. Folha de S. Paulo, 1 de junho de 1978, p. 19. 10 “Toshiba aceita 15%; trabalho é reiniciado”. Folha de S. Paulo, 3 de junho de 1978, p. 15.
5
1. Tem início pouco depois das greves em São Bernardo e Santo André. Para se
compreender a lógica do ciclo (que não se expande sozinho, nem por
contágio) é importante considerar que no ABC reuniram-se pioneiramente e
com mais intensidade forças para uma luta que adquiriu um sentido de
“universalidade”. Outros setores da mesma classe entenderam que o teste do
ABC abrira possibilidades. Também é importante considerar que, após
quinze dias de noticiário e troca de experiências diretas sobre como se
fizeram as greves na Scania, Ford, Mercedes, Volkswagen, a tática dos
“braços cruzados e máquinas paradas” e da ação e negociação direta com os
patrões foi aprendida e incorporada pelas comissões de metalúrgicos de São
Paulo.
2. A reivindicação salarial de 20% de reajuste desprendeu-se de seu “referente”
socioeconômico imediato (“corporativo”, por assim dizer) para adquirir a
conotação de luta por Justiça após catorze anos de sofrimento (“arrocho”).11
3. A pauta de reivindicações articulou um conjunto de demandas que, no ciclo
de greves como um todo, também se desprenderá de seu “referente
corporativo” para transformar-se no eixo social e democrático da classe
trabalhadora na “abertura”. São questões concernentes a “condições de
trabalho” e “de vida”, como alimentação, convênio médico, segurança e
higiene e às liberdades democráticas da perspectiva dos interesses dos
trabalhadores – direito de greve, de organização no local de trabalho, contra
as represálias patronais. Estas conquistas implicavam na desmontagem do
regime de vigilância e controle militarizados e superexploração da força de
trabalho implementado pelo empresariado durante a ditadura.12
4. A forma organizativa das greves de maio e junho foi a comissão de fábrica,
responsável pela elaboração da estratégia de lutas, pelas negociações, pela
redação e divulgação da pauta de reivindicações. A composição e as
atribuições da comissão foram se alterando antes e depois do movimento,
sem formalidades. O vínculo básico parece ter sido o da consciência de
classe e confiança mútua de um grupo de trabalhadores reunidos por uma
liderança e dispostos a lutar. O sindicato, embora não fosse chamado a
envolver-se diretamente, foi uma referência institucional, seja quando
convocou uma assembleia para deliberar sobre o percentual de antecipação
salarial, seja na homologação do acordo.
11 Adapto aqui livremente ideia desenvolvida por Ernesto Laclau em A razão populista. São Paulo: Três
Estrelas, 2013. 12 Apresentei a interpretação do “novo regime fabril” no artigo “Um novo regime fabril: vigilância e
controle militarizados e superexploração da força de trabalho” In: IIEP/Conselho do Projeto memória da
OSM-SP. Investigação operária - Empresários, militares e pelegos contra os trabalhadores. São Paulo,
2014, p. 65
6
5. A abertura de um canal de negociações direta com os patrões, empresa por
empresa, pegando de surpresa a FIESP e o governo foi característico das
greves naquele momento inicial.
Abrindo o foco da Toshiba para a categoria metalúrgica de São Paulo,
constatamos que, na avaliação da Oposição Sindical Metalúrgica, cerca de 120 mil
metalúrgicos, de um total de 135 a 200 fábricas, cruzaram os braços em maio e junho.13
Sobre essas greves, o jornal O Metalúrgico, veículo do Sindicato, informa números
diferentes: teriam sido realizadas 75 paralisações, envolvendo, por exemplo, empresas
do porte da Aliperti, da Siemens, Metal-Leve e Arno. É ressaltada a novidade: “Chegou
1978 e começamos um novo tipo de luta. Parávamos de braços cruzados, perante as
máquinas desligadas (...) Em algumas empresas, o trabalhador conseguiu reajuste de
salário a cada dois meses (...) em novembro de 1978, um acordo obrigava as empresas a
reajustar os salário em maio de 1979”.14
Está claro, portanto, que o ciclo iniciado no ABC estendeu-se em seguida a São
Paulo, envolvendo um grande número de fábricas. Algumas especificidades da “vertente
paulistana” do ciclo, nesses seus primórdios, podem ser entrevistas pela documentação e
depoimentos: a tática de entrar nas fábricas, se possível “bater o ponto”, e manter-se
diante das máquinas paradas; as negociações diretas entre patrões e empregados,
mediadas pelas comissões de fábrica e pela direção do sindicato; a “ocupação” das
fábricas, com realização de assembleias nos refeitórios e a organização de comissões
como recurso indispensável; a articulação, na organização do movimento, de sujeitos
com relações com a categoria e objetivos estratégicos díspares: direção sindical,
lideranças locais mais ou menos ligadas à Oposição Metalúrgica e a própria Oposição
como movimento.
Os balanços apresentados pela Oposição Sindical Metalúrgica permitem elaborar
uma compreensão mais apurada da dinâmica do movimento de maio e junho e também
conhecer os debates e interpretações formulados no calor dos acontecimentos por um
dos principais atores do ciclo.
Na tentativa de captar os “elementos de propagação” do “ciclo de greves de
maio-novembro de 1978”, a Oposição faz menção a ideia de um “renascimento do
movimento operário no Brasil”, portanto de uma restauração de algo que fora
13 Para o número de 120 mil grevistas de 200 fábricas conferir o panfleto “Metalúrgicos, nossa luta
continua”. Já a informação de 117 mil grevistas em 135 fábricas aparece no “Manuel do Sindicalista”,
produzido pela Oposição. Acervo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas). Pasta Histórico
OSM/CPV – Acervo digital para consulta/campanhas salariais-greves 1978. 14 O Metalúrgico n. 227, abril 1980. Acervo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas). Pasta
Histórico OSM/CPV – Acervo digital para consulta/campanhas salariais-greves 1978.
7
interrompido e perdido. Tem-se a ideia de uma volta, reencontro ou religação com uma
legítima tradição do passado. A explicação para a irradiação nessa primeira fase
encontra-se na imagem de um “contágio local”, com “expansão geográfica a partir das
maiores fábricas de cada região”.15 Não se tratou, ao contrário do que se poderia supor,
de um movimento espontâneo, embora, para os membros da Oposição, “a propagação
do mesmo possa ser chamada de ‘natural’”, pois “as fábricas que deram os exemplos
iniciais, ou que vieram renovar o ‘fôlego’ do movimento, contavam com trabalho de
grupos internos, que preparavam a greve já há algum tempo...”. O documento apresenta
informação ainda mais específica: “Das primeiras dez fábricas que entraram em greve
em São Paulo, oito delas tinham trabalho da Oposição Sindical; das primeiras trinta
fábricas, a metade possuía militantes da Oposição Sindical trabalhando nelas (...)”.
A Oposição fortaleceu sua concepção de movimento sindical vigorosamente
enraizado nos locais de trabalho nessas greves. Avaliou que as conquistas salariais
obtidas em São Paulo, em comparação com o ABC, teriam sido maiores: “Nas greves
de São Paulo, negociadas pelas Comissões de Fábrica, os resultados organizativos e
mesmo econômicos foram maiores. O aumento médio foi de 12,5%, enquanto no ABC
a média foi de 11%. Como as ‘antecipações’ foram de 13% no ABC e de 10% em São
Paulo, a diferença econômica foi pequena, mas o saldo político foi maior em São Paulo
(...)”. Mesmo assim, a Oposição reconheceria que o funcionamento das comissões fora
intermitente: “As comissões de fábrica eleitas durante as greves não tiveram
continuidade, salvo exceções, depois de encerrados os movimentos (...) Na maioria dos
casos as comissões funcionaram como comandos de greve nas fábricas portanto de
existência temporária”. Sua força não estava na existência contínua, na
institucionalidade, mas em sua função organizativa e expressiva dos anseios e
tendências do movimento de trabalhadores no chão da fábrica, no local de produção.
Sua força estava na plasticidade e proximidade com o cotidiano de exploração e
resistência nos locais de trabalho.
Por isso, pode-se cogitar que a dinâmica do ciclo de greves em São Paulo tenha
apresentado uma articulação mais complicada do que no ABC. Em São Paulo
encontrava-se uma categoria relativamente dispersa em pequenas, médias e grandes
indústrias espalhadas por um grande território, mais difícil, portanto de organizar e
manter organizada. Por isto, o papel do Sindicato, como instituição reconhecida pelo
patronato e pelo Estado, tinha peso fundamental na formação da própria categoria como
classe e como sujeito coletivo. O Sindicato sofrera intervenção em abril de 1964 e a
equipe de interventores, homens de confiança da ditadura civil/militar, se mantinham à
15 Todas as citações a seguir foram extraídas do documento Boletim da Oposição Sindical Metalúrgica.
Acervo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas). Pasta Histórico OSM/CPV – Acervo
digital para consulta/campanhas salariais-greves 1978.
8
frente da entidade em 1978, quando, aliás, houve uma segunda intervenção, com o
reconhecimento do resultado de eleições de junho que haviam sido anuladas por
fraude.16 O empenho de sua diretoria na organização de greves, de comissões de fábrica,
no confronto com a patronal para a conquista das reivindicações, na mobilização da
categoria, mostrou-se sempre moderado e ambíguo. A Oposição Sindical conduziu o
movimento nas grandes fábricas, desempenhou algumas funções que no ABC foram
exercidas pela direção sindical, mas nas greves gerais de 1978 e 1979 revelaram-se os
limites de suas possibilidades de ação.
Essa “articulação complicada” do movimento se manifesta na experiência e na
percepção dos próprios sujeitos individuais, como se pode perceber no depoimento de
um(a) grevista da Philco não identificado(a), registrado no acervo do Centro de
Memória Sindical. No terceiro dia de greve, as negociações vinham sendo
encaminhadas na DRT com a presença de uma gigantesca comissão formada por
noventa operários (que, em votação, opuseram-se por unanimidade à redução de seus
membros para quinze, proposta pelo delegado Vinícius Ferraz Torres), do delegado, do
advogado da Philco e do presidente e vice do Sindicato. A direção da empresa propôs,
então, que o sindicato saísse da negociação. Um dos membros da comissão concordou,
mas, após votação, a proposta foi rejeitada. Segundo o(a) depoente:
Os companheiros não querem que o sindicato saia, porque isso dá uma base legal para a
gente, percebe? Ajuda a sustentar a nossa greve, etc. e tal e porque é um troço que tá
ligado ao governo e a gente tem um respaldo legal caso aconteça alguma coisa na firma,
a gente pode se reunir no sindicato, etc. e tal, se não eles também vão fechar as portas
para a gente.17
A Assembleia Geral, realizada em 14 de abril de 1978, quando deliberou-se por
uma campanha pela antecipação salarial de 21% a partir de 1º de maio, é mencionada
tanto no depoimento de Anísio Batista quando em boletim da Oposição sindical como
uma referência para o convencimento e a organização da luta. Pode-se cogitar também
que a linguagem empregada por Joaquim dos Santos Andrade, favorável às greves do
ABC, tenha contribuído para a criação de uma atmosfera propícia à greve em uma parte
da categoria mais próxima às posições do sindicato. No dia 18 de maio, data do
julgamento do dissídio dos metalúrgicos do ABC pelo Tribunal Regional do Trabalho,
Joaquim declarava à Folha de S. Paulo que “se houver paralisação em qualquer fábrica
em São Paulo sua atitude será a mesma dos dirigentes de São Bernardo, apoiando o
16 O episódio é relatado no capítulo “O sindicato, a oposição e as eleições”. In: IIEP/Conselho do Projeto
memória da OSM-SP. Investigação operária - Empresários, militares e pelegos contra os trabalhadores.
São Paulo, 2014, p. 73 e também no documentário “Braços Cruzados, Máquinas Paradas” (São Paulo,
1979). Direção: Sérgio Toledo Segall e Roberto Gervitz, 1979. 17 Depoimentos, Pasta 43. Entrevista: Philco. Matéria: greve. Papel timbrado da Folha de S. Paulo. s/d.
Centro de Memória Sindical. Caixa Ca01K- Metal SP.
9
movimento. ‘Ninguém aguenta mais a situação salarial’, justifica”.18 Alguns dias
depois, a 23 de maio, declarada ilegal a greve do ABC, o Presidente dos Metalúrgicos
de São Paulo opinava que “o problema não é a lei, o problema é a fome; o problema não
são os direitos e deveres, o problema são os catorze anos de arrocho salarial”. Ao ser
indagado se a greve poderia chegar a São Paulo, disse: “Acho que pode porque os
problemas dos metalúrgicos de São Paulo são os mesmos do ABCD”. E finalizou: “O
Lula é meu amigo, tenho mantido contato com ele, mas não tenho nada a ensinar ao
Lula. Tenho hipotecado a minha solidariedade ao Lula. Os metalúrgicos de São Paulo
estão solidários aos metalúrgicos do ABCD”.19
Com data-base em 17 de novembro, a campanha salarial dos metalúrgicos, em
pleno momento expansivo do ciclo inicial das greves, não podia deixar de ser vibrante,
mobilizadora e criativa. Foi conduzida conjuntamente pelos sindicatos de São Paulo,
Osasco e Guarulhos, por terem a mesma data-base; aproveitou a recente experiência das
greves de maio e junho e consolidou as organizações de fábrica, articulando-as por
regiões; concentrou, depois de catorze anos de dispersão e resistência molecular, a
categoria em grandes assembleias de vinte e trinta mil operários na rua do Carmo,
culminou com uma greve geral com duração de três dia.
A primeira assembleia geral da campanha foi realizada em 6 de outubro, a partir
das 19 horas, na sede do Sindicato, rua do Carmo 171. A avaliação do número de
presentes varia conforme a fonte: segundo o Sindicato, eram 6 mil,20segundo o Jornal
da Greve, organizado pela Oposição com recortes de jornais sem identificação, teriam
sido 5 mil,21 de acordo com a Folha de S. Paulo, estariam presentes 2 mil
metalúrgicos.22Não era ainda uma assembleia massiva, mas disparou um processo de
mobilização e, cerca de quinze dias depois, em plena greve, mais de trinta mil
metalúrgicos compareceriam a uma assembleia decisiva. A dispersão da categoria
certamente dificultava que a base dos metalúrgicos de São Paulo se manifestasse tão
massivamente quanto a do ABC. Esta comparação é conhecida, mas cabe lembrar
novamente que, de acordo com o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São
Paulo, em 1978 a categoria reunia cerca de 250 mil trabalhadores, dos quais 66 mil
estavam filiados à entidade. Estudo do Departamento Intersindical de Estatísticas e
18 “TRT julga hoje dissídio dos metalúrgicos”. Folha de S. Paulo, 18 de maio de 1978, p. 22. 19 “Problema não é a lei, mas fome e arrocho”. Folha de S. Paulo, 23 de maio de 1978, p. 20. 20 “Reunião de Bairros-Campanha Salarial de 1978”[Panfleto com timbre do Sindicato dos Metalúrgicos
de São Paulo]. Acervo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas). Pasta Histórico OSM/CPV
– Acervo digital para consulta/campanhas salariais-greves 1978. 21 “Jornal da Greve” Acervo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas). Pasta Histórico
OSM/CPV – Acervo digital para consulta/campanhas salariais-greves 1978. 22 “Assembleia metalúrgica decide por ‘70% ou greve’”. Folha de S. Paulo, 7/10/78. Centro de Memória
Sindical, Caixa Ca01 K – Metal SP – Recortes de jornais 77-89 – Saúde do Trabalhador – Pasta Ca01
Metalúrgicos de SP – Recortes de Jornais 1977-1981.b
10
Estudos Socioeconômicos (DIEESE), realizado oito anos depois, registra uma categoria
de 359.377 trabalhadores, chamando a atenção para o fato de que 63,44% das empresas
contavam com 10 ou menos operários e apenas 0,30% delas com mais de mil
trabalhadores. Não temos estudos sobre a quantidade de operários por empresas, mas
nas grandes, como a Philco, trabalhavam cerca de 8 mil metalúrgicos. O operariado
estava distribuído nos vários setores da metalurgia: 41,9% no setor mecânico; 25,4% no
de material elétrico; 17,6% no setor de material de transporte; 8,7% na metalurgia e
6,4% em “diversos”.23Tratava-se de uma estrutura industrial muito diferente da
encontrada em São Bernardo do Campo, que, apenas na Volkswagen (38 mil),
Mercedes (19.500) e Ford (11 mil), todas montadoras, concentrava 68.500
trabalhadores.
A segunda assembleia da campanha salarial ocorreu no dia 20 de outubro, reuniu
8 mil operários e aprovou uma pauta de 23 reivindicações, com destaque para o índice
de aumento salarial de 70%, a escala móvel de salários com reajuste trimestrais e
estabilidade para as comissões de fábrica. A Oposição apostava em seu recurso mais
valioso, a inserção nas fábricas, a força do levante operário, por isto propôs e aprovou
em assembleia a formação de uma comissão de salários aberta, que acolheu quase uma
centena de participantes. Foram também alugados pelo sindicato seis salões espalhados
pelos bairros para a realização de reuniões que chegavam a contar com a presença de
400 trabalhadores.24 O Sindicato convocava os metalúrgicos para estas reuniões com
um panfleto padrão, modificando apenas o nome da empresa à qual se dirigia:
Reunião de Bairros – Campanha Salarial de 1978
(...) A Assembleia Geral da categoria realizada na semana passada, que contou com a
presença de mais de 6.000 trabalhadores aprovou o percentual de aumento de 70% (...)
Vamos conhecer e discutir todo o elenco de reivindicações e como conquistá-lo. Unidos
e organizados conquistaremos melhores salários.
REUNIÃO DE BAIRROS
Convocamos os companheiros desta empresa para a reunião que será realizada no dia 12
de outubro (quinta-feira) às 18h30 no Salão Arco Íris, na Avenida Interlagos 1606
(esquina com a Av. N.Sra. do Sabará).25
23 “Sub-seção do DIEESE no Sindicato dos Metalúrgicos de S. Paulo”. entro de Memória Sindical. Caixa
01 J – Metal SP - Greves décadas de 1970-1980 – Comissões de Fábrica 1978-1983” 24 “Jornal da Greve” Acervo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas). Pasta Histórico
OSM/CPV – Acervo digital para consulta/campanhas salariais-greves 1978. 25 [Panfleto Sindicato dos metalúrgicos de S. Paulo]. Acervo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e
Pesquisas). Pasta Histórico OSM/CPV – Acervo digital para consulta/campanhas salariais-greves 1978.
11
Nesta assembleia, a Diretoria do Sindicato e a Comissão de Salários informaram
que, em reunião de negociações no dia anterior, a pauta fora rejeitada em sua maioria
pelos patrões: ao invés de 70% de reajuste, eram oferecidos 50%; no lugar do piso
salarial de Cr$ 4.680,00, a oferta de Cr$ 2.169,00. Nada de reajuste trimestral e nem de
estabilidade para as comissões de fábrica.26 A assembleia de 27 de outubro, uma sexta-
feira, era, então, decisiva. O Boletim sindical de convocatória já estabelecia um
indicativo de greve, orientava os trabalhadores a se organizarem e procurava afirmar a
exclusiva legitimidade da diretoria do Sindicato e da comissão de salários como
representantes da categoria:
A intransigência dos patrões mais uma vez ficou provada pois nossas reivindicações
foram rejeitadas em sua maioria.
Está marcada nova reunião com os empregadores e se não formos atendidos em nosso
pedido até a realização desta assembleia, será marcado o dia e a hora da deflagração
da greve.
Os companheiros de Guarulhos e Osasco estão firmes com a mesma disposição.
Alerta companheiros integrantes das comissões de empresa: não negociem, não
discutam e não façam acordos separados, pois a luta é de toda a categoria, conforme
decisão da assembleia anterior.
(...)
Não aceitem orientação de pessoas ou grupos estranhos aos sindicatos, pois os
comandos da campanha estão concentrados na diretoria dos três sindicatos,
assessorados pelas respectivas comissões de salários.27
A assembleia do dia 27 foi massiva, presentes cerca de vinte mil metalúrgicos e
deliberou pela greve a partir da segunda-feira, 30 de outubro. A tática de entrar nas
fábricas, bater os cartões e permanecer parados foi aprovada. Na segunda-feira, cerca de
250 mil metalúrgicos de São Paulo, Osasco e Guarulhos pararam. A FIESP, pega de
surpresa em maio, agora se mostrava ativa, orientando o empresariado a não fazer
acordos diretos, a aplicar suspensão disciplinar, a suspender as refeições, vales,
conduções e outras vantagens aos grevistas, e, em caso de greve geral, fechar os portões
da fábrica.28 Muitos empresários seguiram à risca as recomendações: a FORD, a
Forjaço, a Cobrasma, a Induslet, por exemplo, suspenderam os grevistas por dois dias.29
26 “Equipe de metalúrgicos de S. Paulo”. Acervo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas).
Pasta Histórico OSM/CPV – Acervo digital para consulta/campanhas salariais-greves 1978. 27 “Boletim do Sindicato dos Metalúrgicos”. Acervo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e
Pesquisas). Pasta Histórico OSM/CPV – Acervo digital para consulta/campanhas salariais-greves 1978. 28 “Jornal da Greve” 29 Idem
12
O dia 31 de outubro, terça-feira, segundo dia da greve geral, foi decisivo.
Compareceram 30 mil metalúrgicos a uma assembleia realizada na rua do Carmo. A
proposta patronal oferecia três percentuais de reajustes escalonados por faixas salariais
(58%, 54% e 50%), com desconto dos percentuais conquistados nas greves de maio e
junho; piso de Cr$ 2.520,00; compensação das horas paradas no prazo de 60 dias e
acordo de não realização de greves por um ano.30Para a aprovação do acordo e o
encerramento da greve parece ter sido decisiva uma manobra da direção do Sindicato.
Alegando haver elementos estranhos à categoria infiltrados na assembleia, a Diretoria
recusou-se a deliberar por aclamação pela aprovação ou rejeição da proposta patronal e
continuidade da greve, transferindo esta decisão para outra assembleia a ser realizada no
dia seguinte, em recinto fechado, por meio de votação secreta e com a presença apenas
dos sindicalizados. Na assembleia do dia 1 de novembro, com o comparecimento de
cerca de 6 mil metalúrgicos, a convenção coletiva foi aprovada e a greve encerrada.
A Oposição denunciou o que considerou uma traição da direção do Sindicato e
resolveu dar um passo ousado: propôs a retomada da greve a partir do dia 6 de
novembro por 70% de aumento linear, sem desconto das antecipações conquistadas em
maio e junho, com pagamento das horas paradas durante a greve, piso salarial de Cr$
4.680.00, reajustes trimestrais e reconhecimento das comissões de fábrica com
estabilidade para seus membros e abaixo assinado pela destituição da Diretoria do
Sindicato.31Aparentemente, os trabalhadores de algumas fábricas como Caterpillar,
Borroughs, APIS e Fundição Brasil aderiram à greve do dia 6 de novembro, mas faltava
à oposição força para substituir o Sindicato nesta função.
Na condução da greve geral evidencia-se novamente a articulação complicada da
categoria. Por um lado, a Diretoria do Sindicato assumiu as pautas e bandeiras
defendidas pela Oposição. Neste sentido, em reunião realizada em 30 de novembro de
1978 pelo “Setor Mooca da Oposição Metalúrgica”, após debater a questão “O que a
Diretoria do Sindicato queria com a proposta de mobilização e de greve geral esse
ano?”, concluiu-se: “A Diretoria precisava apagar sua imagem suja das eleições
sindicais. Quis ganhar nome de ser de briga”; “A Diretoria assumiu todas as bandeiras
da Oposição. Era o jeito de reconquistar a confiança da massa”; “Depois que a massa
assumiu a brincadeira dos pelegos aí a Diretoria do Sindicato sentou e bolou junto com
a DRT, FIESP, SNI, CIA todo um plano geral para furar a greve e com isso reafirmar
30 [Convenção coletiva. Papel timbrado do Sindicato] e “Nota à imprensa – Metalúrgicos grevistas do
Setor Sudeste”. Acervo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas). Pasta Histórico OSM/CPV
– Acervo digital para consulta/campanhas salariais-greves 1978. 31 “Nota à imprensa – Metalúrgicos grevistas do Setor Sudeste”. Acervo IIEP (Intercâmbio, Informações,
Estudos e Pesquisas). Pasta Histórico OSM/CPV – Acervo digital para consulta/campanhas salariais-
greves 1978.
13
um saco de ideias reacionárias no meio da massa”.32 Por outro lado, A Oposição
reconhecia não ter força para dirigir a greve sem o Sindicato, como fica evidente no
Relatório da primeira discussão de avaliação da campanha salarial:
A maior parte da categoria aderiu à greve porque a ordem vinha do sindicato. Isto
mostra o potencial de força que é o nosso sindicato. A greve pode ser chamada de greve
paternalista. O sindicato era o grande pai. A Oposição sindical não tinha organização
suficiente nas fábricas para sustentar a greve além do sindicato. A Oposição Sindical
não conseguiu ser direção da greve.33
Como conclusão, cabe talvez nos dedicarmos novamente à análise de uma das
dimensões mais importantes para a atualidade do ciclo de greves iniciado em 1978: seu
papel na transição para o regime constitucional democrático vigente. Levaremos a cabo
esta análise atendo-nos ao que foi apresentado até aqui: as greves de maio/junho de
outubro de 1978.
É pertinente considerar, como argumenta Noronha, que as análises mais
conhecidas tendem a subestimar, em ciclos de greve oriundos de processos de transição
política de ditaduras para democracias, a influência dos conflitos políticos e agendas
próprias desses contextos. O autor argumenta que
A excepcionalidade do caso brasileiro quanto ao volume de conflitos entre meados de
1980 e início dos 1990 resulta, em primeiro lugar, da própria existência de um processo
de transição política para a democracia. Tal processo implicou mobilização da opinião
pública e incentivos à ação coletiva.34
O que talvez mereça mais debate e precisão seja a ideia de que o ciclo de greves
brasileiro representou, no processo de transição, uma “(...) forte demanda de inclusão
social (e não só política), numa economia moderna, herdeira do modelo
desenvolvimentista, então em crise (...)”,35 descartando-se, assim, as conotações
disruptivas, antissistêmicas do movimento. Em síntese, pode-se dizer que as greves
foram beneficiadas por um processo de distensão que tornava impraticável uma
repressão como a desferida sobre Osasco em 1968 e, menos, um novo fechamento com
algo equivalente ao AI-5. Por sua vez, o movimento operário alterou os termos e
relações do encaminhamento da abertura, pondo em questão, a um só tempo, a
legislação repressiva, os limites da legalidade, o papel do empresariado no processo de
32 “Setor Mooca da Oposição Metalúrgica – 30/11/78 – Campanha Salarial de 1978”. Acervo IIEP
(Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas). Pasta Histórico OSM/CPV – Acervo digital para
consulta/campanhas salariais-greves 1978. 33 Acervo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas). Pasta Histórico OSM/CPV – Acervo
digital para consulta/campanhas salariais-greves 1978. 34 NORONHA, Eduardo G. “Ciclo de greves, transição política e estabilização: Brasil, 1978-2007”. Lua
Nova, São Paulo, 76, 2009, p. 159. 35 Idem, p.162
14
abertura e os sujeitos políticos reconhecidos como legítimos. A natureza do modelo
econômico e os limites da legitimidade política foram postos em questão de baixo para
cima por um sujeito coletivo, o movimento proletário e popular, não para se chegar a
um regime de maior inclusão, mas para abrir terreno para o novo, que foi sendo
delimitado e instituído por uma série de lutas por um longo período. Este sujeito
coletivo era portador de um “princípio de universalidade” tão legítimo quanto aquele
que predominou na transição política, resultando na instauração de uma democracia
liberal e de um modelo econômico mais “moderno”. Por sua vez, a própria agenda
burguesa da transição democrática foi também capturando e estabelecendo algumas
balizas para a ação política e sindical dos sujeitos. Vejamos como, a nosso ver, se deu
esse processo.
Como já vimos, foi frequente no discurso do movimento operário naquele
momento, a postulação da condição de vanguarda de um renascimento de um
movimento interrompido em 1964. Eis aqui outro exemplo desta argumentação:
“Metalúrgico, sindicalize-se! Nos últimos anos a classe operária tem tomado conta dos
noticiários de rádios, jornais e televisão. Nossa luta acordou o Brasil. Muitos sindicatos
que até alguns anos atrás só serviam para oferecer médico e festinhas começam a voltar
a ser órgãos de luta da nossa classe”.36 Em uma cartilha preparatória da campanha
salarial de 1979, elaborada pela Oposição Sindical, a postulação da classe trabalhadora
como “nação”, desde as greves de maio de 1978, é apresentada com muita clareza:
É preciso lembrar que o movimento que nasceu em São Paulo em maio do ano passado
continua crescendo e se ampliando.
Todo o mundo seguiu o nosso exemplo: construção civil, motoristas, professores,
bancários, médicos, funcionários públicos e muitas outras categorias se mobilizaram em
busca de melhores condições de vida e de trabalho.
(...)
A luta uniu não só os metalúrgicos, mas todo o povo brasileiro, em defesa do legítimo
direito da classe trabalhadora: o direito de greve e a liberdade sindical.
E hoje o movimento se espalha por todo o Brasil: Minas, Rio, Bahia, Rio Grande do
Sul, Brasília. Em todas as grandes cidades industriais cresceu a união e a luta da classe
trabalhadora.37
No decorrer da greve de 1979, a articulação operária e popular, fábrica-bairro, se
fortaleceu e a pauta de reivindicações incluiu mais abertamente do que em 1978
36 “Metalúrgico, sindicalize-se”. Pasta Histórico OSM/CPV – Acervo digital para consulta/campanhas
salariais-greves 1978. 37 Cartilha da Oposição Sindical Metalúrgica. Acervo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e
Pesquisas). Pasta Histórico OSM/CPV – Acervo digital para consulta/campanhas salariais-greves 1978.
15
reivindicações por creche, ônibus, moradia, além de salários, representando, portanto,
um potencial de articulação política mais “universal”.
Em alguns panfletos da Oposição, certamente veiculando o discurso de uma
vanguarda de esquerda, mas talvez não inteiramente estranho à percepção e
compreensão da classe, vincula-se explicitamente o governo da ditadura aos patrões: “O
governo dos patrões só se preocupa em controlar o aumento do salário dos trabalhadores
e faz vistas grossas ao aumento dos preços e do lucro dos patrões”.38 Nesta perspectiva,
o nó a ser desatado não era o da ditadura e do arrocho, mas de todo um regime de defesa
de interesses de classe.
O sujeito coletivo operário/popular/democrático reunido na greve de 1978 pode
ser localizado no ato público realizado no salão paroquial Santo Antônio, em Osasco,
durante a greve de outubro de 1978, em solidariedade ao movimento. De acordo com a
reportagem publicada no “Jornal da Greve”, compareceram “representantes da Igreja
Católica, da Oposição Sindical dos metalúrgicos de Osasco e de São Paulo, da Pastoral
dos Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, Convergência Socialista, DCE
Livre da USP, Sindicato dos Operários da Construção Civil, Comitê Brasileiro pela
Anistia e Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco”. Além da defesa do
direito de greve, os oradores pediram anistia, liberdades democráticas e sindicais,
readmissão dos operários afastados por motivos políticos ou sindicais. Denunciaram
prisões de vários membros do Movimento Custo de Vida na região de Osasco quando
distribuíam convites no bairro do Novo Osasco.39
Os contornos políticos e institucionais da transição democrática foram sendo
definidos na luta, no confronto e na negociação. Enquanto o empresariado e os setores
“aberturistas” do governo reconheciam a legitimidade das greves visando afrouxar os
constrangimentos da legislação à liberdade de negociação e ação do empresariado ou
então ampliar e fortalecer o quadro institucional da abertura, a aposta do movimento
operário e popular era na possibilidade de romper estes limites.
A primeira dimensão aparece nas declarações feitas aos jornais três dias após a
greve da Scania, por Mario Granero, presidente da Anfavea, avaliando que as
paralisações “não comprometem as aberturas democráticas” e que “dentro da ordem e
da lei o diálogo fortalece as instituições”.40Por sua vez o coronel Rubem Ludwig, porta
voz oficial do governo, pontificava pouco depois dizendo que a greve era “sinal dos
38 “Comunicado à categoria”. Acervo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas). Pasta
Histórico OSM/CPV – Acervo digital para consulta/campanhas salariais-greves 1978. 39 “Jornal da Greve”. Acervo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas). Pasta Histórico
OSM/CPV – Acervo digital para consulta/campanhas salariais-greves 1978. 40 “Ford pára: reunião geral hoje na Scania”. Folha de São Paulo, 16/5/78, p. 23.
16
tempos” e que o movimento dos trabalhadores estava previsto na legislação “onde todos
esses direitos são reconhecidos”.41
Na coluna Opinião, do mesmo jornal, no artigo Um lance de dados, assinado por
GMB (possivelmente o intelectual e professor Gildo Marçal Brandão, ligado ao PCB)
registra-se uma avaliação bem mais audaciosa do sentido do movimento iniciado no
ABC. Segundo GMB “(...) duas ordens de acontecimentos que estão se processando no
País, pela sua importância para o futuro político da Nação, prendem imediatamente as
expectativas”, referindo-se à candidatura da oposição à presidência da República (que
veio a definir-se pelo nome do general Euler Bentes Monteiro) e às greves do ABC, por
ser o primeiro movimento com tal magnitude na década e por transbordar “os estreitos
espaços institucionais vigentes”. Segue-se critica os temerosos de que tudo
representasse uma “ampla orquestração destinada a favorecer o caos ou obstaculizar as
reformas”, concluindo: “Enfim, os dados estão lançados e o resultado não está dado por
antecipação”.42
O debate tem continuidade poucos dias depois na mesma coluna Opinião, da
Folha de S. Paulo, com a publicação do artigo “O pão e o aço”, assinado por autor(a)
com as iniciais A.D., da sucursal do Rio de Janeiro, que advertia:
“Habeas corpus” sem direito de greve, desenvolvimento sem distribuição imediata dos
seus frutos, progresso para as elites bem comportadas são nuances de autoritarismo,
variações sobre o tema da opressão.
(...)
A aspiração que varre o país de ponta a ponta de participar politicamente não é
subjetiva, vaga e impalpável. As massas querem decidir seus destinos em função das
suas necessidades, da sua fome, da sua desproteção. Reformas sociais justas, equitativas
e duradouras só podem ser corporificadas em regimes democráticos.43
Está claro, assim, que, para alguns argutos analistas da imprensa liberal da
época, o ciclo de greves, desde seus primeiros momentos, articulava-se estreitamente ao
processo da transição, com o mesmo potencial de incidência política que a candidatura
do MDB à sucessão do ditador Ernesto Geisel, introduzindo explicitamente uma pauta
de reformas sociais na agenda da transição política.
Mas a moeda sempre tem dois lados e o projeto de condução da transição dentro
dos limites definidos pelo ímpeto aberturista da ditadura e pelos interesses da oposição
liberal-democrática teve forte repercussão e apoio no movimento operário e na própria
41 “TRT julga hoje dissídio dos metalúrgicos”. Folha de S. Paulo, 18/5/78, p. 22. 42 GMB, “Um lance de dados”. Folha de S. Paulo, 19/5/78, p. 2. 43 A.D. “O pão e o aço”, Folha de S. Paulo, 28/5/78, p. 2.
17
Oposição Sindical Metalúrgica. O dilema pode ser vislumbrado no já citado panfleto, do
Setor Mooca da Oposição Sindical Metalúrgica, em que é divulgado o resumo de cinco
reuniões realizadas entre os dias 9 e 30 de novembro de 1978, com a participação de
operários(as) de onze fábricas. À indagação sobre “o que a Oposição fez, qual seu
comportamento?”, registra-se as respostas: “A Oposição se dividiu em cima da greve. A
Greve Geral é um lance muito grande que exige de tomar posições claras. Houve quem
apostou tudo na greve. Houve quem não quis assumir. Houve quem, na prática, se
colocou contra a Greve Geral e assumiu a proposta dos pelegos. Houve quem pensava
que se a greve continuasse poderia pôr em risco as eleições de 15 de novembro”.44
Crítica semelhante foi apresentada no relatório da primeira discussão de
avaliação da Campanha Salarial, feita pela Oposição:
Entre as eleições de junho [refere-se às eleições para a direção do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Paulo – Nota M.L.] e a campanha salarial, uma parcela da O.S.
(principalmente cartolas) se desviaram do trabalho diretamente operário para dedicar-se
à campanha política das eleições de novembro. Isto fez com que durante as assembleias
da campanha salarial muitos oradores se preocuparam mais em dar o recado político e
deixar em segundo plano a campanha salarial45
Os limites e alcances da transição democrática e a natureza do novo regime que
se definiria com os resultados das lutas sofriam, portanto, forte pressão política com a
entrada em cena dos operários e operárias com suas greves . A ação proletária, por sua
vez, não poderia, como no período “populista”, representar-se politicamente dentro do
estreito sistema bipartidário imposto pelo AI-2 e imediatamente disparou articulações
para a organização de um partido que representasse a classe trabalhadora, atestando,
desta forma, a potência de articulação política e o “princípio de universalidade” contido
nas greves. Em entrevista ao repórter Sergio Sister, da revista VEJA, publicada em 15
de novembro de 1978, duas semanas após o encerramento da greve geral metalúrgica,
Joaquim dos Santos Andrade era apresentado como “(...) um dirigente sindical
conservador, anticomunista, que se prepara para voos mais altos com a criação de um
partido político”. Ao ser indagado se “um partido dos trabalhadores estaria em seus
planos no quadro da abertura política”, respondeu: “(...) está em meus planos a
formação de um partido político, pois sou contra o bipartidarismo”.46 Um ano depois,
44 “Setor Mooca da Oposição Sindical metalúrgica – 30/11/78”. Acervo IIEP (Intercâmbio, Informações,
Estudos e Pesquisas). Pasta Histórico OSM/CPV – Acervo digital para consulta/campanhas salariais-
greves 1978. 45 “Relatório da Primeira discussão de avaliação da campanha salarial”. Acervo IIEP (Intercâmbio,
Informações, Estudos e Pesquisas). Pasta Histórico OSM/CPV – Acervo digital para consulta/campanhas
salariais-greves 1978.
46 SISTER, Sérgio. “Entrevista: Joaquim dos Santos Andrade – ‘Sou da meia-esquerda’”. Revista Veja,
15/11/1978. Pasta Ca01 Metalúrgicos de S.P. – Documentos 1932-1981”. Centro de Memória Sindical.
18
em entrevista ao Jornal da Tarde, ao ser questionado o que iria fazer depois que saísse
do sindicato, Joaquim reiterava:
Bom, eu sou defensor e vou procurar trabalhar e dar tudo o que a gente tiver para dar,
no sentido de ver os trabalhadores com seu próprio partido, com seu próprio barco para
deixar de andar em canoa alheia e pagar pedágio alto e caro. Eu não vejo no MDB
condições de se dizer partido operário.47
Menos de um mês antes desta entrevista, um grupo, certamente de oposição a
Joaquim, distribuía um panfleto na assembleia metalúrgica de 24 de agosto com as
seguintes palavras de ordem: “Todo poder de decisão para as assembleias gerais”, “Pela
criação de um comando de greve representativo nas fábricas”, “Por um sindicato livre e
independente!” e assinava: “Metalúrgico Independente (M.I.) – Grupo de metalúrgicos
que luta por um Partido dos Trabalhadores sem patrões”.48
Para os metalúrgicos de São Paulo, portanto, o ano de 1978 foi vertiginoso.
Pulverizados em cerca de onze mil empresas espalhadas pelos quatro cantos da cidade,
pressionados pelo arrocho salarial e pelo tacão de um regime fabril repressivo e
militarizado, produzindo todos os tipos de artefatos metalúrgicos, começaram a
movimentar-se nos locais de trabalho poucos dias depois do abalo provocado pelas
greves do ABC. A seleção brasileira de futebol acabava de disputar a Copa do Mundo
na Argentina, mas por um momento, a paixão pela luta parece ter ofuscado a paixão
pelo esporte.49 Formaram-se comissões de fábrica, o discurso patronal foi confrontado
pela razão proletária, canais de organização esclerosados foram reativados. Falava-se
em renascimento. Ocupar as fábricas, transformar os refeitórios e pátios em locais de
debate e assembleia, juntar-se a trinta mil companheiros de jornada em uma assembleia
no meio da rua, conquistar melhores salários e condições de trabalho podia ser uma
experiência transformadora, mas o inimigo parecia ter mil cabeças, mil disfarces. Era
preciso juntar-se para entender tudo o que estava acontecendo e poder continuar. Veio a
traição, vieram as demissões, vieram as represálias. Mas alguma coisa havia mudado e
quando os dirigentes começaram a falar em partido políticos e a imprensa a dar às
greves atenção equivalente a conferida às articulações do MDB para a sucessão
presidencial, muitos perceberam que era muito grande o que estava em jogo.
47 FILLAGE, Miguel Ângelo; NASSIF, Luís. “A Oposição me chama de pelego. Pode chamar. Jornal da
Tarde, 29/9/79. Pasta Ca01 Metalúrgicos de S.P. – Documentos 1932-1981”. Centro de Memória
Sindical. 48 Pasta Histórico OSM/CPV – Acervo digital para consulta/campanhas salariais-greves 1978. 49 Reunião promovida pelo Instituto Pedroso Horta, do MDB, em Vitória, Espírito Santo, para discutir
política salarial e liberdade sindical em 17 de maio de 1978, coincidindo com o amistoso entre Brasil e
Tchecoslováquia às vésperas da Copa do Mundo, reuniu público de 800 pessoas, arrancando do deputado
Alceu Collares o comentário satisfeito de que o Futebol não mais afastava as pessoas da política,
merecendo aplausos. “Trabalhadores têm maior consciência”. Folha de S. Paulo, 19/5/78, p 20.
19