Post on 08-Jul-2020
Arenas públicas, jornalismo hiperlocal e mídias locativas 1
Giovani Vieira MIRANDA2
Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho", Bauru-SP
Antonio Francisco MAGNONI3
Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho", Bauru-SP
Resumo
Sugere-se uma discussão sobre as reconfigurações pelas quais passa o campo do jornalismo a partir da
inserção de tecnologias móveis e ubíquas e, mais especificamente, as mídias locativas e suas funções e
serviços geolocalizados no dia-dia dos cidadão. As análises servirão de preâmbulo para a discussão sobre
o novo cenário hiperlocal no qual está inserido o processo de construção do jornalismo com direção para
novos panoramas no meio digital e suas implicações em nível local. Para tanto, também será debatida a
aproximação do jornalismo hiperlocal como arena pública; levando em consideração a ambiência da
inclusividade, não-coerção e reciprocidade que dão potencial para a promoção de um espaço de debate
entre múltiplas vozes da sociedade, sobre os mais diferentes assuntos; considerando um fluxo de
informação que propicie a consolidação das opiniões públicas e o incentivo ao debate público em nível
local.
Palavras chave: Mídias locativas; jornalismo hiperlocal; arena pública; comunicação local
Introdução
Pensar a comunicação é um exercício que demanda a reflexão sobre a complexidade social, sobre
os instrumentos comunicativos, sua história e a ideologia propagada pelas mensagens. A Comunicação
Social pode ser dimensionada em uma intersecção da ideia de formação de opinião e das transformações
sociais pelas quais passaram a sociedade. A mudança estrutural da Esfera Pública discutida inicialmente
por Habermas (1997), fez com que fosse destacado tal ponto, desde a concepção de cidadania nas ágoras
atenienses até as atuais questões de publicização dos fatos, sem deixar de considerar o importante papel
desempenhado pela mídia nesse processo.
1 Trabalho apresentado na XII Conferência Brasileira de Mídia Cidadã - "O direito à comunicação na luta por uma cidadania ativa", realizado
na Universidade Federal de Juiz de Fora, em Juiz de Fora, MG, de 25 a 27 de outubro de 2017. 2 Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Midia e Tecnologia da Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicação (FAAC) da Unesp,
campus de Bauru.. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da FAAC/Unesp. Pesquisador do Laboratório de Estudos em
Comunicação, Tecnologia e Educação Cidadã (Lecotec) da Unesp e do Grupo de Pesquisa GEMS – Games, Educação, Mídia e Sentido,
vinculado à FAAC/Unesp. Email: contato@giovanimiranda.com 3 Professor do curso de Jornalismo e do Programa de Pós Graduação em Mídia e Tecnologia (Mestrado Profissional e Doutorado) da
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Tutor do Programa de Educação
Tutorial (PET) Interdisciplinar em Rádio e TV e Líder do Laboratório de Estudos em Comunicação, Tecnologia e Educação Cidadã (Lecotec)
da Unesp e do Grupo de Pesquisa GEMS – Games, Educação, Mídia e Sentido, vinculado à FAAC/Unesp. Email: afmagnoni@gmail.com
Para Habermas (1997), entre as funções ideais desempenhadas pela mídia em sistemas políticos
considerados constitucionais está o ato de vigiar sobre o ambiente sociopolítico; definir as questões
significativas da agenda política; estabelecer canais/plataformas que possibilitam o processo de defesa das
posições; permitir o diálogo e o debate entre os diversos pontos de vista; a criação de mecanismos para a
prestação pública das contas; incentivar os cidadãos e convidá-los à participação ativa; resistir a todo
processo que vise restringir o aspecto do debate público; e o respeito de todos os envolvidos.
Usualmente, no entanto, o fluxo da informação é constituído por diversos mecanismos que filtram
a informação. Os critérios de noticiabilidade não são os únicos vetores que determinam o conteúdo. Há
aspectos técnicos, éticos, editoriais, ideológicos e políticos (MORAES; RAMONET; SERRANO 2013). A
observação do fato, a negociação entre os grupos que constituem o processo produtivo, a
convergência/divergência com a política editorial do veículo, as cadeias de comando horizontais e
verticais, e os interesses comerciais das empresas transformam a pauta, muitas vezes, em mera referência
burocrática, para a produção do conteúdo. O processo industrial da informação tem afetado as condições
de trabalho dos jornalistas e contribui com a transformação do conteúdo (RIBEIRO, 1994).
Nesse processo, não há uma discussão aberta na Esfera Pública de forma que as deliberações são
apenas repassadas à sociedade, contrariando o ideal republicano democrático de autogoverno dos
cidadãos (VIZEU; ROCHA; MESQUITA, 2010).
O resultado da ausência de discussões abertas e da permanência de meios de comunicação que
restringem o debate público, priva a esfera pública do debate de temas de interesse social. O
procedimento de empacotamento do conteúdo é condicionado por critérios que impõe a submissão de um
tema em relação a outro. O relevo, a proximidade, o impacto da notícia submetem outros tópicos de
interesse, e articulam uma narrativa única das notícias, com a inclusão/exclusão de assuntos de relevância
pública. A discordância desses temas com a realidade factual provoca distorção na informação. Esse
artifício tira da esfera pública de debate teses fundamentais para a compreensão da realidade social, e
reduz a capacidade da cidadania de superá-los (KOVACH; ROSENSTIEL, 2003).
A ideia de um mundo emancipado, como previsto por Habermas (1984), no qual se há a valoração
do debate crítico-racional-reflexivo se esbarra diante do processo de mudança estrutural da Esfera Pública
em um ciclo de produção e consumo, partindo para um processo de simplificação e alienação.
Nesse sentido, como aponta Marcondes (2007), tais mudanças na Esfera pública acabam por
prejudicar o processo de reflexão crítica, sendo a razão substituída pela distração e pelo consumo. “A
extinção da crítica na Esfera Pública contribui para a anulação das capacidades políticas do homem e, em
consequência, para o abuso de poder e a manipulação das massas” (MARCONDES, 2007, s/p). Para
Dourado (2013), as informações passam as ser visualizadas como mercadorias que serão comercializadas
diante de um processo de espetacularização, sem aprofundamento crítico ou maior elaboração dos
processos produtivos, dos acontecimentos que buscam atingir o maior número de pessoas.
As redações adotam políticas de objetividade e imparcialidade que, mesmo impossíveis
de serem atingidas, levam à fragmentação, à superficialidade, ao enxugamento da
interpretação, à despolitização e à visualidade em detrimento do conteúdo. Ao invés de
intermediar a opinião pública, os meios de comunicação desenvolvem técnicas para
moldá-la a seu modo (DOURADO, 2013, p. 3-4).
Por outro lado, na atual estrutura, enquanto se ressalta um espaço público midiático restrito, há um
processo emergente de reconfiguração da Esfera Pública, associada à criação de outras mídias (RAMOS;
SANTOS, 2007). A partir do uso cada vez mais corriqueiro das tecnologias da comunicação e da
informação, emergiu, nas últimas décadas, “uma nova revolução nas relações de poder”, em especial no
campo das comunicações, que “tornou possível as condições materiais de imposição de um mesmo
discurso à escala planetária, com o estabelecimento de um verdadeiro oligopólio mundial das fontes
emissoras de comunicação” (PORTO-GONÇALVES, 2004, p. 16).
O debate público foi ampliado com as possibilidades de comunicação vindas com a ascensão da
internet. Passaram a existir outras formas efetivas de divulgação dos conteúdos críticos e reflexivos que
são de interesse público, com a possibilidade de se fazer uma análise da própria mídia e publicizar uma
visão considerada alternativa. De acordo com Leal (2013), tem início um processo capaz de revalorizar o
espaço público e criar a sensação de maior representação da opinião pública, com um potencial de ativar
novas práticas sociais e políticas que vão fazer força de resistência às antigas possibilidades até então
convencionadas. Com isso, há uma significativa abertura para a participação individual e à cidadania,
ambas com potencial amplificado a partir das novas ferramentas e possibilidades de fluxo de produção e
interação vindos com a internet.
De certa forma, isso promove a reconfiguração do espaço público “diminuindo a crise subjetiva e
intersubjetiva de sentido alimentada pela tendência à alienação e anomia que se verifica na modernidade”
(VIZEU; ROCHA; MESQUITA, 2010) a partir do reconhecimento de que o cidadão tem o direito de
participar do fluxo de construção de sentido e da construção social da realidade, com um aumento, por
consequência, do engajamento cívico.
Em cena a comunicação hiperlocal
O hiperlocal, nesse debate, começou a ser usado para referir-se a cobertura de notícias em nível de
comunidade geralmente esquecidas pela mídia tradicional, sendo, inclusive, trazida para o contexto das
produções online.
O conceito de Hiperlocal está sendo construído através de sítios jornalísticos que
focalizam a sua cobertura noticiosa numa área geográfica bem definida, tratando de
temas de relevância social que possuem estreita relação com os moradores e os
frequentadores daquela área. O conteúdo das notícias hiperlocais está disponível não só
para os usuários na comunidade hiperlocal, mas também para aqueles que estão além
das fronteiras cibernéticas por meio da nova rede digital, com o apoio de agregadores de
conteúdo e de sistemas de recomendação (LIMA JUNIOR, 2011, p. 139)
A comunicação hiperlocal se concentra na cobertura de eventos de uma área geográfica específica:
um bairro, uma cidade ou mesmo um Estado, embora os cidadãos que possam vir a discutir ou relatar o
evento online possa estar fora dessa mesma área geográfica. Apesar do cenário globalizado, Barbosa
(2003) lembra que as informações de caráter local também sempre foram de grande relevância para o
jornalismo. Entretanto, a novidade é que a estrutura das redes no jornalismo digital “permite novas
possibilidades para a geração dos conteúdos locais, ampliando o espaço para a sua veiculação”
(BARBOSA, 2003, p. 1).
Metzgar et al (2010) destacam a comunicação hiperlocal cidadã como aquela que incide sobre
histórias locais em contraponto a narrativas globais; podendo ser produzida a partir das organizações
noticiosas estabelecidas ou por meio daqueles que não estão inseridos em um contexto de produção e de
disseminação do conteúdo.
Operações de mídia Hiperlocal são geograficamente baseadas, voltadas para a
comunidade, organizações nativas e originais em reportar notícias para a web e
pretendem preencher as lacunas percebidas na cobertura de uma questão ou região e
promovem o engajamento cívico (METZGAR et al, 2010, p. 7).
Para López García (2002), a comunicação local interpreta a realidade pela ótica dos valores
compartilhados e tem contribuído para a personificação de um cenário da comunicação atual, onde a
dupla e simultânea tendência do local e do global apresenta novos recursos, cujas referências dos
comunicantes são extraídas das duas esferas, que são complementares durante as ações comunicativas. No
âmbito do jornalismo digital, o local pode ser compreendido a partir da sobrevivência dos antigos
modelos, em conjunto com as apostas e recursos midiáticos mais modernos, o que faz com que a
informação gerada no nível hiperlocal seja de maior qualidade, mais plural e mais participativa, de forma
que “explique o que acontece no âmbito onde está sediado o veículo de comunicação, para quem informa
e que narre o que afeta e interessa os habitantes desse território espacial, inclusive, quando se produz
fora”. (LÓPEZ GARCÍA, 2002, p. 34)
Lemos (2011) aponta a produção de notícias em âmbito digital localizado como uma conjunção
de funções pós-massivas e massivas, onde o usuário pode ter informações mais precisas sobre o seu local
de interesse a partir de um cruzamento de notícias.
A dimensão hiperlocal no jornalismo (já que ele é sempre local) refere-se, em primeiro
lugar, a informações que são oferecidas em função da localização do usuário (sobre o
bairro, a rua, etc), e em segundo lugar, pelas características pós-massivas desse novo
jornalismo onde qualquer um pode ser produtor de informação. Essa é uma das
tendências atuais do jornalismo: vinculação de notícias cruzando diversas fontes,
oficiais, profissionais e cidadãs à geolocalização. (LEMOS, 2011, p.12)
A partir desse entendimento, pode-se observar a aproximação das práticas do jornalismo hiperlocal
com as do jornalismo cidadão, em especial no que ser refere ao envolvimento das comunidades e suas
organizações com relação aos problemas sociais, econômicos e ambientais urbanos que enfrentam e que,
sistematicamente, não são noticiados ou são mal noticiados pelo jornalismo tradicional.
TICs, internet, novas mídias e a Esfera Pública
O advento da internet como uma rede global de compartilhamento de informações e o surgimento
de novas tecnologias disponíveis a cidadãos comuns revolucionaram a produção e divulgação de notícias
nas últimas décadas. Segundo Gillmor (2005, p. 227), “a internet é o mais importante meio de difusão
desde a invenção da imprensa”, constituindo-se, da maneira mais radical, como promotora da
transformação, uma vez que possibilita a qualquer indivíduo produzir e compartilhar conteúdos. Com
isso, verifica-se em curso a passagem de uma hierarquia vertical dos grandes meios de comunicação, que
detinham o monopólio da informação, para um sistema mais democrático no qual todos podem exercer
sua participação cívica. Para o autor, as novas tecnologias e uma crescente insatisfação com os meios de
comunicação de massa criaram as condições para o aparecimento dessa nova estrutura. Na nova era das
comunicações digitais, o público não é mais apenas receptor, mas sim, parte integrante do processo de
produção e divulgação de notícias. Mesmo pessoas que vivem em países com regimes repressivos
passaram a ter voz e lutar por suas causas, como aponta Gillmor (2005, p.146), “as novas tecnologias
permitiram que muitos milhões falassem livremente e fossem ouvidos, em muitos casos pela primeira
vez”.
Como ainda aponta Brittos (2002), pode se afirmar que os impactos econômicos e políticos das
tecnologias e suas consequências na ação social do espaço público, no entanto, “é na disputa para vencer
os limites pelo capital e pela expansão da cultura ligada aos ditames do consumo, que se opõem à
concretização de uma comunicação popular libertadora, articulando democracia e cidadania” (BRITTOS,
2002, p.12).
As esferas públicas criadas pela internet (BENNET, 2004) são mais que universos paralelos de
informação que existem independentemente da mídia de massa. Ao contrário, a internet muda a forma
como são feitas as notícias em função da oferta de contrainformação. “A internet pode engendrar novas
formas de participação individual ou grupal nas discussões dos assuntos que dominam a Esfera Pública.
Enquanto ferramenta acessível, ela também possibilita que novos assuntos sejam trazidos à discussão
pública” (BENNET, 2004, p.25), ampliando de forma substancial a circulação de informações e de fontes
Demandas
Consumo
Interesses
Financiamento
Controle
Dependência
diversificadas, descentralizando o processo de produção e a divulgação dos conteúdos e possibilita a
expressão de vozes diferentes. Esse espaço passa a ser considerado uma extensão da cidadania que se
articula por meio da troca de ideias entre os indivíduos/cidadãos interessados
Jenkins (2009) aponta que os antigos consumidores dos conteúdos disponibilizados a partir da
internet eram indivíduos isolados. Com a convergência, a internet e as redes sociais, os novos
consumidores são mais conectados socialmente. O papel tradicional da imprensa e da mídia eletrônica vai
sendo desgastado a partir do momento em que o próprio manifestante e cidadão decide ser o seu próprio
porta-voz nas redes sociais, criando, assim, uma Esfera Pública dita conectada (figura 1). E também
porque ele dispõe de meios próprios para transmitir as suas opiniões e as suas ideias para o restante da
população.
Figura 1: Esfera Pública Conectada
Figura elaborada a partir de GOMES, W.; MAIA, R. Comunicação e democracia. São Paulo: Paulus, 2011; HABERMAS, J.
Mudança estrutural na Esfera Pública. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1989 ; HABERMAS, J. Direito e democracia. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2004.
Anterior ao surgimento das mídias sociais como o YouTube, Twitter e Facebook, os blogues são
apontados pelo autor como a primeira ferramenta a tornar fácil a publicação na internet, possibilitando a
qualquer usuário veicular notícias. Como um meio flexível e interativo, os blogues permitem a
comunicação de muitos para muitos e de alguns para alguns, significando um importante avanço para o
chamado jornalismo participativo ou cidadão. A popularização dos blogues, segundo Marcondes (2007),
propiciou o fortalecimento da participação cidadã na geração de conteúdos noticiosos, formando,
juntamente com as redes colaborativas, um dos primeiros pilares do jornalismo cidadão.
Redes sociais
conectadas
Esfera Pública
Conectada
Sociedade
civil
Mercado
Estado
ESFERA
PÚBLICA
Empresas de
Comunicação
No entanto, como aponta Patrocínio (2003) é preciso que seja realizado um avanço no acesso de e
a todos os cidadãos no que diz respeito às novas tecnologias e à internet. A cidadania apontada a partir
desse aspecto só pode se efetivar-se quando o acesso aos meios tecnológicos, à publicação, à produção e à
divulgação estiver assegurado. Como “as lógicas inerentes às novas TICs perpassarem a toda a
sociedade” (PATROCÍNIO, 2003, p.10) é necessário ampliar o acesso a todos os cidadãos como se esse
fosse um direito para diminuir o empobrecimento e a assimetria da sociedade.
No que diz respeito ao exercício profissional, por outro lado, o elevado fluxo de informações e a
alta velocidade da rede não alteram a responsabilidade social dos profissionais de comunicação, ou
mesmo daqueles que as utilizam para tal finalidade. Em meio a avalanche de dados, muitos, por exemplo,
transmitidos por cidadãos comuns, é aproveitando a expansão de novos meios e direcionando o bom uso
dessas novas ferramentas na busca de objetivos jornalísticos que se mantêm os profissionais da mídia
hoje.
Em busca de uma comunicação horizontalizada
O ambiente online em redes favorece a lógica participativa, com a interatividade e o
compartilhamento entre os indivíduos, em diversos níveis. Dessa forma, facilita-se o engajamento, tendo
as figuras de produtor e receptor de conteúdos, indivíduo e coletivo fundindo-se em uma
complementariedade (VIEIRA, 009). O digital seria, assim, um locus da cultura participativa, na qual as
práticas colaborativas são potencializadas em um espaço de representação do coletivo. Para o autor, a
colaboração e o diálogo são dois pontos estruturais do jornalismo cidadão, que sempre teve e deverá ter
como propósito encontrar ambientes comuns para facilitar o exercício da cidadania e ampliar o valor da
democracia, com um firme compromisso em favor da liberdade de expressão.
Seja através de um jornal do bairro, de um blogue ou de um canal no Youtube, as pessoas se
utilizam das ferramentas que possuem. Aqueles com acesso à internet têm disponível um mundo de
possibilidades, onde qualquer usuário é também um emissor, não há barreiras tão fortemente expostas e
enraizadas quanto as que existem no papel e nas emissoras de rádio e televisão.
Machado (2009) também considera que desde a sua essência, o jornalismo cidadão tem como
papel o desenvolvimento da sociedade, fundamentado na participação dos atores sociais nos processos de
decisão e reconstrução das informações. Os autores argumentam que embora o jornalismo seja uma
atividade que tenha como função social a construção da cidadania, as presenças de forças como os
oligopólios, os interesses políticos e econômicos, que muitas vezes se deixam entrever pelas entrelinhas
das notícias, acabam impedindo o exercício do papel cidadão no jornalismo. Diante disso, verifica-se a
importância do jornalismo cidadão, praticado pelos novos atores sociais que adotam recursos tecnológicos
presentes na web 2.04 para desenvolver seus espaços comunicativos – blogs, canais no YouTube, Twitter,
Facebook - sem depender de oligopólios midiáticos ou de suas linguagens e estruturas. Segundo o autor,
para se comunicar nestes novos ambientes digitais, com livre produção e circulação de informações, os
cidadãos desenvolveram linguagens próprias e participativas.
No jornalismo participativo e cidadão, “os indivíduos passam a ter papel ativo na recolha, análise,
escrita e divulgação de informações, funções antes restritas aos meios de comunicação” (DOURADO,
2009, p.13) e jornalistas profissionais. Ele não exclui a produção dos jornalistas profissionais, acrescenta
a ele a participação de leigos, pessoas que não são profissionais da comunicação, na publicação e difusão
de informações. Ele inclui questões de cidadania, mas não está restrita a elas, sua prática ultrapassa os
temas sociais e cívicos e abrange qualquer campo do conhecimento. (VARELA, 2007, p.45)
Identificações (hiper)locais
Além de propiciar uma maior pluralidade de informações e oferecer novas oportunidades de
inovação no jornalismo, as práticas de hiperlocalidade em rede reforçam a noção de identidades culturais.
Identidades locais, comunitárias e regionais têm se tornado mais importantes ao mesmo tempo em que a
globalização parece provocar uma homogeneização das culturas. Concomitantemente, junto com o
impacto do global, um novo interesse pelo local parece emergir. De acordo com Hall (2006), a
globalização deslocou as identidades culturais no final do século XX. Diante da morte do sujeito
moderno, as culturas nacionais emergem como formadoras da identidade cultural. “[...] as identidades
nacionais não são coisas com as quais nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da
representação” (HALL, 2006, p.48). As culturas nacionais buscam unificar seus integrantes numa
identidade única, sem levar em conta termos de classe, gênero ou raça. As culturas nacionais não devem
ser pensadas como culturas unificadas, e sim, como um dispositivo discursivo que representa a diferença
como unidade ou identidade. As identidades culturais nacionais servem para costurar as diferenças numa
única identidade.
Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz
sentidos- um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/dãs
legais de uma nação; elas participam da ideia da nação tal como representada em sua
cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica [...] (HALL, 2006, p.49).
As consequências da globalização para as identidades culturais podem ser resumidas em três
pontos: as identidades culturais nacionais estão se desintegrando, como resultados do crescimento da
homogeneização cultural e do “pós-moderno global”; as identidades nacionais e outras identidades
4 A ideia da web como plataforma marcada pela participação/colaboração atividade de um cidadão ou de um grupo diante da difusão de
ferramentas que garantiram essa possibilidade, tais como blogues, wikis, redes sociais, entre tantas.
“locais” ou particularistas estão sendo reforçadas pela resistência à globalização; as identidades nacionais
estão em declínio, mas novas identidades- híbridas- estão tomando seu lugar (HALL, 2006).
Ao mesmo tempo, Castells (2006) também aponta para uma nova valorização do local diante do
novo paradigma que se torna presente, mostrando que as mudanças em nosso tempo (em que as
instituições perdem força) estão fazendo com que a busca da identidade se torne fonte básica de
significado social.
Diante do reforço das identidades locais perante a homogeneização das culturas provocadas pela
globalização dos fluxos informacionais, o jornalismo hiperlocal pode oferecer narrativas que relatem as
identidades locais, fazendo com que perfis históricos e culturais possam se sustentar, além de valorizar a
memória do lugar (LEMOS; PEREIRA, p.4, 2011). Ao favorecer a abordagem local, o jornalismo torna-
se importante fomentador de práticas cidadãs. Uma vez que na infinidade das metrópoles a uniformidade
de identidades parece mais latente, valorizar a localidade pode criar maneiras de sociabilização,
principalmente nas regiões mais periféricas.
Aproximações conceituais: mídia hiperlocal e arena pública
Em meio ao debate até aqui traçado, considera-se que para uma mídia hiperlocal ser considerada e
atuar como arena pública deve 1) ter origem e atuar no seio de uma comunidade; 2) zelar pela
manutenção de elementos de identidade local; 3) ter uma interação ativa dos atores da comunidade nos
processos produtivos; 4) ter como foco a publicização de assuntos para efeitos “públicos coletivos”; 5) ser
desvinculada de instituições de caráter privado e 6) adotar um processo de produção descentralizado.
Como apresentado, as arenas públicas se configuram como espaços que possibilitam o debate no
interior da Esfera Pública de sociedades complexas e democráticas, além de serem responsáveis por
diagnosticar os assuntos de interesse da sociedade e torná-los públicos, consolidando a ideia de opinião
pública, e levá-los à Esfera Pública política.
Esse substrato organizatório, representado no fluxo de informação da Esfera Pública, é
operado pelo conjunto de associações voluntárias desvinculadas do mercado e do
Estado, e que têm a função de captar os anseios da própria sociedade e levá-los ao
conhecimento público e, por consequência, à ciência dos representantes da população
nas instâncias político-administrativas do próprio Estado (LOURENÇO, 2009, p. 86)
Assim como as arenas públicas, uma premissa para as mídias hiperlocais está na sua origem
dentro dos limites de uma comunidade. Conforme já apontado nas seções anteriores, a ideia de
comunidade não está presa ao conceito geográfico, mas sim pelas aproximações e laços de identidades
que caracterizariam tal comunidade5 e serve de elemento de empoderamento e de instituição da cidadania
para tal comunidade ou agentes envolvidos. Sendo assim, quando falamos em noção de global, essa
aborda aspectos técnicos (como características físicas), político-econômicos (como diversidade
sociocultural, histórica, idêntica, etc). “Estão em jogo as várias similaridades nas quais se constroem as
práticas sociais” (PERUZZO, 2005, p. 146).
De acordo com pesquisa conduzida no Reino Unido6 com 183 mídias hipelocais, a participação da
comunidade (para 70,2% dos entrevistados), o jornalismo local (56,7%) e os assuntos locais (55,3%) são
os três principais pontos que auxiliam na definição das mídias hiperlocais em análise, seguido da
participação dos cidadãos (54,6%) e do jornalismo cidadão (42,6%).
Nesse sentido, a manutenção de elementos de identidade local no contexto da comunicação digital
está diretamente relacionado com a origem dessas mídias e sua atuação na comunidade. Além de uma
base popular, partindo dos seio de uma determinada comunidade, é preciso que haja uma interação em
comum relacionada a uma base identitária. Essas reforçam a aproximação com as arenas públicas, ao
passo que tais elementos garantem a melhor captação dos anseios da comunidade e levá-los ao debate.
Em um contexto em que prevalece a homogeneização das identidades em níveis globais (HALL, 2006),
de mundialização das culturas e mudanças nos fluxos de produção da informação, o local ganha uma nova
redefinição diante das potencialidades do cidadão. Esse, em meio a uma infinidade de valores, começa a
buscar um ponto para se referenciar e se identificar.
A globalização implica um movimento de distanciamento da ideia sociológica clássica
da "sociedade" como um sistema bem delimitado e sua substituição por uma perspectiva
que se concentra na forma como a vida social está ordenada ao longo do tempo e do
espaço (HALL, 2006, p.18)
A cidadania passa a ganhar um destaque nessa premissa, com a possibilidade um cidadão mais
ativo na busca de afirmar sua identidade, seus laços e encontrar uma pauta comum para discussão,
fazendo com que assuntos com determinada proximidade delimitados na esfera privada passem a ser
considerados, aglutinados e discutidos para depois serem ecoados ao espaço público na busca de
resultados comuns.
Nesse ponto, o hiperlocal faz com que fiquem claras as ideias de que uma cultura globalizada não
são suficientes para extinguir possibilidades de identificações mais localizadas e potenciais para a geração
5 Para esta análise, considerar-se que a comunidade “evoca sensações de solidariedade, vida em comum, independentemente de época ou
região” sendo “um lugar ideal onde se almejaria viver, um esconderijo da sociedade moderna” (PERUZZO, 2005, p. 140)
6 WILLIANS, A. The state of UK hyperlocal community news: findings from a survey of practitioners. 2014.
Disponível em: <http://orca.cf.ac.uk/68425/>. Acesso em jun. 2017
de interação entre a sociedade civil envolvida. Nessa perspectiva, a cidade, espaço onde pulsam os
elementos hiperlocais, é percebida “como um palco onde se desenvolve a relação social, a vida social e,
mais ainda, um forma que permeia a configuração social e dela participa” (LEMOS, 2011, p. 19). A
internet, com todo o seu aparato tecnológico, faz com que o hiperlocal tenha um potencial de incentivar,
reconhecer e impulsionar elementos da cultura, da comunicação e da política. Assim como as cidades,
esses espaços hiperlocais apresentam um potencial de fortalecimento da cultura, de mobilização da
sociedade e amplificam as alternativas de participação.
De acordo com a pesquisa do Reino Unido7, “a cobertura de assuntos políticos locais é
preponderante e a maioria dos sítios produz campanhas e reportagens investigativas. Quase três quartos
dos entrevistados já cobriram campanhas locais e mais de um terço já instigou uma campanha própria,
normalmente sobre cortes em serviços públicos, contabilidade governamental ou planejamento
municipal”.
Em aproximação da comunicação local ao de arena pública, pode se apontar o esforço da criação
de uma arena pública e formação de uma opinião pública capaz de influenciar os processos de decisões
em uma sociedade. No caso da comunicação hiperlocal, essa acaba tendo por função primordial expor as
características, problemas e demandas de determinada comunidade, fomentando o debate e intensificando
a publicização dos mesmos.
Considerações
As mudanças tecnológicas estabelecidas no final do século XX mudaram radicalmente o
ecossistema dos meios de comunicação e tocam, neste início do século XXI, todos os domínios da vida
humana. Com o jornalismo, em específico, não foi diferente. A alteração do papel do jornalista, o uso
massivo de redes sociais e o crescimento de coberturas colaborativas questionam o modelo industrial de
jornalismo que se consolidou no século passado. Além da mudança no processo, as empresas jornalísticas
passaram a sofrer para se manterem sustentáveis financeiramente. A valorização da cobertura de âmbito
local, com o reforço de novas arenas públicas, pode oferecer alguma esperança nesse momento de
incerteza do jornalismo. Juntamente com a criatividade, a prática jornalística calcada na localidade pode
trazer grandes ganhos ao jornalismo atual. Resta tirar proveito disso e equacionar questões como
fidelização, ampliação da audiência e financiamento para que a inovação propiciada pela criatividade e
pela tecnologia possa trazer desenvolvimento econômico e social, não só para o jornalismo.
Ademais, o jornalismo hiperlocal em meio às mídias locativas fornece um importante referencial
de sustentação das identidades culturais locais e pode colaborar com a participação cidadã mais
7 WILLIANS, A. The state of UK hyperlocal community news: findings from a survey of practitioners. 2014.
Disponível em: <http://orca.cf.ac.uk/68425/>. Acesso em jun. 2017
qualificada e envolvida com os temas inerentes a cada local, principalmente aqueles em que as mídias
tradicionais e hegemônicas costumam excluir da cobertura praticada atualmente. essa conjuntura, em
meio a esse novo jogo de interesses com regras ainda indefinidas, uma das alternativas para o exercício
do jornalismo comprometido com os interesses de públicos-alvo locais seria o pagamento pelos
conteúdos. Ou seja, o novo receptor/ator social – agora com olhos, ouvidos e voz cada vez mais ativa –
poderia pagar pequenas quantias para a manutenção de blogues informativos locais ou hiperlocais, em
troca das notícias e análises que contribuam para o exercício de sua cidadania, que facilitem o
planejamento de sua vida, que o mantenham próximo de sua comunidade e que o tornem conhecido e
reconhecido socialmente.
REFERÊNCIAS
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