Post on 25-Jul-2015
ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS E POLÍTICOS
Agostinho Carlos de Oliveira
Diretora Geral
Débora Cristina Brattas Andrade Guerra
Diretor Acadêmico
Gustavo Hoffmann Leão Coelho
Vice Diretora Acadêmica
Samira Maria Araújo
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OLIVEIRA, Agostinho Carlos
Estudos Antropológicos e Políticos. 1ª ed. Bom
Despacho; FACEB – Cursos de graduação. 184p.
Bibliografia
Estudos Antropológicos e Políticos
Estudos Antropológicos e Políticos
HUMANIDADES II
UNIDADE I – O SER HUMANO, UM SER CULTURAL I 10
Módulo 01 – Introdução ao estudo da antropologia cultural 10
Módulo 02 – Cultura, um fenômeno antropológico 17
Módulo 03 – Outros conceitos antropológicos 28
Módulo 04 – Teorias da Cultura 37
Resumo da Unidade 46
UNIDADE 2 – O SER HUMANO, UM SER CULTURAL II 47
Módulo 05 – Cultura, um conceito antropológico 47
Módulo 06 – A cultura brasileira 56
Módulo 07 – As culturas negras no Brasil 67
Módulo 08 – O indígena brasileiro 77
Resumo da Unidade 88
UNIDADE 03 – O SER HUMANO, UM SER ÉTICO 90
Módulo 09 – Ética I – A existência ética 90
Módulo 10 – Ética II – A filosofia moral 98
Módulo 11 – A liberdade 112
Módulo 12 – A vida política 121
Resumo da Unidade 131
UNIDADE 04 – O SER HUMANO, UM SER POLÍTICO 132
Módulo 13 – As filosofias políticas antigas e medievais 132
Módulo 14 – As filosofias políticas modernas 143
Módulo 15 – As teorias socialistas e a questão democrática 153
Módulo 16 – Democracia, Direitos Humanos e meio ambiente 167
Resumo da Unidade 181
Referências bibliográficas 182
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Ementa:
O fenômeno humano estudado a partir da questão ética: os valores, a consciência e a
liberdade. O fenômeno e o conceito de cultura: natureza, estrutura e finalidade da cultura;
como a cultura opera; etnocentrismo, relativismo cultural e interculturalismo; formação e
desenvolvimento da cultura brasileira, destacando-se a contribuição das culturas negras
e indígenas. O fenômeno e o conceito de poder, na filosofia e na ciência política: desde a
polissemia do termo, passando pela discussão sobre sua origem e finalidade; as filosofias
políticas, o significado do Estado, e a reflexão sobre a ideologia e a questão da democracia
com seus desafios no âmbito da sociedade brasileira face à questão dos direitos humanos
e da questão ambiental.
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UNIDADE I – O SER HUMANO, UM SER CULTURAL I Nesta unidade, a título de introdução, estudar-se-á, primeiramente, a antropologia
cultural como ciência, procurando contextualizar sua origem, definir o seu objeto de
estudo, mapeando sua evolução epistemológica. Depois, far-se-á uma análise da cultura
como fenômeno e conceito antropológico, ou seja, uma manifestação da própria essência
do ser humano. Em seguida, retomando brevemente o conceito principal da antropologia
cultural, contemplar-se-á alguns outros conceitos correlatos ao conceito de cultura, tal
como subcultura, aculturação, etnocentrismo, relativismo cultural e interculturalismo. Por
fim, abrir-se-á espaço para o estudo das teorias sobre cultura, passo importante para
compreensão mais profunda da cultura como aspecto essencial do ser humano.
Módulo 01 – Introdução ao estudo da antropologia cultural
Nós vivemos em uma sociedade pertencente à chamada civilização ocidental
marcada pela presença da religião cristã, baseada na revelação; uma civilização cujos
elementos culturais fundantes remontam à antiguidade grega e romana. Assim, temos
e cultivamos a instituição da família monogâmica, baseada na norma segundo a qual o
homem ou a mulher só podem ter um único cônjuge ao qual se deve fidelidade e respeito.
Apesar de ser esta uma norma sagrada, ou seja, estruturante de nossa sociedade,
na prática, não é raro encontrar pessoas, mais frequentemente homens, que ousam
assumir a poligamia, mantendo, então, ao mesmo tempo, vínculo conjugal com mais de
uma mulher.
Esta situação não é uma situação confortável para quem ousa assumi-la.
Geralmente, por se tratar de uma afronta a uma norma socioantropologicamente
considerada sagrada, a pessoa que assume aquele comportamento, vive em conflito não
apenas com sua consciência, mas também com outras pessoas, variando a intensidade
do mesmo conforme seja a personalidade dos atores, mais ou menos socioculturalmente
integrada, ou conforme a proximidade com as outras pessoas.
Entretanto, graças a antropologia cultural, sabemos que há vários povos
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pertencentes à chamada civilização oriental, marcada pela presença de várias religiões
baseadas na iluminação, uma civilização cujos elementos culturais fundantes são
diferentes daqueles da civilização greco-romana. A instituição da família monogâmica
é estranha para vários povos do oriente. Há entre eles aqueles que cultivam a família
poligâmica ou poliândrica, baseada na norma segundo a qual a pessoa pode ter tantos
cônjuges quantos puder assistir de forma digna, ou seja, o homem ou a mulher mantêm
o vínculo conjugal com tantas mulheres ou homens que lhes for possível; sem falar dos
povos que adotam o casamento grupal, sendo os filhos, filhos da comunidade.
Nesta mesma perspectiva, tratando do comportamento sexual dos povos, o que
dizer dos esquimós que vivem na região do polo norte que possuem o costume de, assim
como nós oferecemos um cafezinho quentinho para o amigo que nos visita, manifestando
simpatia e cortezia, oferecem suas esposas àqueles que os visitam?
Então, considerando que do ponto de vista físico-biológico é o mesmo ser humano
que vive no ocidente e no oriente, como considerar esses diferentes comportamentos
referentes ao relacionamento afetivo-sexual? Poder-se-ia dizer que um comportamento
é certo e outro é errado? Como você os avalia? Será que a antropologia cultural fornece
luzes para se compreender a diversidade cultural da humanidade?
O objeto de estudo da antropologia
Desde que o homem é homem, há quem se interrogue sobre o ser humano e
elabore um discurso artístico, teológico ou filosófico sobre o homem, entretanto, uma
ciência, no sentido moderno, do ser humano é bastante recente, data dos fins do século
XVIII e inícios do século XIX na Europa.
A antropologia como ciência afirmar-se-ia mesmo apenas na segunda metade
do século XIX. A metodologia científica de então exige uma radical dualidade entre o
observador e o observado, ou seja, uma separação clara entre sujeito observante e objeto
observado tal como havia na física ou na biologia.
Na antropologia aquele distanciamento exigido entre sujeito e objeto só poderia
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ser alcançado com um efetivo distanciamento geográfico, de tal modo que os primeiros
antropólogos tomaram as sociedades longínguas, de dimensões restritas e com poucos
contatos com os vizinhos como objeto de estudo. Sociedades simples e bastante
diferentes se comparadas à complexidade de nossas sociedades.
Estabelecido que o objeto da antropologia era o estudo das populações não
pertencentes à civilização ocidental, quando a antropologia, no início do século XX, define
os seus próprios métodos de pesquisa, descobre-se que o seu objeto, as sociedades
primitivas, por força da evolução social, está desaparecendo; uma circunstância crítica
que permite indagar se seria o fim da antropologia como ciência, já que seu objeto tendia
ao desaparecimento.
Eis que surgem três caminhos face àquela crise: primeiro, aceita-se a morte da
antropologia migrando-se seus estudiosos para outras ciências humanas, particularmente
para a sociologia; segundo, busca-se um novo objeto para a antropologia, mudando-se
o foco do “selvagem” em extinsão para o “camponês”, ainda largamente encontrado,
adotando-se o distanciamento socio-cultural interno ao invés da distancia geográfica das
sociedades primitivas; por fim, o caminho mais promissor: a antropologia não depende
de um espaço geográfico ou cultural mas consiste em um certo olhar sobre o homem
inteiro em todas as sociedades de todos os tempos.
O estudo do homem inteiro
Marconi (2001), concebendo a Antropologia como a ciência da humanidade e da
cultura, dilata seu campo de investigação a toda a terra habitada e a, pelo menos, dois
milhões de anos, bem como a todas as sociedades organizadas, dividindo seu campo de
estudo em Antropologia Física e Antropologia Cultural, subdividindo estes dois campos
de modo a abranger os diversos aspectos do ser humano.
Laplantine (2000) afirma que só é antropológica uma abordagem integrativa
das múltiplas dimensões do ser humano. Para ele relacionar campos de investigação
frequentemente separados, sempre visando o ponto de vista da totalidade, é uma das
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maiores vocações da antropologia.
Em razão da vastidão do campo de investigação da antropologia bem como da
impossibilidade de um pesquisador dominá-lo integralmente, surge a necessidade de
dividi-lo para depois integrar os saberes produzidos. Segundo Laplantine são cinco áreas
principais de estudo: antropologia biológica; antropologia pré-histórica; antropologia
linguística; antropologia psicológica e antropologia social e cultural.
A antropologia biológica também chamada de antropologia física estuda as
características biológicas do ser humano no espaço e no tempo, sempre atenta à interação
da genética com o meio geográfico, ecológico e socio-cultural, procurando descobrir as
influências recíprocas daqueles campos, mapeando o que diz respeito ao inato, isto é,
aquilo que é natural, e mapeando o que se refere ao adquiro, ou seja, aquilo que é cultural.
A antropologia pré-histórica estuda o ser humano e as sociedades desaparecidas,
suas técnicas, organizações sociais e produções artístico-culturais através de vestígios
materiais enterrados no solo (sítios arqueológicos).
A antropologia psicológica estuda os processos e o funcionamento do psiquismo
humano. Trata-se, segundo Laplantine, de um campo importante da antropologia pois
todos os saberes sobre a totalidade humana visada pela antropologia passam, em razão
de sua metodologia, pelo confronto com os comportamentos conscientes e inconscientes
dos seres humanos individuais.
A antropologia social e cultural também conhecida como etnologia (estudo da
cultura) possui uma considerável abrangência pois estuda tudo o que constitui uma
sociedade: modos de produção econômica; técnicas; organização politico-jurídica;
sistemas de parentesco, de conhecimento, de crenças religiosas, lingua, psicologia e
artes em geral.
Deste modo, sem se esquecer que as cinco áreas relacionadas se articulam para
produzir a visão do ser humano integral, toda vez que neste estudo se referir à antropologia
é à antropologia social e cultural, ou simplesmente, antropologia cultural que se estará
referindo.
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O estudo do homem em sua diversidade
A antropologia enquanto etnologia não é apenas o estudo de tudo o que compõe
uma sociedade, mas o estudo das culturas da humanidade como um todo, em sua rica
diversidade geográfica e histórica.
A antropologia desenvolveu um modo de conhecer a partir do estudo das
sociedades primitivas: a observação direta, por impregnação lenta e contínua de
grupos humanos diferentes com os quais se mantém uma relação pessoal. Fazendo-
se assim a experiência da alteridade, ou seja, a experiência do alter ou do outro,
do diferente, descobre-se que aquilo que julgávamos ser natural é, de fato, cultural.
Daí que o “estranhamento” em relação às culturas diferentes modifica o nosso olhar
sobre a nossa própria cultura. Presos a uma única cultura, passamos a considerá-la
natural e não percebemos que os nossos gestos, posturas, sentimentos, reações ou
comportamentos são todos culturais. “O conhecimento (antropológico) da nossa cultura
passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas” (LAPLANTINE, 2000, 21).
O conhecimento de culturas diferentes, obviamente, leva-nos a perceber que a
nossa cultura é apenas uma cultura possível e não a única. Nesta perspectiva descobrimos
também que se há algo natural no ser humano, algo que caracteriza a unidade do ser
humano, tal algo é a capacidade de inventar modos de vida ou formas de organização
social diversas.
Assim, a antropologia visa o reconhecimento e o conhecimento da humanidade
em sua pluralidade, ou seja, a antropologia tematiza o dilema da “conciliação da unidade
biológica e a grande diversidade cultural da espécie humana” de que falava Clifford
Geertz (LARAIA, 2001,10).
Isto posto, há de se imaginar o quanto a abordagem antropológica pode contribuir
para o amadurecimento do ser humano no sentido de romper com uma visão estreita,
aquela que concebe a existência de um “centro do mundo” a partir de sua própria cultura,
e se adotar uma perspectiva mais reflexiva e crítica, sempre questionada pelo confronto
da multiplicidade cultural que nos possibilita superar aquela tendência à naturalização do
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social.
Abordagens antropológicas
François Laplantine, em “Aprender Antropologia” (1988) fala de quatro aspectos
em relação aos quais os antropólogos divergem em suas abordagens antropológicas.
O primeiro aspecto refere-se à própria denominação da ciência: etnologia ou
antropologia? Se se opta por acompanhar os franceses que adotam etnologia, então,
enfocar-se-á especialmente a pluralidade irredutível das etnias ou culturas; se se
acompanha os anglo-saxônicos, adotando-se antropologia, ressalta-se a unidade do
gênero humano; sendo antropologia social que foca, como fazem os britânicos, o estudo
das instituições, ou antropologia cultural que prioriza o estudo dos comportamentos,
conforme os norte-americanos.
O segundo aspecto problemático da abordagem antropológica é a suspeita que
recai sobre sua cientificidade em razão da coincidência entre sujeito e objeto: seria
possível uma abordagem objetiva do ser humano, atendendo assim à exigência do
método das ciências da natureza? Enquanto para Radcliffe-Brown e seus seguidores as
sociedades são sistemas naturais e devem ser estudadas com o método das ciências da
natureza, para Evans-Pritchard e seus adeptos as sociedades são sistemas simbólicos
e não orgânicos, de modo que a antropologia não é uma ciência, mas uma arte. Neste
contexto, Levi-Strauss substitui o modelo orgânico dos ingleses por um modelo linguístico,
mostrando como a antropologia trabalha no encontro da natureza com a cultura e que,
portanto, é uma ciência social, mas que pode e deve aspirar ser uma ciência natural.
O terceiro aspecto polêmico é a relação entre antropologia e história. Enquanto
uma corrente de antropológos em seus estudos não leva a história em consideração
pois não reconhece sua contribuição, outra empenha-se em mostrar como a antropologia
pode se enriquecer com o conhecimento da história, como fez Gilberto Freire no Brasil. A
propósito é oportuno lembrar, os conceitos de “sociedades frias” e “sociedades quentes”
de Levi-Strauss, nem sempre bem entendidos: sociedades frias são aquelas sociedades
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primitivas que vivenciam sua historicidade presente cultivando as estórias a respeito
de sua origem, enquanto sociedades quentes são aquelas que a exemplo das nossas,
vivenciam sua historicidade, apoiadas na concepção de história como motor de seu
desenvolvimento. (GOLDMAN, 1999).
Por fim, um quarto aspecto conflitivo que envolve a antrologia refere-se ao papel
da antropologia face à realidade. Afinal, “o antropólogo” deve contribuir, enquanto
antropólogo, para a transformação das sociedades que ele estuda?” (LAPLANTINE,
2000,29). Na hipótese positiva, não estaria deixando de ser antropólogo e tornando-se
um militante político? O fato é que ao longo da história, os antropólogos tem-se dividido,
determinando a existência de uma antropologia pura e de uma antropologia aplicada.
Laplantine defende que o antropólogo não deve trabalhar para transformação das
sociedades que estuda, mas contribuir para que uma determinada cultura explicite para
ela mesma sua própria diferença. Neste sentido, percebe-se que se filia à antropologia
pura. Contudo, por outro lado, sustenta que o antropólogo se vê confrontado por uma
dupla urgência à qual tem o dever de responder: urgência de preservação dos patrimônios
culturais locais ameaçados e a urgência de análise das mutações culturais impostas pelo
desenvolvimento contemporâneo urbano-industrial marcado pelo racionalismo social,
perspectiva que enseja a atuação no campo da antropologia aplicada.
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Módulo 02 – Cultura, um fenômeno antropológico
O que é cultura? Qual a natureza da cultura? Quais os sentidos da palavra cultura?
O que é natureza? Existe uma natureza humana? Em que sentido podemos falar de
natureza humana? Qual a diferença entre natureza e cultura? Como é a cultura? Como
analisar a cultura? Estas são algumas questões que serão trabalhadas neste módulo.
Marilena Chauí, em seu “Convite à Filosofia”, aborda o tema de uma forma muito
inteligente. Para nos ajudar a compreender o que é cultura, provoca nossa reflexão
fazendo-nos pensar sobre a natureza, especialmente sobre a ideia de “natureza humana”.
Apresenta-nos questões contraditórias que ao serem analisadas nos levam a concluir
que não existe exatamente uma natureza humana. Por exemplo: “as mulheres são
naturalmente frágeis e sensíveis, porque nasceram para a maternidade e para a lida
doméstica” e “os homens são naturalmente fortes e racionais, feitos para o comando e a
vida pública”. Dizer que algo é natural é dizer que o mesmo ocorre por força da natureza,
ou seja, significa dizer que tal coisa não depende da ação intencional dos seres humanos.
A natureza é o reino da necessidade, nela as coisas existem e funcionam seguindo uma
causalidade necessária e universal.
Considerando que há sociedades onde, enquanto os homens assumem a
elaboração da alimentação e o cuidado da casa, as mulheres se ocupam em fazer a
guerra e comandar a comunidade, não se pode admitir que haja uma natureza humana,
como sugerem as frases acima, determinando o que os seres humanos devem pensar e
sentir ou como devem agir.
Portanto, do ponto de vista das ciências humanas e da filosofia não se admite a
existência de uma natureza humana universal e intemporal, determinando previamente
o ser do ser humano. A “natureza” dos seres humanos é a de ser seres históricos,
econômicos, políticos, sociais e culturais. Eles vivem não sob o jugo da causalidade
necessária e universal, característica da natureza, mas sim, em condições existenciais
concretas, sob a inspiração da inteligência e da liberdade, distintivo da cultura face à
natureza.
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Natureza da cultura
A palavra cultura é uma palavra polissêmica, isto é, uma palavra que possui vários
sentidos. O primeiro sentido de cultura é o sentido etimológico, derivado do termo latim
“colere” que significa cultivo, daí o significado de agricultura: o cultivo do campo, da
terra ou das lavouras, ou seja, o cuidado que as pessoas do campo dispensam a suas
plantações para que floresçam e produzam frutos. Daí, falar-se de cultura de arroz, de
feijão ou de milho.
O senso comum costuma identificar cultura com acervo ou volume de conhecimento.
Assim, é frequente se ouvir dizer: “Fulano é uma pessoa culta, inclusive fala várias
linguas”, ou ainda, “Siclano não tem cultura para ocupar aquele cargo”. Observa-se que
cultura neste sentido restrito refere-se a algo que as pessoas podem ou não possuir;
deste modo, pode-se dizer que alguém é culto ou inculto.
Como já se viu em estudos anteriores, para a sociologia, cultura é uma perspectiva
ou visão de mundo compartilhada pelas pessoas em uma determinada organização social
a partir de suas crenças, valores, objetivos e normas, ou seja, o horizonte de sentido pelo
qual as pessoas se orientam na vida individual, comunitária e social. Como se vê, uma
concepção que destoa das anteriores.
No âmbito da antropologia, como registra Marconi (2001), mais de uma centena e
meia de definições de cultura já foram elaboradas, sem que os antropólogos chegassem
a um acordo sobre a adequação satisfatória de uma única elaboração. Analisando as
definições mais encontradas, destacam-se aqui algumas mais expressivas: a primeira
definição de cultura que predominou no campo da antropologia por várias décadas,
foi a de Edward Tylor, segundo a qual cultura é “aquele todo complexo que inclui o
conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros
hábitos e aptidões adquiridos pelo homem como membro da sociedade” (TYLOR apud
MARCONI, 2001, 43), um conceito que ressalta claramente como a cultura não é inata,
mas adquirida pelo ser humano. Para Franz Boas, cultura é “a totalidade das reações
e atividades mentais e físicas que caracterizam o comportamento dos indivíduos que
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compõem um grupo social...” (BOAS apud MARCONI, 2001,43); uma definição sintética,
mas abrangente, pois quando fala de “reações e atividades mentais e físicas” aponta
dois aspectos fundamentais da cultura, o abstrato e o concreto, o interno e o externo, ou
ainda, o subjetivo e o objetivo. Para Malinowski, cultura é “o todo global consistente de
implementos e bens de consumo, de cartas constitucionais para os vários agrupamentos
sociais, de ideias e ofícios humanos, de crenças e costumes” (MALINOWSKI apud
MARCONI, 2001, 43); uma definição importante, pois quando fala de implementos e bens
de consumo ressalta a participação também de elementos materiais na concepção de
cultura. Para Clifford Geertz “a cultura deve ser vista como um conjunto de mecanismos
de controle – planos, receitas, regras, instituições – para governar o comportamento”
(GEERTZ apud MARCONI, 2001,44); uma concepção em que a cultura é comparável
ao software face ao hardware, ou seja, comparável ao programa que faz funcionar o
computador. Neste sentido a cultura equivaleria a um conjunto de programas que vão
sendo implantados no ser humano desde a sua primeira infância através do processo de
socialização para que o mesmo possa funcionar bem na sociedade.
Percebe-se que entre tantos sentidos da palavra cultura, o antropológico é mais
amplo e englobante. Para a antropologia, numa palavra, cultura é o modo de vida de
um povo, compreendendo esta expressão “modo de vida”, em latim, modus vivendi, um
conjunto de elementos materiais e não materiais que possibilitam, em todos os aspectos,
a vida dos seres humanos numa sociedade concreta.
Isto posto, percebe-se que cultura, do ponto de vista antropológico, pode
ser analisada sob vários enfoques: cultura como ideia; cultura como abstração do
comportamento; cultura como comportamento aprendido; cultura como coisa extra-
somática, ou seja, fora do corpo humano, e cultura como mecanismo de controle.
Tomando-se a cruz como exemplo para análise, tem-se a cruz como ideia ou imagem
na mente; tem-se a cruz como abstração, enquanto símbolo dos cristãos; tem-se a cruz
como comportamento aprendido quando, por exemplo, o católico faz o sinal da cruz; tem-
se a cruz por si mesma, independente da ação humana, como coisa extra-somática, e,
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por fim, como mecanismo de controle, quando usada para se obter a reverência dos fiéis
ou no rito de exorcismo.
Para Leslie White os elementos que constituem a cultura são coisas e
acontecimentos que se encontram nos espaço e no tempo, assim quanto a sua localização
podem ser classificados em intraorgânico”, “interorgânico” e “extraorgânico”. Conceitos,
crenças, emoções e atitudes são intraorgânicos, ou seja, estão dentro dos organismos; os
processos de interação social entre os seres humanos são interorgânicos, isto é, entre os
organismos; e objetos como machados, ferrovias ou computadores são extraorgânicos;
isto é, estão obviamente fora do corpo humano.
Uma concepção frequentemente encontrada entre os antropólogos é aquela
segundo a qual a essência da cultura são ideias, abstrações e comportamento. Leslie White
tem uma postura crítica em relação a esta concepção. Para ele, ideias ou conhecimentos
fazem parte da cultura, mas não são a totalidade da cultura, que inclui também atos
evidentes e objetos materiais. A concepção de cultura apenas como ideias é, para
White, uma concepção pré-científica e ingênua pois, por ser abstração, algo intangível
e imperceptível, localiza-se fora do campo científico. Também a ideia de cultura como
comportamento humano é ponderada por White, pois, para ele, atos ou acontecimentos,
objetos ou coisas que integram a cultura não são meros comportamentos, mas uma
concretização do comportamento humano, portanto, possuindo necessariamente uma
dimensão extra-somática.
Refletindo sobre a cultura, os estudiosos classificam-na sob vários aspectos.
Uma classificação comumente encontrada é a de cultura material e cultura imaterial
(espiritual), ou ainda, cultura real e cultura ideal.
Cultura material consiste em coisas materiais, instrumentos, artefatos e outros
bens tangíveis fruto da criação humana, por exemplo: machados de pedra, alimentos,
habitações, vestuários, máquinas, carros, aviões, celulares, computados e etc. Cultura
imaterial é constituída por elementos sem substância material, por exemplo: crenças,
conhecimentos, hábitos, normas, valores e etc. Na verdade, uma distinção apenas
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didática, para se pensar e compreender o fenômeno da cultura, pois material e imaterial
referem-se, na prática, a dois aspectos distintos da mesma realidade, visto que estão
efetivamente entrelaçados. Para constatação deste fato, basta imaginar quanto de
conhecimento, elemento imaterial, por exemplo, é necessário para construção de uma
casa ou de um carro, expressões da cultura material.
Cultura real é aquela que todos os membros de uma sociedade praticam, pensam
ou testemunham em suas atividades cotidianas, embora não possa ser percebida em
sua totalidade. Cultura ideal é a cultura normativa, um conjunto de comportamentos
considerados bons, perfeitos, mas, muitas vezes, além do alcance comum. Exemplos: o
casamento indissolúvel como cultura ideal e o casamento nem sempre indissolúvel como
cultura real.
Componentes da cultura
Segundo Marconi (2001), a cultura, de um modo geral, possui os seguintes
componentes cognitivos: conhecimentos, crenças, valores, normas e símbolos.
Conhecimentos são saberes práticos ou teóricos que possibilitam a sobrevivência das
pessoas. Crenças consistem em atitudes mentais do indivíduo face a uma proposição
verdadeira ou falsa, e que servem de base à ação voluntária. Valores são qualidades
que indicam que objetos e situações são considerados bons, desejáveis ou não. Normas
são regras que indicam o modo certo dos indivíduos agirem em determinadas situações.
Símbolos são realidades físicas ou sensoriais às quais os indivíduos atribuem valores e
significados específicos.
Analisando melhor esses componentes cognitivos da cultura, uma crença é uma
ideia sobre o que é ou que não é verdade, ou seja, é a aceitação de uma determinada
proposição, como verdadeira ou como falsa. Consiste numa atitude mental com conotação
emocional do indivíduo, servindo, portanto, de base para sua ação. Há três tipos de
crenças: pessoais, declaradas e públicas. Pessoais são aquelas aceitas por um indivíduo
independente dos demais indivíduos; por exemplo: acreditar em lobisomem. Declaradas
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são aquelas que uma pessoa aparenta aceitar como verdadeiras em seu comportamento
público, apenas para se justificar; por exemplo: ser favorável à democracia e à igualdade
dos sexos. Públicas são aquelas aceitas por um grupo como suas crenças comuns, por
exemplo, o mistério da encarnação para os cristãos, ou seja, Deus nasceu neste mundo
como um ser humano, assumindo a condição humana no tempo e no espaço.
Por fim, as crenças podem ser verdadeiras ou falsas. As crenças falsas correspondem
ao conceito de ideologia criado por Karl Marx, como ideias sem fundamento na realidade,
ideias que iludem o indivíduo, falseando a realidade.
Quanto aos valores, o termo valor refere-se a algo que não nos é indiferente, algo,
portanto, que consideramos mais ou menos relevante. Algo que geralmente nos mobiliza,
desde nosso interior, em nossas ações. Há valores dominantes e valores secundários.
Por exemplo, o direito à vida e o direito à liberdade são valores dominantes, enquanto
“lavar as mãos antes das refeições” ou “saudar um conhecido na rua” são valores
secundários em nossa cultura. Quanto à qualidade, há seis tipos de valor: tecnológico,
econômico, moral, ritual, estético e associativo. Nota-se o quanto os valores são também
constitutivos fundamentais da cultura!
As normas são regras ou princípios que nos obrigam a agir de determinado modo,
quer dizer, definem o jeito certo de agir no grupo ou na sociedade, de tal modo que elas
(as normas) implicam em expectativas de comportamento. Graças às normas vigentes,
as quais internalizamos por força da educação que tivemos, sabemos como agir e
sabemos como os outros agirão em dada situação, assim, a vida fica no “automático”,
não precisamos gastar muita energia e nos estressar imaginando como devemos nos
comportar ou como as pessoas se comportarão.
Isto posto, há normas ideais e comportamentais. As ideais são aquelas que
os membros de uma sociedade deveriam praticar: enterrar ou cremar os mortos. As
comportamentais são os comportamentos reais dos indivíduos que fogem às normas
ideais, por exemplo, a pulseira no tornozelo. As normas ideais podem ser classificadas
em cinco categorias: obrigatórias, preferenciais, típicas, alternativas, restritas.
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Por fim, talvez o conceito de símbolo seja o mais básico conceito para se entender
o que é cultura. Símbolo é o primeiro elemento constitutivo da cultura, ou seja, é o átomo,
a menor parte constitutiva da cultura. Símbolo é qualquer realidade física ou sensorial a
que os indivíduos atribuem coletivamente um valor ou significado específico. Por exemplo,
tomemos as letras “a”, “m”, “o” e “r”, associemos estas letras e teremos a palavra “amor”,
uma palavra extremamente significativa em nossa vida cotidiana, pois, em nossa cultura,
designa o próprio sentido ou razão de ser da vida. Se as associarmos na sequência
contrária teremos “roma”, uma palavra também significativa pois nos designa uma das
mais antigas cidades do mundo, entretanto, não tem o peso em nossa vida cotidiana da
palavra “amor”. Veja, então, o poder do símbolo e sua fundamentalidade na constituição
da cultura. Somos capazes de, pelas nossas crenças e valores, simbolizar o mundo e
assim produzir e transmitir conhecimento, dando sentido à vida e ao mundo.
De acordo com o significado os símbolos podem ser arbitrários, partilhados
e referenciais. O símbolo é arbitrário à medida que não têm relação intrínseca ou
obrigatória entre o objeto e o símbolo; por exemplo, a propriedade física da cruz e os
valores simbólicos que lhe são atribuídos pelos cristãos. O símbolo é partilhado quando
tem o mesmo significado para diferentes culturas; por exemplo, a palma como aplauso.
O símbolo é referencial quando se refere a uma coisa específica; por exemplo, o hino
nacional brasileiro.
O símbolo, ao lado da crença, está na base da vida humana. Como já se viu,
possibilita a comunicação simbólica através especialmente da linguagem, sendo a
palavra o símbolo por excelência. O símbolo possibilita, pois, o pensamento e a liberdade
humana, assim como possibilita toda a organização da sociedade através das estruturas,
da cultura e instituições sociais.
Estrutura da Cultura
Para se analisar e compreender a estrutura da cultura os antropólogos
desenvolveram conceitos como traços culturais, complexos culturais, padrões culturais,
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configurações culturais, áreas culturais e subcultura. Vamos entender esses conceitos!
Segundo Marconi (2001), todos os elementos que constituem a cultura possuem,
cada um deles, forma e função. A forma é o feitio ou maneira como uma coisa se
apresenta ou se manifesta, enquanto a função é o tipo de ação ou procedimento de um
elemento em relação com outros dentro da cultura; por exemplo, um anel pode ter várias
formas (materiais diferentes, medidas diferentes) e várias funções (enfeite, compromisso,
status).
Os elementos culturais, também chamados de traços culturais, referem-se à menor
unidade ou componente significativo da cultura que pode ser isolado no comportamento
cultural. Todo elemento cultural tem dois aspectos, objetivo e subjetivo, ou seja: o objeto
em si e o seu significado. Traços ou elementos culturais são constituídos de itens, os
quais, por si sós, não têm valor. Por exemplo, tomando a caneta como um traço cultural,
seus itens (carcaça, refil, tinta, tampa) isoladamente não têm valor. São exemplos de
elementos culturais: caneta, mesa, vestido, aperto de mão, oração e festa.
O que são complexos culturais? Segundo Marconi (2001), consistem no conjunto
de traços associados, formando um sistema ou um todo funcional que agrupa em torno
de um foco de interesse determinadas características culturais. Por exemplo, o carnaval
brasileiro é um complexo cultural que integra vários elementos ou traços culturais: carros
alegóricos, música, dança, instrumentos musicais, desfile, organização e etc. Outros
exemplos de complexos culturais: o café; o fumo; o casamento a tecelagem caseira.
O que são padrões culturais? Padrões culturais são “os contornos adquiridos pelos
elementos de uma cultura e as coincidências dos padrões individuais de conduta que
dão coerência, continuidade e forma diferenciada ao modo de vida em uma determinada
sociedade” (HERSKOVITS apud MARCONI, 2001,55). Assim, o padrão consiste em
uma norma comportamental generalizada que reflete as maneiras de pensar, sentir e
agir, estabelecendo o que é aceitável ou não na conduta das pessoas em uma dada
sociedade.
O padrão cultural, tal como o padrão social já estudado, surge da interação das
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pessoas em circunstâncias concretas da vida humana, quando então definem um modo
de interpretar aquela situação e um modo de agir; daí pela repetição contínua daquele
comportamento por parte de várias pessoas na sociedade desenvolve-se o padrão cultural.
São alguns exemplos de padrões culturais que constituem a cultura total no Brasil: batizar
as crianças; ir à igreja aos domingos; tomar cerveja com os amigos no final de semana;
comer três vezes ao dia; assistir ao futebol ou à novela.
O que são configurações culturais e qual a importância deste conceito para a
antropologia? Configuração cultural consiste na integração dos diferentes traços e
complexos culturais, formando uma cultura específica; ou seja, é o que resulta de um arranjo
único que articula as diferentes partes de uma cultura. A importância deste conceito está
vinculada ao fato de ser a configuração cultural uma qualidade específica que caracteriza
uma cultura, pois os mesmos elementos ou complexos culturais combinados de outra
maneira, ou seja, tendo uma outra configuração, resultam em culturas diferentes.
Por fim, qual o significado do conceito de área cultural e qual sua importância
para antropologia? Área cultural são territórios geográficos onde a cultura apresenta
uma mesma configuração, isto é: os indivíduos compartilham os mesmos padrões de
comportamento. Trata-se de um conceito importante para o conhecimento dos povos
ágrafos ou mesmo para se descobrir a origem de uma cultura, perceber e analisar os
fenômenos da mudança cultural e da difusão da cultura.
Natureza e cultura
Para se fechar este módulo, retoma-se a reflexão proposta em sua introdução,
buscando-se compreender a natureza da cultura através da explicitação da diferença, do
ponto de vista filosófico, entre natureza e cultura.
Segundo Marilena Chauí (2000), no pensamento ocidental, natureza também
possui vários sentidos: natureza como princípio vital ou uma força espontânea capaz
de gerar e cuidar da vida, ou seja, a natureza como a substância dos seres; natureza
como essência própria de um ser ou o conjunto de qualidades, propriedades e atributos
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que definem um ser, ou seja, aquilo que faz com que o ser seja o que é; natureza como
uma organização universal dos seres por força das necessárias relações de causalidade
entre eles; natureza como tudo aquilo que existe no universo e se mantém sem qualquer
interferência humana, ou seja, o natural é aquilo que se opõe ao artificial; natureza como
o conjunto das condições físicas onde vivemos, ou seja, o meio ambiente que existe fora
de nós; por fim, um sentido destoante: natureza como objeto de conhecimento produzido
pelas ciências, ou seja, um campo objetivo produzido pela atividade do conhecimento,
com o auxílio de instrumentos tecnológicos, de modo que a ideia de natureza torna-se
uma construção ou um objeto cultural.
A cultura no âmbito da antropologia pode ser considerada, como se viu, sob vários
aspectos: objetivo, subjetivo e intersubjetivo; como realidade material ou espiritual; como
algo que está necessariamente vinculado ao ser humano, embora não lhe seja inato,
mas é produzida ou adquirida por ele no convívio social e que vai sendo transmitida e
enriquecida de geração em geração; portanto, a cultura revela-se como um fenômeno
antropológico.
Sendo assim, percebe-se claramente alguns aspectos da natureza da cultura, isto
é, alguns aspectos característicos ou próprios do seu ser. Em primeiro lugar, a cultura,
assim como o seu sujeito, o ser humano, é, uma realidade histórica e inacabada; está
no tempo e no espaço, e vai se constituindo progressivamente conforme a dialética que
rege as ações humanas, sempre pautadas pelas necessidades humanas e refletindo os
altos e baixos da economia e o movimento das relações de poder. Em segundo lugar,
a cultura é, tal como o seu sujeito, o ser humano, um fenômeno social, pois se constitui
a partir da interação entre os seres humanos; sem dizer que é social porque se difunde
de região para região e de geração para geração graças também à interação social. Por
fim, numa palavra, a cultura é artificial, ou seja, a cultura não é natural no sentido de que
é necessária ou que possa se dar sem a intervenção do ser humano; a cultura é arte.
Hegelianisticamente, a cultura é a manifestação do espírito, isto é, concretização da
inteligência e liberdade do ser humano.
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Pode-se afirmar que a cultura é o contraponto da natureza. Destacando-se o
sentido de natureza como tudo aquilo que existe e se mantém sem qualquer interferência
humana, a cultura, por sua vez, engloba tudo aquilo da realidade que possui o toque
humano, ou seja, tudo aquilo que resulta de alguma intervenção do ser humano, um ser
inteligente e livre, numa palavra, um ser cultural por natureza.
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Módulo 03 – Outros conceitos antropológicos
Será que os conceitos nos ajudam a compreender a realidade? Segundo o filósofo
Ludwig Wittgenstein, o nosso mundo tem as dimensões de nosso vocabulário. A crer
no filósofo da linguagem, vale a pena nos empenharmos em conhecer alguns outros
conceitos, ampliando assim o nosso vocabulário antropológico.
Considerando a aplicabilidade da antropologia na própria vida pessoal e nas mais
diversas áreas de atuação profissional, importa entender claramente o conceito de cultura
que é o conceito básico da antropologia, mas também uma série de outros conceitos
relacionados ao de cultura para que nas situações concretas da vida profissional, saiba-
se, com a ajuda daqueles conceitos, contextualizar e resolver competentemente os
problemas.
Portanto, apresentam-se aqui, de modo objetivo, alguns outros conceitos do
campo da antropologia que lhe serão úteis, não só para compreender a cultura brasileira,
palco de sua atuação cidadã e profissional, mas lhe possibilitarão, no confronto das
realidades concretas, analisá-las, compreendê-las e nelas intervir de forma competente:
cultura, cultura simples, cultura complexa, subcultura, contracultura, cultura dominante,
cultura de massa, cultura popular, mudança cultural, difusão cultural, endoculturação,
aculturação, deculturação, etnocentrismo, relativismo cultural e interculturalismo.
Conceitos correlatos de cultura
1. Cultura
Considerando a reflexão do módulo anterior sobre o fenômeno e o conceito
de cultura, limita-se aqui a recordar a diferença entre a acepção de cultura para o
senso comum, geralmente interpretada como erudição, ou seja, volume ou acervo de
conhecimento, e a acepção de cultura para as ciências sociais, especialmente para
a antropologia, como modus vivendi de um povo com sua história específica, suas
crenças, seus valores e normas encarnadas nas diversas instituições que mantém a
vida do indivíduo, da comunidade ou da sociedade.
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2. Cultura simples
Cultura simples é uma cultura homogênea, isto é, uma cultura da qual toda
a comunidade participa. A divisão dos trabalhos e tarefas simples, necessárias à vida
cotidiana das pessoas, é feita praticamente apenas em relação ao sexo e à idade das
pessoas. Assim, uma cultura simples é própria de organizações sociais pequenas, a
exemplo de nossas comunidades ou tribos indígenas que ainda vivem um tanto isoladas.
Logo, cultura simples existe apenas em uma sociedade simples, classificadas por Levi-
Strauss como sociedades ou culturas frias.
3. Cultura complexa
Cultura complexa é uma cultura heterogênea, isto é, uma cultura da qual não é
possível ao indivíduo participar de todos os seus aspectos. São múltiplos os trabalhos que
devem ser realizados para se atender às necessidades cotidianas da vida das pessoas.
Assim, uma cultura complexa é formada por várias subculturas, levando-se em conta as
dimensões da sociedade. Por exemplo, temos no Brasil, uma cultura complexa formada
por diversas subculturas. Logo, ao contrário da cultura simples, a cultura complexa existe
nas sociedades complexas, denominadas por Levi-Strauss de sociedades ou culturas
quentes.
4.Subcultura
Embora, este conceito já tenha sido abordado no módulo anterior, vale ressaltar que
subcultura, alertam-nos todos os autores, não se refere a uma cultura inferior. Aliás, não
existe cultura inferior ou superior, o que existem são culturas diferentes. Uma subcultura
refere-se à cultura de uma parcela específica de pessoas dentro de uma determinada
sociedade. Assim, tem-se vários tipos de subculturas: etária, regional, profissional,
religiosa, de classe.
Uma subcultura etária refere-se ao modo de vida das pessoas conforme suas
idades; o jovem, por exemplo, tem um modo de vestir, um gosto musical, um jeito de se
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divertir, um ritmo de vida próprio de sua idade ou de seu tempo, diferente do adulto ou do
idoso.
Uma subcultura regional refere-se ao modo de vida próprio das regiões. O Brasil de
dimensões continentais apresenta várias culturas regionais; por exemplo, para ficarmos
no campo da culinária, enquanto o sulista aprecia churrasco ou chimarrão, o nordestino
preza a buchada de bode, o cuscuz e o acarajé.
Uma subcultura profissional refere-se ao jeito de ser desenvolvido pelos
profissionais de determinada área, inclui desde vestimentas próprias, um linguajar
específico até aspectos mais sutis como a forma de pensar, de sentir e de agir. Quanto
maior a divisão do trabalho na sociedade maior o número de subculturas profissionais.
Se a diferença é evidente entre o modo de ser de um médico e de um pedreiro, se
prestar atenção perceberá também a diferença do modo de ser médico e o modo de ser
advogado.
Uma subcultura religiosa refere-se ao modo de pensar, de sentir e de agir ou
ao modo de se comportar das pessoas conforme as crenças religiosas que ela cultiva.
Dois clássicos estudos sociológicos revelam este fato, “A ética protestante e o espírito
capitalista” de Max Weber e “O suicídio” de Émile Durkheim. Não se precisa ir tão longe,
basta observar as pessoas que conhecemos e que participam de Igrejas diferentes e
perceberemos as diferentes culturas ou os diferentes modos de ser.
Uma subcultura de classe refere-se ao modo de vida das pessoas que pertencem a
classes sociais diferentes. Óbvio, conforme a classe social as pessoas tem oportunidades
de vida diferentes e desenvolvem hábitos, costumes ou estilos de vida diferentes.
Enquanto o empresário vai trabalhar no seu carro importado ou até em seu helicóptero,
seus empregados se apertam no coletivo, viajando horas para chegar a tempo de bater
o ponto; estes diferentes ritmos de vida acabam por desenvolver modos de ser humano
também diferentes.
5. Contracultura
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A contra-cultura, como a análise da palavra indica, refere-se a uma cultura contrária
à cultura dominante. Diferentemente das subculturas que, de algum modo, afirmam os
valores da cultura complexa a que pertence, a contracultura é um modo de ser, ou seja,
de pensar, de sentir e de agir que contesta ou critica os valores dominantes em uma dada
cultura. O exemplo mais comum é a contracultura dos hippies nos anos de 1960, que com
seus cabelos grandes, vestimentas diferentes, falavam de paz e amor, reivindicando o fim
das guerras e contestando o materialismo do sonho americano.
6. Cultura dominante
Cultura dominante, apesar de alguns autores usarem a expressão nesta acepção,
não se confunde com a subcultura da classe social dominante ou com a cultura da elite.
Cultura dominante, neste estudo, refere-se ao conjunto dos elementos culturais que em
uma cultura complexa é comum a todas as subculturas que formam a cultura complexa. Na
verdade, a cultura dominante funciona como o cimento que articula e une as subculturas
numa única cultura que, então, é a cultura complexa. Tomando a cultura brasileira, quais
são os elementos que constituem a cultura dominante? Certamente compõem uma
cultura dominante no Brasil, a língua portuguesa, a religião do cristianismo, a história de
formação do Estado brasileiro, certos valores éticos e morais que dão forma à cultura
brasileira, uma típica cultura complexa.
7. Cultura popular
Cultura popular não se restringe ao folclore ou às diversões e criações artísticas
do povo. Cultura popular, embora se caracterize por uma presença forte de padrões
culturais tradicionais, refere-se de modo geral ao modo de vida do povo, isto é, ao modo
de pensar, de sentir e de agir próprio das classes populares, portanto, ao contrário do
conceito anterior que não correspondia à cultura erudita, cultura popular corresponde à
cultura vulgar.
8. Cultura de massa
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Cultura de massa é um fenômeno típico das sociedades complexas do tipo urbano-
industrial. Não é uma subcultura porque é constituída de elementos que perpassam todas
as subculturas de uma cultura complexa. Cultura de massa é composta de padrões
de comportamento e de pensamento que são difundidos para todas as subculturas
de uma cultura complexa através da chamada indústria cultural, ou seja, os meios de
comunicação de massa, notadamente, hoje em dia, o rádio, a televisão e a rede mundial
de computadores.
9. Cultura material e Cultura não material
Como já se viu, cultura material e cultura não material é apenas uma forma didática
de classificação da cultura, pois na prática não se separam, visto que correspondem a
dois aspectos, concreto e abstrato, da mesma realidade que é a cultura. Por exemplo, o
automóvel não representa apenas um elemento da cultura material mas, em razão dos
indispensáveis conhecimentos necessários para construí-lo e utilizá-lo, percebe-se nele
presente também elementos da cultura não material.
Processos e perspectivas culturais
10. Mudança cultural
Mudança cultural é qualquer alteração de traços, complexos, padrões ou mesmo
em toda uma cultura.
A mudança cultural pode ocorrer por força de fatores internos ou endógenos, a
exemplo da descoberta e da invenção, ou pode ocorrer por fatores externos ou exógenos,
como no fenômeno da difusão cultural, quando, por exemplo, novos elementos culturais
são agregados a um cultura a partir do contato entre culturas diferentes.
Se qualquer alteração na cultura caracteriza uma mudança cultural, o crescimento
cultural se dá quando os elementos novos, acrescentados a uma cultura, forem mais
significativos em relação aos anteriores que caíram em desuso e o declínio cultural
quando os elementos acrescentados são menos significativos que os anteriores que
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desapareceram.
Segundo Murdock, são quatro os fatores modificadores da cultura: inovações,
aceitação social, eliminação seletiva e integração. A inovação pode se dar de cinco
maneiras: variações; descoberta e invenção; tentativa; empréstimo cultural e incentivo. A
aceitação social é a adoção de um novo traço cultural através da imitação. A eliminação
seletiva é quando um traço cultural, torna-se inútil e cai em desuso. A integração é o
ajustamento progressivo entre os elementos de uma cultura.
11. Difusão cultural
Difusão cultural é o processo pelo qual elementos ou complexos culturais se
difundem, ou seja, passam de uma sociedade a outra. A difusão ocorre especialmente
através do empréstimo, por imitação ou estímulo; uma troca pacífica de pensamentos
e invenções entre os povos, sendo que quase sempre ocorrem modificações no traço
cultural incorporado, por força da reinterpretação do mesmo pela sociedade que o adota.
12. Endoculturação ou enculturação
Endo-cultur-ação, como a própria palavra sugere, é a ação pela qual nós
internalizamos e assimilamos a cultura, desde nossa primeira infância até a hora da morte,
embora, este processo seja obviamente mais intenso nas fases da infância, adolescência
e juventude da pessoa. Trata-se do essencial processo educativo, aquela socialização
que nos humaniza a medida que, pela cultura internalizada, adquirimos as condições de
participar da vida da sociedade.
13. Aculturação
A-cultur-ação, como sugere as partes da palavra, é a ação que implica de certo
modo uma negação da cultura. Na verdade é o processo cultural que ocorre quando
duas ou mais culturas diferentes entram em contato e entre elas se dá uma troca de
elementos culturais, modificando uma à outra e, não raro, até provocando o surgimento de
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uma nova cultura. O melhor exemplo para nós de aculturação é aquele que resultou na
formação da cultura brasileira a partir do encontro de três culturas diferentes: portuguesa,
africana e indígena. Houve um entrelaçamento daquelas matrizes culturais, onde, houve
claramente a dominação da cultura portuguesa, gerando, com o passar dos séculos,
uma nova cultura, também marcada por expressiva presença de elementos indígenas e
africanos.
Quando o empréstimo de elementos culturais de uma cultura para outra é
equilibrado, isto é, mais ou menos simétrico, então falamos de aculturação pacífica;
quando uma cultura doa mais do que recebe, como ocorreu com a cultura portuguesa
no processo de formação da cultura brasileira, então tem-se um exemplo de aculturação
conflituosa ou violenta.
14. Deculturação
A deculturação é o processo de substituição de determinado traço cultural quando
aquele entra em competição com um traço novo, ou seja, ocorre quando um determinado
elemento cultural, seja por força da evolução desencadeada pela invenção ou pela
difusão, cai em desuso e deixa de fazer parte do modo de vida das pessoas.
Deste modo, a deculturação está associada ao declínio ou decadência de um determinado
traço ou aspecto da cultura. Marconi (2001), neste caso, traz o exemplo da substituição
do fogão a lenha pelo fogão a gás.
15. Etnocentrismo
Uma palavra sobre as palavras que terminam em “ismo”. Todo “ismo” refere-se à
exacerbação ou exageramento de um determinado aspecto da realidade. Capitalismo,
por exemplo, refere-se a um sistema que supervaloriza o capital; cientificismo, refere-se
a uma tendência de se exagerar ou até absolutizar o valor e a importância da ciência
para se conhecer e explicar a realidade.
Assim, etnocentrismo significa aquela perspectiva em que se coloca a sua própria
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etnia, cultura ou visão, no centro como referência para avaliar as outras culturas. Trata-se
de uma supervalorização da sua própria cultura; uma atitude que não considera o ponto
de vista ou a lógica de outras culturas e que, no limite, nega a validade da cultura do outro,
tentando impor-lhe a sua própria cultura, como o único modo de vida correto.
Registra-se que, por força do processo de socialização ao qual todo ser humano
é submetido desde a primeira infância, o etnocentrismo é um processo “natural”, isto é, o
indivíduo ou o grupo social só pode ver e avaliar o mundo a partir de sua própria cultura,
de suas crenças, valores e normas. Tem-se aqui o etnocentrismo antropológico.
Entretanto, quando se exagera esta valorização da sua própria visão, e face ao
estranhamento do diferente, não se reconhece a dignidade e o valor do outro, achando-
se superior a ele, tentando lhe impor sua visão ou até mesmo eliminá-lo, tem-se o
etnocentrismo patológico ou doentio, a exemplo de todas as formas de racismo que se
conhece.
16. Relativismo cultural
Olha o “ismo” aqui de novo! Relativismo cultural é o contraponto do etnocentrismo.
O relativismo cultural implica pois naquela perspectiva ou postura em que se reconhece
que toda cultura possui sua própria história, sua própria lógica, portanto, sendo única
deve ser respeitada na sua particularidade. Daí decorre que não há culturas inferiores ou
superiores, mas apenas culturas diferentes.
O grande risco aqui é que o relativismo cultural leve a um relativismo ético, isto é, a
uma postura de total indiferença a toda e qualquer prática, mesmo àquelas violentas que
atentam contra a vida, tomando-as como sagradas simplesmente porque se harmonizam
com os padrões de determinada cultura, a exemplo de intervenções oficiais que sacrificam
vidas inocentes mundo a fora.
Ribeiro (1987), esposando uma certa perspectiva marxista, faz consistente crítica
ao relativismo cultural afirmando que, apesar de ser generoso ao enaltecer as culturas
mais simples, opondo-se ao etnocentrismo arraigado em toda sociedade humana, trata-
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se de um raciocínio limitado pois nega a possibilidade de comparar as culturas fazendo
sobre elas algum juízo de valor, enquanto, a seu ver, é plenamente possível, mediante
critérios objetivos, por exemplo quanto à eficácia de seu modo de adaptação à natureza
para prover a subsistência, afirmar que as culturas são mais ou menos desenvolvidas em
seu processo de evolução sócio-cultural.
17. Interculturalismo
“Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, a virtude está na praia. O interculturalismo,
mais uma vez o “ismo”, parte daquela convicção de que “todo ponto de vista é a vista
de um ponto”. Cada cultura é um ponto de vista que possui uma lógica própria. Nesta
perspectiva importa abrir-se ao diálogo cultural, ao processo de aculturação pacífica,
procurando compreender as razões de cada cultura, promovendo assim pedagógicas
mudanças culturais com base em valores discernidos no recíproco respeito dos diferentes
que engrandecem o ser humano favorecendo sua crescente humanização.
Nesta perspectiva não há risco ou ameaça, mas promessa e oportunidade de
desenvolvimento cultural, de enriquecimento recíproco do ser humano e de construção
participativa de uma ética universal e de uma política planetária de promoção da vida.
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Módulo 04 – Teorias da Cultura
Considerando que o objetivo de nosso estudo é compreender o ser humano;
considerando que, como já se viu, o ser humano se distingue dos animais não humanos
pelo fato de produzir e consumir cultura; considerando, pois a centralidade do conceito
de cultura para a antropologia, abre-se neste módulo um espaço para o estudo sobre
as teorias da cultura, buscando-se compreender melhor este fenômeno especificamente
humano.
Inicialmente, seguindo-se os passos do esquema de Marina de Andrade Marconi
(2001), apresentar-se-ão as teorias do evolucionismo, difusionismo, funcionalismo,
configuracionismo e estruturalismo, e, finalmente, uma breve consideração sobre a
abordagem de Roque de Barros Laraia (2001) sobre o tema.
Evolucionismo cultural
Considerando a história da antropologia, a primeira interpretação do fenômeno da
origem e desenvolvimento da cultura recebe o nome de evolucionismo. O evolucionismo é
a teoria segundo a qual toda a vida e o universo se desenvolveram graças ao crescimento
e às mudanças.
O evolucionismo cultural, especificamente, é a teoria segundo a qual a cultura se
desenvolve num processo contínuo e progressivo, seguindo uma sequencia básica de um
estágio a outro acumulativamente. Numa palavra, o evolucionismo cultural é a aplicação
da teoria geral da evolução ao fenômeno cultural.
É muito comum associar a ideia de evolução ao nome de Charles Darwin (1809-
1882), contudo, os primeiros evolucionistas antecederam a teoria da seleção natural de
Darwin. Herbert Spencer (1820-1903) foi o primeiro a usar a expressão “sobrevivência
do mais apto” fazendo Darwin modificar o título de sua obra de “Origem das Espécies”
para “Seleção Natural”. Maine (1822-1888) sustentou a tese de que o Estado resultara
da organização baseada no parentesco e vinculada a um determinado território. Augusto
Comte (1798-1857) defendeu a existência de três estágios na evolução da humanidade:
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o teológico, o metafísico e o positivo ou científico.
Os principais representantes do evolucionismo cultural no século XIX são Edward
Tylor (1832-1917) da Inglaterra e Morgan (1818-1881) dos Estados Unidos, e no século
XX, representando o neoevolucionismo, o também norte americano, Leslie White (1900-
1975).
Edward Tylor em seu livro “Primitive culture” (1865), dando uma nova conotação
ao termo cultura, considerava a humanidade um todo em crescimento, indo da infância
à maturidade. Considerava que os povos primitivos encontravam-se no estágio infantil e
as nações europeias no estágio da maturidade.
Morgan em seu “Ancient society” (1877) apresentou a tese de que a família humana
evoluiu passando por três estágios bem marcados: selvageria, barbárie e civilização; tais
estágios evolutivos que se subdividiam em outros eram demarcados por invenções e
caracterizados por um determinado conjunto de traços culturais.
O estágio antigo ou da selvageria iniciar-se-ia com a invenção do arco-e-flecha
pelos Polinésios e se estenderia até a fundição do ferro para uso de ferramentas, na
época dos gregos homéricos, quando teria início o estágio intermediário ou da barbárie,
que, por sua vez, estender-se-ia até a invenção do alfabeto fonético, com o uso da
escrita, marco do início do estágio recente da civilização.
O neoevolucionista Leslie A. White, entre outros, dá ênfase ao aspecto material e
técnico da cultura. Ele relaciona a evolução social com a evolução tecnológica, e seguindo
o esquema de Morgan (Selvageria, Barbárie e Civilização) adota o critério da quantidade
de energia que uma sociedade dispõe para delimitar os estágios de evolução: grosso
modo, a utilização da energia do próprio corpo caracterizando a selvageria; o uso da
energia originada da domesticação dos animais caracterizando a barbárie e o emprego
da energia da máquina a vapor, o estágio da civilização.
Três elementos básicos caracterizam a teoria do evolucionismo cultural: a
sucessão unilinear; o método comparativo e a noção de sobrevivência. A sucessão
unilinear consiste em um esquema hipotético segundo o qual toda a humanidade, mesmo
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estando dispersa em localidades isoladas, apresenta uma evolução cultural progressiva
e unilinear, ou seja, todos os grupos humanos percorreriam os mesmos estágios de
evolução, justificando-se as diferenças existentes entre eles pelo fato de uns estarem
mais adiantados do que outros na linha da evolução. O método comparativo consiste
em ordenar os fenômenos observados de acordo com os princípios estabelecidos e
interpretados em uma ordem cronológica, podendo então organizar e classificar os dados
observados em categorias sucessivas. A sobrevivência refere-se a elementos culturais
originários em épocas anteriores e que persistem ainda hoje.
Numa apreciação crítica da teoria da evolução cultural destacam-se aspectos
negativos e positivos. Por um lado as restrições mais acentuadas pelos críticos do
evolucionismo são: a não consideração do fator tempo e espaço no estudo da dinâmica
da cultura, ensejando análises descontextualizadas; o emprego indiscriminado e nem
sempre cuidadoso do método comparativo que levava a conclusões questionáveis; e
o conceito de sobrevivência que às vezes inibia o trabalho de campo do investigador.
Por outro lado, destacam-se as contribuições importantes do evolucionismo: a formação
propriamente dita da antropologia como ciência; o desenvolvimento de inúmeros conceitos,
inclusive o de cultura, como se viu; o enriquecimento do vocabulário com vários termos; o
estabelecimento do princípio da continuidade e o desenvolvimento ordenado da cultura.
Por fim, compreendendo-se a lógica do evolucionismo cultural, percebe-se como
os princípios desta teoria ou seus elementos básicos ensejam o etnocentrismo, cujo
significado já se viu no módulo anterior.
Difusionismo
A teoria do difusionismo explica o desenvolvimento cultural através do processo de
difusão de elementos culturais de uma cultura para outra. Surgiu nas primeiras décadas
do século XX como uma reação ao evolucionismo do século XIX.
Para o difusionismo as semelhanças e diferenças culturais entre os povos devem-se
muito mais à presença ou ausência dos processos de difusão do que às raras invenções.
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Conhecido também como historicismo, o difusionismo como corrente antropológica
relevante nas primeiras décadas do século XX pode ser visto em três perspectivas de
pesquisa: o difusionismo inglês, o difusionismo alemão-austríaco e o difusionismo norte-
americano.
A escola difusionista inglesa, também chamada de heliocêntrica, representada
por G. Elliot Smith e W.J. Perry, desenvolveu ao extremo as ideias da pouca criatividade
humana; acreditava que a cultura do mundo todo, em consequência da difusão cultural,
era idêntica. Impressionados com as descobertas arqueológicas no Egito, os difusionistas
ingleses julgavam que aí tivesse sido o berço da civilização. O Egito teria sido o grande
sol cultural que se irradiara por todas as regiões do globo, daí a escola difusionista ser
chamada de heliocêntrica.
A escola difusionista alemã-austríaca, também chamada de histórico-cultural
ou de histórico-geográfica, representada por Friedrich Ratzel, Willi Roy, Fritz Grabner
e Pe. Wilhem Schmidt, caracteriza-se por uma visão pluralista da origem da cultura,
aceitando vários locais de evolução, donde se originou a totalidade da mesma. A
principal contribuição do difusionismo alemão-austríaco é a noção de “círculos culturais”
kulturcreise. Assim, a cultura humana ter-se-ia desenvolvido na Ásia e daí se difundido
para as mais longínquas partes do mundo, em círculos cada vez mais amplos, através
das imigrações.
A escola difusionista norte-americana, também chamada de historicismo,
representada por Franz Boas, Clark Wissler e Alfred L. Kroeber, caracteriza-se por
focalizar a atenção antropológica na análise específica da história cultural; condição
para se compreender uma determinada cultura. Caracteriza-se ainda por desenvolver
conceitos como traço cultural, complexo cultural, padrão cultural e área cultural e por
optar pelo estudo de áreas limitadas e pequenas, valorizando numa perspectiva histórica
a invenção e a difusão na constituição das culturas que então deveriam ser vistas como
diversas e individuais. Assim, os representantes do difusionismo norte-americano são
os precursores do relativismo cultural, conceito este também já estudado no modulo
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anterior.
Os postulados básicos do difusionismo são: o método histórico que possibilita a
reconstituição histórica pela observação do passado e do presente, estabelecendo-se
links significativos; a pesquisa de campo que é altamente aplicada para coleta de dados
e a formulação de inúmeros conceitos que enriqueceram a teoria antropológica.
Uma apreciação crítica do difusionismo destaca aspectos negativos e positivos.
São aspectos negativos do historicismo: excessivo tratamento unitário da cultura;
manipulação estatística dos traços culturais, abusando-se de um lógica mecanicista; e o
determinismo cultural ensejando que o indivíduo é um elemento passivo no processo. São
aspectos positivos do historicismo: valorização do trabalho de campo e desenvolvimento
da metodologia e da técnica da observação; a importância atribuída aos estudos de
culturas específicas, conhecendo assim suas respectivas identidades; o estabelecimento
de normas críticas para a reconstituição histórica; por fim, uma criteriosa consideração da
interação de forças envolvidas no processo de desenvolvimento e transformação cultural.
Funcionalismo
O funcionalismo, uma teoria antropológica da década de 30, do século passado,
diferentemente do evolucionismo e do difusionismo, preocupava-se não mais com a
origem ou com a história da cultura, mas com a lógica do sistema cultural focalizado,
ou seja, preocupava-se com a visão sincrônica, sistêmica ou orgânica da sociedade,
procurando conhecer a cultura em um dado momento, bem como a função dos elementos
que a compõem.
Sobre o funcionalismo, Marconi (2001) cita Leslie White:
“A essência, a natureza fundamental ou característica do funcionalismo pode ser exposta com rapidez e simplicidade: as sociedades humanas e suas respectivas culturas existem como todos orgânicos, constituídos de partes interdependentes. As partes não podem ser plenamente compreendidas separadamente do todo, e o todo deve ser compreendido em termos de suas partes, suas relações umas com as outras e com o sistema sociocultural em conjunto”. (LESLIE WHITE apud MARCONI, 2001, 263)
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Estudos Antropológicos e Políticos
Os pioneiros da análise funcionalista da realidade sócio-cultural foram Herbert
Spencer e Émile Durkheim. A estes sociólogos seguiram antropólogos como: Malinowski
(1884-1942) e Radcliffe-Brown (1881-1955), formuladores da teoria funcional para o
estudo da cultura.
Malinowski em “Uma teoria científica da cultura” (1944) expõe os fundamentos do
funcionalismo. Partindo dos conceitos de natureza humana e de cultura, desenvolveu a
teoria das necessidades humanas que, uma vez atendidas, dão origem à cultura.
As necessidades humanas, consideradas universais, segundo Malinowski, são
de três ordens: as necessidades primárias ou biológicas, a exemplo da nutrição e da
excreção; as necessidades derivadas ou instrumentais, a exemplo da organização
econômica; e as necessidades integrativas ou sintéticas, a exemplo da religião ou da
arte.
Assim, cada parte da cultura, com suas instituições, tem sua forma específica e
desempenha uma função determinada para atendimento das necessidades humanas,
não existindo isoladamente.
Radcliffe Brown, a partir dos conceitos de sociedade e de sistema, faz uma
abordagem estrutural-funcional e considerando a cultura como um sistema adaptativo,
enfatiza a importância da função e da estrutura social como contribuintes para a
manutenção do equilíbrio da sociedade, havendo, segundo sua visão, sociedades
eunômicas e disnômicas, ou seja, sociedades equilibradas, com uma integração social
saudável e sociedades caracterizadas pelo conflito e pela não integração, respectivamente.
Segundo Marconi (2001) são elementos teóricos básicos do funcionalismo: a
cultura é um todo sistêmico que pode ser estudado em um dado momento; a cultura
constitui-se de partes interdependentes que se relacionam entre si e com o sistema
sociocultural em conjunto; o conceito de natureza humana e cultura levaram à concepção
de um mundo natural e um mundo artificial em correspondência mútua; afirma-se a
fundamentalidade da teoria das “necessidades”; valoriza-se a função desempenhada
pelos elementos culturais; as instituições e as estruturas sociais são unidade de análise
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1Estudos Antropológicos e Políticos
do fenômeno cultural.
Assim, o funcionalismo constituiu-se numa reação positiva ao evolucionismo e
ao difusionismo, valorizando mais ainda a prática de pesquisa de campo, introduzindo-
se também o relativismo cultural, reconhecendo-se a lógica própria das sociedades e
culturas diferentes.
Configuracionsimo
O configuracionismo pode ser considerado um prolongamento do difusionismo
norte-americano em razão de seu interesse por culturas particulares. Destaca a integração
e a singularidade do todo, tendo por tema básico a integração da cultura.
O configuracionismo concebe a cultura como um conjunto integrado de elementos
encontrados em determinado tempo e espaço, entrelaçados e formando um todo coeso e
uniforme, de tal modo que se uma das partes for afetada todas as outras resentem.
Os principais representantes do configuracionismo são Edward Sapir que defendeu
a ideia de que todo comportamento tem uma configuração inconsciente e que todo
comportamento cultural é simbólico; e Ruth F. Benedict para quem a cultura é um modelo
mais ou menos consistente de pensamento e ação, com objetivos característicos que
pautam a consolidação da experiência de um povo, integrando o comportamento e as
instituições de uma dada sociedade.
Estruturalismo
O estruturalismo é a teoria antropológica mais recente; desenvolveu-se
paralelamente ao funcionalismo e teve seu apogeu nas décadas de 40 e 50 do século XX.
O estruturalismo tem mais pontos de convergência com o funcionalismo do que de
divergência. A visão sincrônica, sistêmica e globalizante da cultura, a adoção do termo
estrutura e as influências da escola francesa são algumas das principais convergências.
O principal representante do estruturalismo é o Belga, Claude Lévi-Strauss (1908),
e , segundo Marconi (2001), é um antropólogo dentre os mais proeminentes e discutidos.
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O conceito de estrutura é, naturalmente, o conceito central do estruturalismo.
Entendendo-se por estrutura o conjunto de elementos que formam um sistema, um todo
ordenado; um modelo de análise construído a partir da observação das relações sociais.
Assim, não raro se confundem as noções de estrutura social e relações sociais, contudo,
as relações sociais são a matéria-prima para elaboração dos modelos que evidenciam
a estrutura social a qual reflete a realidade social ou cultural, seu funcionamento e as
alterações a que está sujeita.
Os modelos para serem de fato estruturas devem satisfazer aos seguintes
quesitos: possuírem um caráter de sistema; pertencerem a um determinado grupo de
transformações; apresentarem previsibilidade de reação; funcionarem de modo a explicar
todos os fatos observados.
Lévi-Strauss foi grandemente influenciado em suas elaborações teóricas pelo
pensamento de Freud e de Marx, especialmente pelas noções de inconsciente e de
ideologia.
Lévi-Strauss supervaloriza a natureza e a ordem natural ao avaliar as culturas.
Para ele, a história é produto da natureza. Enquanto Marx, embora pessimista em face
da exploração, valoriza a história em detrimento da natureza e a considera o móvel de
aprimoramento da condição humana.
Para melhor perceber as estruturas mentais inconscientes básicas e, então,
compreender os modelos conscientes, Lévi-Strauss fala em culturas ou sociedades
frias e culturas ou sociedades quentes. Sociedades frias, como já se viu, são aquelas
sociedades simples, mais próximas do estado de natureza, com contingente populacional
restrito e pequeno dinamismo cultural, oferecendo assim melhores condições para a
identificação das estruturas mentais míticas e inconscientes. Sociedades quentes são
as sociedades complexas que já se sabem históricas, industrializadas, todas afetadas
pela civilização e pelo progresso, cada vez mais distantes da ordem natural.
Os modelos inconscientes são as estruturas mentais inconscientes básicas
que, segundo Lévi-Strauss, explicam as causas que determinaram as representações
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conscientes, concretas de um grupo humano.
Os modelos conscientes são as ideias, regras, crenças e valores que vigem em uma
sociedade; constituem a parte da cultura facilmente observada, seja material ou imaterial,
que retém atrás de si os modelos inconscientes que lhe deram origem. Conhecer estes
modelos inconscientes é o desafio a que se propôs o estruturalismo straussiano.
Conforme Marconi (2001), os elementos teóricos básicos do estruturalismo, em
síntese, são os seguintes: visão sincrônica e sistêmica da cultura; visão globalizante do
fenômeno cultural, convicto de que o conhecimento do todo leva à compreensão das
partes; adoção das noções de estrutura social e relações sociais; utilização de modelos
na análise cultural; adoção das estruturas mentais inconscientes como unidade de análise
e, por fim, a compreensão ampla da realidade cultural.
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Estudos Antropológicos e Políticos
Resumo da Unidade
Nesta unidade, vimos como se deu a evolução da definição do objeto de estudo
da antropologia cultural sob a influência da metodologia das ciências da natureza: das
sociedades primitivas a um novo olhar sobre o homem em sua integralidade. Vimos algo
sobre algumas polêmicas que atravessam a antropologia cultural, desde a concepção
de seu nome, antropologia ou etnologia, passando pelos questionamentos sobre sua
cientificidade e culminando com a querela acerca de sua aplicabilidade.
Contemplou-se também a reflexão sobre o fenômeno e o conceito de cultura,
desde sua natureza material e imaterial, histórica e social, pensando-se sobre os seus
componentes cognitivos: conhecimentos, crenças, valores, normas e símbolos, bem
como sobre sua estrutura, desde o traço cultural, passando pelo complexo, pelo padrão
e chegando à configuração e área culturais.
Sempre resgatando o conceito central da antropologia cultural, ampliaram-se
os estudos para os conceitos afins de cultura: subcultura, aculturação, etnocentrismo,
relativismo cultural e interculturalismo.
Por fim, para melhor compreensão do antropológico conceito de cultura, dedicou-
se a conhecer as teorias principais sobre a cultura: o evolucionismo de Edward Tylor; o
difusionismo de Franz Boas; o funcionalismo de Malinovski; o configuracionismo de Ruth
Benedict e o estruturalismo de Levi-Strauss.
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UNIDADE 2 – O SER HUMANO, UM SER CULTURAL II Nesta unidade será apresentada uma visão panorâmica dos conteúdos do livro
“Cultura, um conceito antropológico”, da autoria de Roque de Barros Laraia, onde se
retomará, sob um novo enfoque, temas contemplados na unidade I, a exemplo da relação
cultura e natureza; conceitos afins de cultura e teorias da cultura; depois, à luz de conceitos
anteriormente vistos, dedicar-se-á, a uma visão da cultura brasileira, nosso contexto
existencial e palco de nossa atuação profissional, procurando perceber e compreender
suas principais características.
Ademais, espaço considerável será dedicado ao estudo da histórica participação
dos negros e indígenas na formação da cultura e do povo brasileiro, bem como ao
estudo da situação dos negros e indígenas no Brasil; uma abordagem que despertará
uma visão crítica sobre aspectos fundamentais da vida brasileira que frequentemente
são escamoteados conforme interesses das elites de nossa sociedade, alienando-nos de
nossa realidade.
Módulo 05 – Cultura, um conceito antropológico
Introdução
Posto que cultura é o que distingue o ser humano de outros animais, depois de
tudo o que vimos nos módulos anteriores, propomos aqui uma visão panorâmica do
pequeno grande livro “Cultura: um conceito antropológico” da autoria de Roque de Barros
Laraia, publicado em 1986, e que desde então tem sido leitura obrigatória para todos
quantos querem se iniciar no misterioso horizonte da cultura que envolve o ser humano
do nascimento à morte.
Para não se sacrificar a visão geral da citada obra, admitimos que alguns temas já
tratados nos módulos anteriores reaparecerão aqui, mas cuidaremos de abordá-los sob
novo aspecto.
Iniciando com uma palavra sobre o autor, Roque de Barros Laraia, autor de Índios
e castanheiros (com Roberto da Mata, 1976), Tupi, índios do Brasil atual (1987) e Los
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índios de Brasil (1993) e de inúmeros artigos publicados em revistas especializadas,
foi antropólogo do Museu Nacional da UFRJ e professor titular de antropologia da
Universidade de Brasília.
Na obra em tela, o autor faz uma abordagem didática, fluente e agradável,
propondo iniciar seus leitores na compreensão do conceito de cultura, tema fundamental
da antropologia. Em duas partes, subdivididas em onze pequenos capítulos, encontram-
se, respectivamente, um breve histórico do desenvolvimento do conceito de cultura,
desde os iluministas até autores contemporâneos, e uma abordagem da influência da
cultura no comportamento social e seu peso na diversificação da humanidade. Ademais,
ao final do livro encontram-se dois relevantes textos que ilustram sua temática.
Da natureza da cultura ou da natureza à cultura
O autor introduz a primeira parte de seu trabalho anunciando o clássico dilema
da antropologia formulado por Clifford Geertz: a “conciliação da unidade biológica e a
grande diversidade cultural da espécie humana” (LARAIA, 2001,10). Na esteira deste
dilema mostra como autores da antiguidade à modernidade ocuparam-se em descrever
os diversos modos de vida das gentes que habitam o planeta e enumera uma série
de costumes que revelam a diversidade cultural mesmo dentro do chamado mundo
civilizado.
Esta diversidade pode ser exemplificada pelo sentido do trânsito na Inglaterra que
é oposto ao sentido do trânsito em nossa cultura; pelas rãs tão apreciadas na culinária
francesa, enquanto em muitos outros causa nojo; o nudismo praticado em alguns países
em contrate com a vestimenta das mulheres nos países islâmicos que usam a burca;
o sentido da gravidez e do ato de parir nas regiões do norte do Brasil, que destoa das
outras regiões: por exemplo, quando uma mulher dá à luz no nordeste brasileiro, diz-se
que a mulher descansou, enquanto, em nossa região sudeste esta expressão é reservada
para dizer que alguém faleceu depois de um certo período em sofrimento, e, assim, são
praticamente infinitas as diferenças entre os modos de vida dos povos.
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No primeiro capítulo da primeira parte do livro, resgatando o determinismo
biológico como a teoria segundo a qual diferenças biológicas e genéticas seriam a causa
da pluralidade cultural da espécie humana, registra-se como os antropólogos hoje estão
convencidos de que as diferenças biológicas, genéticas ou sexuais não são determinantes
das diferenças culturais, estas são antes determinadas pela história de cada povo e pelo
processo de endoculturação ou socialização. Um dos exemplos utilizados por Laraia é
aquele da divisão do trabalho em tribos indígenas do Xingu: a tarefa do transporte de água
para a aldeia é uma atividade feminina. Considerando que carregar cerca de vinte litros
de água sobre a cabeça, demanda um esforço físico muito maior do que o necessário
para manejo de um arco, arma de uso exclusivo dos homens, percebe-se que a divisão
de tarefas não obedece a uma racionalidade biológica, mas é definida culturalmente.
Neste sentido, quantas atividades em nossa cultura, até pouco tempo eram exclusivas
dos homens?
No segundo capítulo, para demonstrar a fragilidade da tese do determinismo
geográfico que consiste em afirmar que as forças da natureza exercem uma ação mecânica
sobre a humanidade puramente receptiva, o que justificaria a pluralidade de culturas, o
autor cita três exemplos, comparando aspectos da cultura dos Esquimós com aspectos
da cultura dos Lapões; aspectos da cultura dos índios Pueblo com a cultura dos índios
Navajo e confrontando os modos de vida dos índios do parque Xingu, argumenta que
aqueles pares, apesar de viverem no mesmo ambiente geográfico desenvolveram culturas
ou modos de vida distintos, o que prova a limitação da influência da geografia sobre a
vida humana. Reporta-se aqui apenas o primeiro exemplo dado por Laraia: Esquimós
e Lapões, vivendo ambos na calota norte do planeta, em temperatura situada a muitos
graus abaixo de zero, tem modos de vida distintos. Enquanto os Esquimós fazem suas
casas de blocos de gelo, forradas com peles de animais, os Lapões vivem em tendas de
peles de rena, sem falar que, enquanto estes são excelentes criadores de renas, aqueles
se limitam a caçá-las, de modo que o determinismo geográfico não procede.
No terceiro capítulo, o autor apresenta os antecedentes do conceito de cultura,
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Estudos Antropológicos e Políticos
afirmando que antes de Edward Tylor, em 1871, elaborar a primeira definição do conceito
de cultura, a ideia de cultura já estava de certo modo presente em John Locke que, em
1690, refutava as ideias inatas de Descartes, alegando que o ser humano adquire os
conteúdos mentais a partir de suas experiências vitais, de modo que ao nascer nossa
mente é como uma folha em branco. A ideia de cultura também já estava presente em
Jacques Turgot, no século XVIII, que afirmara ser o homem capaz de reter suas ideias
e transmiti-las para os seus descendentes e, mesmo, em Jean Jacques Rousseau que,
em 1775, atribuiu um grande papel à educação, chegando mesmo a acreditar que pela
educação os grandes macacos poderiam se humanizar.
No quarto capítulo, para evidenciar o desenvolvimento do conceito de cultura,
o autor, a partir da definição de Edward Tylor (1832-1917), “cultura como um todo
complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer
outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”
fala da influência do evolucionismo sobre Tylor que afirma a igualdade da natureza
humana e explica a diversidade como o resultado da desigualdade de estágios
existentes no processo de evolução. Desta concepção etnocêntrica do evolucionismo
cultural de Tylor, o autor passa ao relativismo cultural de Franz Boas (1858-1949), para
quem a antropologia deve reconstruir a história dos povos e perceber que cada cultura
segue os seus próprios caminhos em função dos diferentes eventos históricos que
enfrentou. Por fim, trata de Alfred Kroeber (1876-1960) que demonstrou em seu artigo “O
Superorgânico” como a humanidade, graças à cultura, distanciou-se do mundo animal.
A cultura, mais do que a herança genética, determina o comportamento do homem; é
um equipamento superorgânico pelo qual o homem se adapta aos diferentes ambientes
ecológicos, tornando a terra inteira seu habitat natural. Daí, a importância da educação
ou do processo de endoculturação pelo qual a cultura se propaga e se enriquece ao
longo da história. Ao ensejo, registra-se a pertença de Franz Boas e Alfred Kroeber à
escola antropológica difusionista.
No quinto capítulo, enfrentando uma das primeiras preocupações da antropologia,
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2Estudos Antropológicos e Políticos
a questão da origem da cultura, LARAIA (2001) resume como antropólogos físicos a
exemplo de Richard Leackey, Roger Lewin, David Pilbeam e Kenneth Oakley associaram o
surgimento da cultura ao crescimento do cérebro, modificado pelo processo evolutivo dos
primatas, desde a vida arborícola ao bipedismo; e como antropólogos sociais, a exemplo
de Claude Lévi-Strauss e Leslie White, afirmam que a cultura surgiu no momento em
que o homem convencionou a primeira norma (proibição do incesto) e quando o cérebro
do homem foi capaz de gerar símbolos, reciprocamente; supondo tanto os antropólogos
físicos como os sociais que a cultura aparecera de repente, que teria havido um ponto
crítico em que a cultura eclodira como um acontecimento súbito. Esta teoria do ponto
crítico é, hoje, uma teoria superada, visto que a teoria mais aceita é a de que a cultura
se desenvolveu simultaneamente com o equipamento biológico, pois a natureza não
age por saltos. Neste sentido, Laraia (2001) cita Clifford Geertz em “A transição para a
humanidade” que, a partir das evidências em relação ao Australopiteco Africano, o qual
existiu há mais de 2 milhões de anos, e possuía um cérebro 1/3 menor que o nosso, mas
já manufaturava objetos e caçava pequenos animais; concluiu que o ser humano não
só produz a cultura, mas é por ela produzido; visto que o seu cérebro se desenvolveu
também a partir da cultura.
No sexto e último capítulo da primeira parte de seu livro, Laraia (2001) trata do tema
das teorias da cultura servindo-se de um artigo de Roger Keesing intitulado “Theories
of culture”, apresentando não apenas sua classificação das teorias modernas sobre
cultura, mas reproduzindo suas críticas a elas; uma abordagem que resume as teorias
antropológicas apresentadas no módulo anterior.
Numa síntese apertada, as teorias modernas sobre cultura são classificadas
em teorias que, por um lado, consideram a cultura como um sistema adaptativo das
comunidades humanas aos seus embasamentos biológicos que inclui organização
econômica, sociopolítica e ideológica, como defendem os autores neoevolucionistas, a
exemplo de Leslie White; por outro lado, teorias idealistas de cultura que se subdividem
em três diferentes abordagens: 1ª) cultura como sistema cognitivo, ou seja, cultura como
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Estudos Antropológicos e Políticos
um sistema de conhecimento que inclui tudo que alguém tem de conhecer para operar
em uma dada sociedade, conforme pensou W. Goodnough; 2ª) cultura como sistemas
estruturais, ou seja, um sistema simbólico que é uma criação acumulativa da mente
humana, embasadas nas regras inconscientes do pensamento humano, conforme pensou
o estruturalista Claude Lévi-Strauss; por fim, 3ª) cultura como sistemas simbólicos, ou
seja, cultura não é um complexo de comportamentos concretos, mas um conjunto de
mecanismos de controle, ou seja, programas, planos, receitas, regras e instruções
para governar o comportamento humano, conforme pensaram Clifford Geertz e David
Schneider.
Como opera a cultura
Na segunda parte de seu livro o autor, em cinco capítulos, desenvolve uma
reflexão pretendendo mostrar como a cultura opera influenciando a vida dos humanos. A
cultura que é dinâmica, possuindo uma lógica própria, define a diferenciada participação
dos indivíduos e condiciona a visão de mundo do ser humano, interferindo até no plano
biológico de sua vida.
No primeiro capítulo desta parte, Laraia (2001) começa citando Ruth Benedict para
quem a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo. Daí, a floresta
amazônica ser vista de modo muito diferente por um antropólogo e por um índio tupi; daí,
as reações depreciativas face àqueles que agem fora dos padrões convencionados pela
cultura como, por exemplo, os homossexuais. O modo de ver o mundo, as apreciações
de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas
corporais são assim produtos de uma herança cultural. O modo de rir, os motivos do riso,
o sentar-se à mesa, as técnicas de obstetrícia, ou seja, as formas ou posições adotadas
pelas mulheres ao darem à luz seus bebês; as formas múltiplas de alimentação, enfim, o
comportamento humano em geral depende do aprendizado que se dá no âmbito de uma
determinada cultura; um aprendizado que ocorre desde a primeiríssima infância, quando
se inicia o processo de endoculturação, ou seja, internalização e assimilação, através da
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convivência social, dos hábitos, costumes, valores e crenças que vão formando a nossa
identidade e nossa visão do mundo. Esta é a condição do ser humano que o faz ver o
mundo através de sua própria cultura, levando-o a crer que o seu modo de vida é o mais
correto e o mais natural, enquanto, muitas vezes, percebe as práticas diferentes, próprias
de outras culturas, como absurdas, deprimentes e imorais. Tal tendência, como se viu em
módulos anteriores, é chamada etnocentrismo que em muitos casos chega à xenofobia,
ou seja, o medo ou estranheza em relação ao diferente ou estrangeiro, gerando, não raro,
numerosos conflitos sociais.
No segundo capítulo o autor relaciona vários exemplos de como a cultura opera
condicionando o plano biológico da vida humana, inclusive decidindo sobre a vida e a
morte dos membros de um sistema social. A apatia, reação oposta do etnocentrismo,
que consiste no abandono da crença nos valores de sua própria cultura, caindo assim
num estado de anomia que leva ao suicídio ou a algum mal moral, como o banzo que
acometera, por exemplo, os africanos arrancados de sua pátria e escravizados no Brasil.
Outros exemplos: a crença dos indios Kaapor, segundo a qual quando uma pessoa vê
um fantasma ela logo morrerá; as mortes causadas por feitiçaria conforme a etnografia
africana; as doenças psicossomáticas; a sensação de fome ao meio dia, em nossa cultura;
e a cura de doenças reais ou imaginárias através de rituais xamânicos ou celebrações
religiosas; todos estes são exemplos do poder de influência da cultura sobre o plano
biológico da vida humana.
No terceiro capítulo, Laraia (2001) mostra que tanto nas sociedades complexas
como nas simples a participação dos indivíduos na cultura é limitada. Ninguém é capaz de
participar de todos os elementos de sua cultura. Fatores como o sexo, a idade e mesmo o
processo de socialização limitam a participação dos indivíduos na cultura. Contudo, há um
mínimo de participação a que o indivíduo deverá ter acesso a fim de permitir-lhe articular-
se com os demais membros da sociedade, pois todos necessitam saber como agir em
determinadas situações e como prever o comportamento dos outros. Dizer “por favor”
ou “muito Obrigado”, por exemplo, faz parte dos padrões de comportamento em nossa
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cultura, dos quais todos devemos participar pois não se os rompe impunemente. Como
já se viu, em nossa sociedade de cultura machista a participação da mulher em vários
aspectos de nossa cultura, até pouco tempo, era vedada; observa-se, por exemplo, a
grande sensação gerada com a eleição da primeira presidenta do Brasil.
No quarto capítulo vê-se que não há cultura lógica e cultura pré-lógica. Toda
cultura possui uma lógica própria e julgar elementos de uma determinada cultura a
partir de critérios estranhos àquela constitui prática etnocêntrica grotesca. Apoiando-se
em Lévi-Strauss, Laraia (2001) exemplifica como as concepções culturais dependem
da disponibilidade de instrumentos de observação que condicionam as associações
lógicas. Daí, a procedência do geocentrismo (a terra como centro) para o homem
medieval que não dispunha dos meios de observação que possibilitaram a construção
da lógica heliocêntrica (o sol como centro); a pertinência da possessão de seres
sobrenaturais malignos e dos consequentes exorcismos para a cura de doenças ou
das diversas explicações sobre a reprodução humana para certos grupos humanos
que não conhecem os modernos equipamentos ópticos. Destaca-se aqui a diferente
concepção da reprodução humana, base da estrutura do parentesco, dos índios Jê, do
Brasil. Para eles não basta uma relação sexual para formar o novo ser. São necessárias
várias relações para que a criança seja totalmente formada e se ocorrer de a mulher
se relacionar com outros homens naquele período, todos serão considerados pais da
criança e agirão socialmente como tal (Laraia,2001,90). Assim, a rigor, a cultura é uma
forma de classificação da realidade que só pode ser compreendida a partir de sua lógica
específica, de tal modo que, segundo Rodney Needham, citado por Laraia (2001), um
etnólogo, ao iniciar o seu estudo de um povo estranho, pode ser comparado a um cego
de nascença que sofre uma cirurgia e começa a ver, ou seja, não consegue ver direito é
necessário ir se familiarizando pouco a pouco com a nova realidade vislumbrada.
No quinto capítulo, aborda-se a questão do dinamismo da cultura. Toda cultura está
em contínua transformação. Propondo-nos comparar as observações de um imaginário
missionário jesuíta do século XVI, no Brasil, com aquelas de um antropólogo atual sobre
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o comportamento dos indígenas e das formigas saúvas, o autor leva-nos a concluir que
as formigas não mudam seus hábitos enquanto os índios, por mais isolados que estejam,
questionam os seus próprios hábitos e os modificam. Entretanto, é amplo o consenso de
que aquelas culturas de povos ou tribos que vivem mais isoladas mudam mais lentamente
do que aquelas que mantém contados mais intensos com as civilizações, assim como
se sabe que as mudanças em uma cultura podem ocorrer a partir de fatores internos,
como invenções do próprio povo, ou a partir de fatores externos, como o contato com
culturas diferentes que ocasionará a aculturação. Analisando o fenômeno da mudança
o autor contempla a moda, o padrão cultural do baile dos anos 50, padrões de beleza,
regras morais acerca do comportamento sexual das mulheres brasileiras e o conflito de
gerações.
Ao final do livro, a título de anexo, Laraia (2001) faz uma longa citação do artigo
“O superorgânico” de Alfred Kroeber, onde se refere a duas experiências narradas por
Heródoto, uma sobre o rei egípcio que pretendia descobrir qual era a língua originária da
humanidade e aquela outra que fala do imperador mongol Akbar que pretendia averiguar
qual era a religião natural da humanidade, e, partindo da incongruência do rei egípcio e da
frustração do imperador mongol, concluiu LARAIA citando Clifford Geertz para quem não
existe uma natureza humana independente da cultura, pois é esta com seus sistemas de
símbolos significantes que orientam a vida humana.
Encerrando sua obra, com o que chamou de anexo 2, para ilustrar como a difusão
da cultura, apesar dos exageros das escolas antropológicas difusionistas, realmente
contribuiu para o desenvolvimento atual da humanidade, Laraia (2001) cita um belíssimo
e irônico texto do antropólogo Ralph Linton sobre o começo do dia do homem americano,
desde o seu despertar sobre um leito construído segundo padrão originário do Oriente
Próximo até o seu agradecimento a uma divindade hebraica, numa língua indo-europeia
pelo fato de ser cem por cento americano. Vale a pena lê-lo na íntegra!1
1 LARAIA, Roque de Barros. Cultura, um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Jorge Za-har Editor, 2001, pp. 105-108.
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Estudos Antropológicos e Políticos
Módulo 06 – A cultura brasileira
Introdução
Como se define a cultura brasileira? Cultura brasileira é algo que existe, mesmo
na multiplicidade de nossas manifestações regionais? Não seria o caso de falarmos de
culturas brasileiras, no plural, assumindo assim, certo dilaceramento de nossa identidade?
O que caracteriza a cultura brasileira, no singular?
Regis de Morais trabalha essas questões a partir da seguinte afirmação: “abordar
uma realidade cultural é tomar para estudo exatamente a transformabilidade de algo
dinâmico que se cumpre na dialética entre continuidade e ruptura, inovação e tradição”
(MORAIS, 1989, 11).
O Brasil de hoje pouco recorda suas origens coloniais. Entretanto, embora as
coisas tenham mudado muito, na descontinuidade das transformações, encontramos a
insistência de um rosto nacional que paulatinamente amadurece e se mostra.
Uma cultura constituída de subculturas insinua o dilaceramento de sua identidade
cultural. Contudo, uma análise mais profunda nos possibilita descobrir as características
estruturadoras que articulam as subculturas, constituindo uma cultura complexa, como é
o caso da cultura brasileira.
Segundo Morais (1989), para se falar em culturas brasileiras seria necessário
que as diferenças entre as subculturas que constituem a cultura brasileira fossem mais
radicais do que são, e que as semelhanças básicas entre elas fossem menos evidentes.
Deste modo, entre tantas discussões acerca do conceito de cultura brasileira, Morais
(1989) estabelece alguns referenciais para sua concepção de cultura brasileira no
singular: temos uma história peculiar; somos desiguais de culturas até bem vizinhas;
vivemos elementos básicos de assemelhação das regiões, e temos produções ideológicas
consideradas peculiares; falamos o mesmo idioma, apesar da vastidão do país; o que
aponta para condições mais ou menos comuns de elaboração de uma visão de mundo.
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2Estudos Antropológicos e Políticos
A identidade cultural brasileira
A compreensão da identidade cultural brasileira, ou seja, uma resposta à pergunta
quem somos nós brasileiros, depende da compreensão da evolução etnocultural brasileira.
Para tanto é necessário ter sempre em vista os conceitos de cultura, aculturação e
etnocentrismo.
Tomando cultura no sentido antropológico, ou seja, como modo de vida de um povo,
este sentido implica, na perspectiva de Morais (1989), que se inspira em Darci Ribeiro,
aquele tecido entretecido pelos fios concernentes a sistemas adaptativos, associativos
e ideológicos, isto é, crenças, valores, regras, estruturas, instituições e técnicas que
perfazem os modos desenvolvidos para organização e cultivo da vida na sociedade
brasileira.
Darcy Ribeiro (1987), em sua obra “Os Brasileiros”, define:
“cultura é a herança social de uma comunidade humana, representada pelo acervo coparticipado de modos padronizados de adaptação à natureza para o provimento da subsistência, de normas e instituições reguladoras das relações sociais e de corpos de saber, de valores e de crenças com que seus membros explicam sua experiência, exprimem sua criatividade artística e a motivam para a ação” (RIBEIRO, 1987, 127).
Como se pode observar, tendo em vista as teorias da cultura, trata-se de uma
concepção neoevolucionista de cultura como sistemas adaptativos da comunidade
humana.
A aculturação, como se viu, refere-se ao encontro de culturas diferentes, ao
encontro de diferentes idiomas, com tudo o que eles significam em termos de definição
da realidade; refere-se ao encontro de cosmovisões diferentes; encontros estes onde têm
lugar os processos socioculturais: inicialmente, da resistência, seguido pela acomodação
e, com o passar dos anos, da assimilação, provocando, então, modificações nos padrões
culturais que se confrontam, originando uma nova cultura.
Sabe-se que nós brasileiros somos resultado do encontro e, portanto, da
aculturação, inicialmente, entre três principais matrizes culturais com seus respectivos
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Estudos Antropológicos e Políticos
idiomas e cosmovisões: a indígena (autóctone), a portuguesa e a africana (de várias
nações.
O etnocentrismo, ponto de vista segundo o qual o próprio modo de vida de alguém
é preferível a todos os outros, marcou profundamente o processo histórico de aculturação
que formou originalmente a cultura brasileira, no caso específico, um eurocentrismo.
A identidade dos brasileiros testemunha a predominância da matriz europeia
na formação de nossa etnia: falamos português e não tupi-guarani; majoritariamente,
cultuamos ao Deus de Jesus Cristo e não ao Deus Tupã; usamos vestimentas de estilo
europeu, nada semelhante aos padrões nativos da terra de vera cruz.
Aliás, neste particular, a história registra que, entre outras razões, porque, na
chegada dos portugueses, os índios não usavam roupas, o etnocentrismo dos portugueses
não lhes permitiu reconhecê-los logo como humanos, julgando-os, inicialmente, como
meros animais, domesticando e escravizando-os; sendo necessária, depois de muitas
querelas a respeito, a intervenção do Papa, através de documento oficial, para declarar
que os índios eram seres humanos, possuidores de alma, e que, portanto, não podiam
ser tratados daquele modo.
Além da fundamental contribuição daquelas três principais matrizes culturais, sabe-
se que ao longo dos séculos, levas de emigrantes turcos, judeus, poloneses, alemães,
italianos, japoneses e outros contribuíram também na formação de nossa identidade
cultural.
Afinal, quem somos nós brasileiros? Esse povo colorido que resultou da
miscigenação de tantas raças e da aculturação de tantas etnias? Qual é nossa identidade?
Quais as características de nossa cultura?
Na busca da identidade cultural brasileira, seguindo os passos dados por
Morais (1989), além do já constatado pluralismo em razão da complexidade da cultura,
destacam-se também como traços característicos de nossa cultura, uma forte tendência
ao estetismo e ao mimetismo.
O estetismo refere-se a manifestações espirituais muito mais retóricas, ornamentais
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2Estudos Antropológicos e Políticos
e miméticas (imitativas) do que manifestações que expressem de fato um tônus nacional
emergido de nossas singularidades. Noutras palavras, produções espirituais muito
preocupadas com a aparência ou estética, por isso impressionantemente rebuscadas,
mas sem conteúdos expressivos.
O mimetismo consiste no fato de nós brasileiros termos uma excessiva facilidade para
copiar e imitar o estrangeiro. Assim, tomando a educação ou a indústria, a grande mistura
metodológica nas escolas: montessorismos, freinetismos, rogerianismos, pragmatismos,
piagetismos e etc, ou na indústria os taylorismos, toyotismos ou sistemismos, não
importando que tais metodologias da educação ou da organização do trabalho tenham
sido concebidas noutros contextos culturais.
Segundo Ribeiro (1987), ao longo do processo de formação da cultura brasileira, a
imitação do estrangeiro não seria um mal em si, o mal residia, e, a rigor, em vários setores
da sociedade ainda reside, na rejeição de tudo que era nacional e popular como sendo
ruim em razão da subalternidade da terra tropical e da inferioridade, eurocentricamente
pregada, dos povos de cor.
Aquele mimetismo arraigado deixa-nos em crise cultural, pois vemo-nos alienados,
vivendo uma vida alheia, na qual não nos reconhecemos, desconhecendo os valores
locais e supervalorizando o elemento estrangeiro. Um processo que, segundo Ribeiro
(1987) caracteriza a cultura brasileira como uma cultura espúria, inautêntica ou alienada.
Num esforço para se compreender e explicar esses traços característicos da
cultura brasileira, Morais (1989) aponta duas razões históricas que possivelmente os
determinaram: o isolamento e o vazio cultural.
O rigoroso isolamento a que Portugal submeteu a colônia brasileira fez com que
fôssemos o povo nas Américas que mais tardiamente teve instituições como universidade,
imprensa e tipografia. Enquanto o México e o Peru tiveram universidades já no século XVI,
só nos anos 20 do século XX, inicia-se a universidade no Brasil, que, de resto, segundo
Morais (1989), em razão de sua juventude, permanece até hoje imatura e periférica, tendo
sido, entretanto, responsável pelo amadurecimento de um tardio pensamento crítico no
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Estudos Antropológicos e Políticos
Brasil.
Com a vinda da família real para o Brasil em 1808 e com a independência em
1822, no período do Império, inicia-se o rompimento do isolamento em relação ao resto
do mundo, contudo, há um vazio cultural no Brasil em razão do isolamento a que fora
submetido ao longo da Colônia, de modo que tudo o que acontece fora de suas fronteiras,
especialmente na Europa revolucionada pela sua burguesia, tem grande repercussão
internamente no Brasil.
Diante do mimetismo, traço ainda forte de nossa cultura, urge conquistar a
autonomia cultural e passarmos a nos reger culturalmente por normas próprias, isto é,
por normas que resultem da fusão do “próprio” com o “apropriado”, atentos para não
cairmos na misantropia cultural, isto é, aquela esquizofrenia da cultura que, temendo a
influencia das demais culturas, isola-se e esconde-se delas.
Segundo Morais (1989), há na cultura brasileira, duas tendências perigosas: uma
que expressa o mimetismo configurando-se como descaso pelo que é nacional e rendição
às invasões culturais, numa perspectiva cosmopolitista; e outra, o integralismo cultural
que prega o isolamento nacional, praticando uma supervalorização do que é próprio,
numa perspectiva localista. Neste horizonte, pondera Morais (1989), “nem tanto o mar,
nem tanto a terra!” Uma terceira via é necessária: a dialética entre o cosmopolitismo
e o localismo para se encontrar o equilíbrio e não se perder a riqueza do múltiplo e
nem se sucumbir ao totalitarismo uniformizante. Importa viver um saudável e legítimo
nacionalismo que nos remeta à ideia e ao sentimento de nação enquanto participação em
uma cultura comum, cuidando para não deslizarmos-nos para o nacionalismo doentio,
aquele que procede do mito da nação e que prega o desprezo pelas outras nações.
A europeização imperialista do mundo
Para melhor se compreender a cultura brasileira, seguindo a orientação da escola
antropológica difusionista, convém fazer uma análise da história do Brasil que, a rigor,
inicia-se na Europa, na passagem do século XV para o século XVI.
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A mudança de mentalidade ocorrida na Europa, caracterizada pela passagem
do teocentrismo ao antropocentrismo na esteira do renascimento humanista, com o
desenvolvimento do espírito expansionista representado por Goethe em seu “Fausto”,
símbolo do insaciável desejo de saber (surgimento e expansão das ciências modernas) e
da implacável ambição é, entre outras, causa relevante da europeização imperialista do
mundo.
Morais(1989) elenca algumas outras razões explicativas da europeização
imperialista do mundo: as cruzadas como importante fator na mudança da mentalidade
europeia, especialmente no que se refere à economia; as viagens ultramarinas e seus
motivos: a ambição espanhola e portuguesa para tomar parte nos proventos do comércio
com o oriente; o proselitismo dos espanhóis; a tomada de Constantinopla pelos turcos;
o desenvolvimento das técnicas de navegação, especialmente por Portugal, no século
XV; a invenção da pólvora e da arma de fogo; o avanço da astronomia e a curiosidade
científica; a busca de metais preciosos e de braços escravos; enfim, a busca de meios
para a sustentação do capitalismo nascente.
Assim, no dizer de Morais (1989), dando largas aos impulsos da alma faustiana,
a colonização promovida pela Europa foi um processo brutal que tornou vários povos
apátridas em suas próprias terras, na Ásia, África e América, sempre justificada por teorias
e ideologias etnocêntricas, fundadas no pressuposto da superioridade da civilização
europeia em relação aos novos mundos.
No Brasil especificamente, o europeísmo se dá em duas fases bem distintas. A
primeira, chamada de europeísmo por imposição, estendeu-se dos primórdios da colônia
até meados do século XVIII, e a segunda, do europeísmo por reconhecimento, daquela
época até meados do século XX, quando, então, iniciara a fase de americanização, até
hoje em expansão.
A primeira fase, europeísmo por imposição, corresponde àqueles três séculos
de isolamento cultural a que o Brasil fora submetido por força do sistema repressivo de
colonização dos portugueses (pacto colonial) e por força do medievalesco e alienante
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Estudos Antropológicos e Políticos
sistema educacional jesuítico. A missão dos jesuítas era substituir a cultura autóctone
pela cultura ibérica, e assim tornar o novo mundo mais interessante para o mercado
europeu. Daí a quase nula influência indígena e a relativamente pequena influência
africana na cultura brasileira.
A segunda fase, europeísmo por reconhecimento, foi marcada por relevantes
transformações culturais ocorridas no século XVIII a partir do desenvolvimento da
mineração do ouro em Minas Gerais, como: aumento da população; urbanização;
surgimento de um mercado interno; surgimento de uma pequena burguesia e,
consequentemente, um crescimento da produção e do consumo de cultura. Tudo isso
coincidindo com a reforma do Marquês de Pombal e com a expulsão dos jesuítas (1759)
que abriu espaço para um novo sistema de ensino; agora com o Estado, ainda que
timidamente, participando da solução do problema educacional.
A França em plena efervescência político-cultural irradiava-se pelo mundo e,
não obstante, a oposição de Portugal, as ideias libertárias chegaram à Colônia e com
a independência em 1822, o Brasil se abre especialmente ao positivismo francês de
Augusto Comte.
O auge do afrancesamento brasileiro deu-se na primeira República com a
condenação dos hábitos tradicionais, a negação da cultura popular, a expulsão das
classes populares do centro do Rio de Janeiro e com o seu cosmopolitismo, imitando
Paris, “o coração do mundo”, de tal modo que o brasileiro se esquecia de sua própria vida
e não trabalhava a elaboração de sua cultura, agravando-se ainda mais sua alienação
cultural.
Alienação cultural que, segundo Ribeiro (1987, 151) “consiste, em essência, na
introjeção espontânea ou induzida em um povo da consciência e da ideologia de outrem,
correspondente a uma realidade que lhe é estranha e a interesses opostos aos seus”. Ou
seja, adoção de esquemas mentais que impedem ao sujeito ver a realidade, ou mesmo,
produção de representações mentais ou justificativas que não correspondem às causas
reais da realidade.
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2Estudos Antropológicos e Políticos
Assim, as explicações das elites eruditas para o atraso colonial: uma fatalidade
decorrente do clima e da inferioridade das raças. Teorias que viravam senso comum
levando ao comodismo, à resignação e a uma mentalidade fatalista. Ao enaltecer a
dignidade do homem branco, fazia o mais humilde deles sentir-se superior a qualquer
negro, índio ou mestiço, gerando enorme carga de amargura para estes últimos que
reconheciam sua própria inferioridade como inata, impedidos que estavam por aquelas
teorias de perceberem o processo histórico que os avassalava. (RIBEIRO, 1987, 151).
Cultura popular brasileira
À luz do conceito de cultura popular enunciado em módulo anterior, vamos analisar
com mais detalhe aquele conceito, pensando agora sobre a cultura popular brasileira. A
cultura popular brasileira refere-se às manifestações culturais típicas do povo brasileiro. É
a cultura produzida pelo povo e não para o povo; entendendo-se aqui por povo brasileiro
o conjunto das camadas populares da sociedade brasileira, ou seja, excluindo-se apenas
a camada dominante, vez que esta possui claramente outra postura cultural, em razão de
suas distintas condições socioeconômicas.
Qual o conteúdo da cultura popular? Vannucchi (1987) assegura que definir cultura
popular e discutir qual é o seu conteúdo não é algo que integra a cultura popular. Estas
preocupações pertencem antes à cultura de elite. Ao povo interessa mesmo é a vida, o
trabalho, a família, a luta cotidiana pela sobrevivência e a festa.
Entre as tentativas de se definir cultura popular pelo seu conteúdo, destacam-se,
segundo Vannucchi (1987), uma conceituação negativa: cultura popular seria tudo o que
não é cultura erudita, acadêmica ou científica; uma conceituação positiva: cultura popular
seria o conjunto de conhecimentos e práticas vivenciados pelo povo, embora possam
também ser vividos pelas elites, como ocorre no caso do candomblé, do carnaval ou do
jogo do bicho; ou ainda cultura popular como tudo aquilo que é do saber do povo, de
produção anônima ou coletiva, ou seja, o folclore.
Vannucchi (1987) faz uma crítica a estas concepções restritas de cultura popular
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Estudos Antropológicos e Políticos
afirmando que cultura popular brasileira é a cultura no tempo e no espaço de vida
das classes subalternas do Brasil, ou seja, cultura popular não se define só por um
determinado conteúdo, mas engloba todas as condições de vida dos que lutam pela sua
sobrevivência sem deter o controle do próprio trabalho, portanto, é o modo de vida do
povo brasileiro, entendendo-se povo no sentido acima indicado.
A cultura popular brasileira, segundo Vannucchi (1987), é estudada sobre vários
enfoques: histórico, estético-ludico, econômico, político ou pedagógico. Do ponto de
vista histórico constata-se, por um lado, uma exaltação de como eram bons os tempos
passados, por outro, uma depreciação preconceituosa de práticas ou realidades
populares. Do ponto de vista estético-lúdico, quando a cultura popular brasileira é
tomada como fonte para criações intelectuais, a exemplo das obras de Guimarães Rosa
ou Villa-Lobos. No horizonte econômico, dentro do capitalismo, os estudiosos destacam
a produção solidária de atos culturais, a exemplo do mutirão: ajuda mútua, na roça ou na
cidade, entre famílias de baixa renda. No enfoque político, a cultura popular é vista como
força ou instrumento de transformações sociais ou de resistência contra imposições
colonialistas ou das classes dominantes. Por fim, na perspectiva pedagógica, a cultura
popular brasileira utilizada como uma força conscientizadora das massas através da
educação a exemplo dos Centros Populares de Cultura, fundados pela UNE de 1960 a
1964 ou do Movimento de Educação de Base – MEB, implementado no mesmo período
no nordeste brasileiro; ambas as iniciativas cassadas pela ditadura militar.
Por fim, qual a especificidade da cultura popular brasileira? Segundo AGUIAR
citado por Vannucchi (1987), a cultura popular brasileira é um processo vivenciado no
seio da sociedade nacional; um processo plural e fragmentário que tem em comum o
fato de crescerem a partir do ponto de vista das classes subalternas. Em razão desta
fragmentariedade, as culturas populares não se politizam radicalmente e, portanto, não
atingem uma ampla articulação de forças da sociedade. Apesar disso, alguns elementos
da cultura popular brasileira, apropriados pela classe dominante, tornam-se símbolos
nacionais, a exemplo da feijoada, da caipirinha, da quadrilha ou do samba. Deste modo,
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2Estudos Antropológicos e Políticos
afirma Vannucchi (1987), porque o legítimo ato cultural só pode ser livre e imprevisível, o
específico da cultura popular brasileira não pode ser dado a priori, mas será produzido no
próprio processo de luta e libertação das classes oprimidas.
Cultura de massa no Brasil
Recordando o conceito de cultura de massa anteriormente apresentado, vamos
analisar brevemente a cultura de massa no Brasil. Massa, na expressão “cultura de
massa”, seria o mesmo que povo? Refere-se, por acaso, à totalidade do povo brasileiro,
incluindo a própria camada dominante? Ou seria apenas a soma dos analfabetos de
nossa sociedade?
Entende-se aqui por massa o público destinatário dos produtos da indústria cultural
que são veiculados pelos meios de comunicação que por sua vez são de propriedade
das elites do poder econômico, político ou religioso. Meios de comunicação tais como os
tradicionais rádio, televisão, jornais, revista, cinema, etc e até mesmo a moderna rede
mundial de computadores.
Observa-se que o público receptor dos produtos veiculados pelos meios de
comunicação de massa é formado por milhões de brasileiros de todas as idades, de todas
as regiões, de todas as classes, portanto, por uma verdadeira massa humana.
Assim, a cultura de massa também chamada de indústria cultural, segundo
Vannucchi (1987), refere-se à soma dos bens culturais produzidos industrialmente e
destinados ao grosso das populações urbanas, conforme os interesses da classe média,
interesses estes engendrados e manipulados pela própria indústria cultural.
O risco da cultura de massa já denunciado nos anos de 1940 por Adorno e
Horkheimer é o da dominação ideológica e a consequente alienação, ou seja, a imposição
de modelos culturais de um grupo, classe ou nação sobre outros, especialmente através
da propaganda e da publicidade.
Vannucchi (1987) caracteriza a indústria cultural brasileira apontando a dependência
econômica acentuada do capital estrangeiro, bem como dos governos federal e estadual;
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Estudos Antropológicos e Políticos
a dependência cultural do estrangeiro revelada claramente, por exemplo, na música ou
no cinema.
Por fim, face à compreensão do fenômeno da cultura de massa, reconhece-se,
especialmente no mundo contemporâneo globalizado pela força do capital, a necessidade
da vigilância crítica para se viver uma vida autêntica, pois os distraídos são vítimas fáceis
da alienante indústria cultural, fato que se agrava na mesma proporção da fragilidade do
sistema educacional brasileiro quando se tem em vista o ideal de uma formação reflexiva
ou crítica.
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2Estudos Antropológicos e Políticos
Módulo 07 – As culturas negras no Brasil
Introdução
Dias atrás, uma reportagem na “Voz do Brasil” noticiava a aprovação de um projeto
de lei que seria encaminhado à Presidência da República para apreciação e eventual
sanção. A proposição de lei consistia em uma política de ação afirmativa, pois, em linhas
gerais, reservava 20% de vagas em concursos públicos federais do Poder Executivo para
afrodescendentes.
Aquele polêmico projeto, enfim aprovado, teria gerado calorosas discussões entre
os parlamentares, sendo que a reportagem destacara a fala do deputado Jair Bolsonaro
do PP, e da deputada Benedita da Silva do PT, ambos do Rio de Janeiro. Enquanto o
deputado acusava o projeto de ser inoportuno porque, entre outras razões, estimulava o
ódio entre seguimentos da pacífica sociedade brasileira, a deputada o defendia declarando
que o mesmo dava cumprimento à Constituição Federal e promovia a justiça na sociedade
brasileira.
Então, considerando a história e o processo de formação do povo brasileiro e de
nossa cultura; considerando a situação social dos vários seguimentos étnico-raciais que
constituem a sociedade brasileira, como você, enquanto cidadão, posiciona-se diante da
mencionada discussão?
Imagine-se na posição de assessor ou assessora da Presidência da República,
tendo que se posicionar em relação ao projeto, você recomendaria à Presidenta que
sancionasse ou que vetasse aquela proposição de lei? Como você fundamentaria o seu
parecer?
Problemas como este acima apresentado instigam a todos nós cidadãos brasileiros
a refletir sobre as relações étnico-raciais na sociedade brasileira. Contudo, uma boa
reflexão sobre a questão racial no Brasil demanda conhecer, ainda que em suas linhas
gerais, o processo de formação do povo brasileiro e de sua cultura, processo que, como
já se viu, não se deu sem expressiva participação das macroetnias negra e indígena.
Ademais, conforme análise dos dados do senso de 2010 do IBGE, a população
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Estudos Antropológicos e Políticos
de negros e pardos já é maior do que a população branca, ou seja, os afrodescendentes
já somam 96,7 milhões de pessoas, 50,7% da população brasileira; fato que revela a
gravidade da situação, do ponto de vista ético e moral, visto que, apesar de serem maioria
quantitativa na sociedade brasileira, segundo demonstra o estudo do IPEA (2011), os
afrodescendentes continuam sendo minoria política, vítima do racismo e do preconceito
em todos os campos das relações sociais.
Participação dos negros na formação do povo brasileiro
A formação do povo e da cultura brasileira remonta ao começo do período colonial
através dos processos de mestiçagem e aculturação que se estenderam em nossa
história; uma consequência, como se viu, do processo de expansão imperialista da
Europa Ocidental, nos séculos XV e XVI.
O Brasil recebeu diversos grupos étnicos que se amalgamaram determinando a
configuração sociocultural brasileira. Ao americano autóctone (o índio) somaram-se o
europeu, o africano e o asiático; todos contribuíram com suas crenças, valores, costumes
e hábitos para formação da cultura brasileira. Segundo Marconi (2001), talvez não haja
país no mundo onde se mesclaram tantas etnias e culturas diferentes como no Brasil.
O grupo étnico negro, desde o início de nossa história, vem imprimindo sua marca,
tanto genética como culturalmente, no povo e na cultura brasileira. Em razão da violência
do processo aculturativo, a cultura africana, segundo Marconi (2001), foi esfacelada,
mas resistiu e não foi destruída, como atesta especialmente o sincretismo religioso2 .
Lançando um olhar para a situação do negro na África podemos entender
melhor o que ocorreu no Brasil. O negro em seu continente de origem possuía culturas
diversificadas, plasmadas pelos variados grupos que adotaram padrões culturais
específicos de diversos níveis de desenvolvimento; haviam grupos bem primitivos,
enquanto outros apresentavam culturas mais desenvolvidas, inclusive grupos bem
desenvolvidos que haviam sofrido a influência do islamismo. Padrões culturais estes que
2 Fusão de dois ou mais elementos de culturas distintas ou não, a exemplo da Umbanda que con-tém traços do catolicismo, do fetichismo africano e indígena e do espiritismo. (MARCONI, 2001,65)
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2Estudos Antropológicos e Políticos
foram rompidos quando o homem branco começou a capturar e escravizar o negro.
Registra-se que o tráfico de escravos para a Europa já era bastante ativo no
século XV e que a descoberta do Brasil e a necessidade de mão de obra nas tarefas da
colonização no século XVI levaram os portugueses a intensificarem aquele tráfico.
Segundo Marconi (2001) a transmissão das culturas negras se fez de forma
fragmentada e até depreciada no processo de formação da cultura brasileira, especialmente
por duas razões: primeira, o fato de os negros terem chegado ao Brasil na condição de
escravos e não como grupos portadores de configurações culturais integradas; segunda,
a própria estratégia dos operadores do comércio de escravos e dos colonizadores que
os compravam, estes cuidavam de separar os grupos e as famílias, provocando assim a
aculturação entre os próprios negros e, consequentemente, enfraquecendo suas culturas
e dominando-os mais facilmente.
A compreensão da presença e influência do africano na formação da cultura
brasileira deve se dar a partir da compreensão de sua participação na economia da colônia.
Inicialmente os portugueses lançaram mão do trabalho indígena, contudo, a escravidão
indígena não produzira resultados satisfatórios para os colonizadores porque o indígena,
em sua cultura original, acostumado a uma economia de subsistência, sem nenhuma
preocupação com o armazenamento futuro, não entendia o trabalho sistemático dos
brancos e muito menos a lógica da escravidão, da qual eles podiam escapar facilmente
pelo fato de conhecerem bem o território brasileiro. Deste modo, tornou-se necessária a
introdução de uma mão de obra escrava que funcionasse; no caso, a mão de obra dos
negros, já testada na Europa.
Sabe-se que, a partir de meados do século XVI, estruturou-se no Brasil uma
colonização de povoamento que deu lugar a um sistema socioeconômico baseado no
tripé: escravidão, monocultura e latifúndio. Neste contexto, surgiu a aristocracia rural do
açúcar; sendo que, a partir de então, as principais atividades econômicas desenvolvidas
com base na mão de obra escrava foram o cultivo da cana de açúcar, as atividades nos
engenhos, a mineração, as lavouras de café e a pecuária.
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Estudos Antropológicos e Políticos
Ao ritmo da demanda de mão de obra na economia, crescia a importação de
escravos para o Brasil. Percebe-se uma importação crescente de escravos para o Brasil
do século XVI ao XIX. Considerando que o tráfico começou em 1525, em 1600 já eram
20.000 escravos nos engenhos de açúcar. No início do século XVIII, quando a população
brasileira era de 3.250.000, mais da metade, quase dois milhões eram negros e em 1850,
quando a população brasileira era estimada em oito milhões de habitantes, 2.500.000
eram escravos. Números que podem nos dar uma ideia da importante participação dos
valores e modelos africanos para formação da cultura brasileira, especialmente em
relação à vida social, econômica e religiosa. (MARCONI, 2001).
Influência das culturas negras
É difícil estabelecer o número, a origem geográfica e a filiação tribal dos negros que
vieram para o Brasil porque os documentos oficiais foram destruídos após a supressão
do trabalho servil, numa tentativa de apagar a mancha escravocrata no país. Entretanto,
segundo Marconi (2001), graças aos estudos de Nina Rodrigues e de Arthur Ramos,
sabe-se que as diferentes culturas negras trazidas para o Brasil podem ser classificadas
em quatro grandes famílias, a saber: sudanesa, sudanesa islamizada, Banto e Banto da
contracosta.
Alguns aspectos da cultura brasileira que refletem as culturas negras: na escultura,
os trabalhos em madeira, ídolos do culto religioso, a figa, os braceletes e a bateia; na
pintura: os desenhos confeccionados para a ornamentação dos altares e dos santuários
do candomblé; na arquitetura: os mocambos de barro batido; nas artes da cerâmica: vasos
de barro e cestaria com peças de palha; na indumentária: panos vistosos de algodão,
saias rodadas, xales, colares, braceletes e brincos de argolões, o traje da baiana, com o
turbante, influência maometana; na música, os instrumentos musicais, principalmente de
percussão como: tambores, atabaques, campânulas, agogôs, adjás, gonguês, flautas,
afofiés, cuíca, berimbau e outros; e na culinária: complexo de inhame, azeite-de-dendê,
vatapá, acaçá, bobó, acarajé, abará, efó, axoxó, pimenta do reino e etc.
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Considerando a cultura brasileira atual, os aspectos da cultura imaterial que
tiveram maior influência das culturas negras estão especialmente nos campos religioso,
literário e linguístico. No campo religioso destaca-se um intenso sincretismo com o
candomblé, a macumba, o xangô, o tambor e os batuques ou parás. No campo literário
a influência na literatura popular foi riquíssima, com contos, fábulas, lendas, poesias,
e autos populares. No campo linguístico o nagô tornou-se a “língua geral” dos negros
nas cerimônias religiosas, nos cânticos de terreiro, nos atos litúrgicos. Ademais, deve-se
ressaltar a grande influência dos negros na dança, na música e no folclore brasileiro.
Marconi (2001) reporta-se a Gilberto Freire para quem a influência do negro sobre
o povo e a cultura brasileira não foi de um povo bem constituído com uma formação
cultural madura, mas, ao contrário, foi a influência de um “povo” violentado, fragmentado,
humilhado e subjugado, de tal modo que a condição de escravo, deixando o negro
inferiorizado, não possibilitou um processo equilibrado de aculturação, onde certamente a
etnia negra teria tido maior peso do que teve na constituição da cultura brasileira.
Sabe-se que a etnia brasileira é o resultado de um longo processo de miscigenação,
iniciado nos engenhos de açúcar e nas fazendas de criação onde entraram em contato
o indígena, o português e o negro, processo este que jamais cessou na sociedade
brasileira, levando alguns especialistas a interpretarem o Brasil como um caldeirão racial.
O mulato e o mameluco representam os tipos mestiços de maior expressão, mas os
cruzamentos havidos entre os tipos mestiços resultaram em outros mestiços, a saber:
branco X negro = mulato; branco X índio = mameluco; negro X negro = crioulo; negro
X índio = cafuzo, curiboca ou caboré; negro X mulato = cabra; índio X índio = caboclo;
sendo que os cruzamentos de mulato X mulato; crioulo X crioulo e mulato X mameluco
resultaram no pardo; hoje talvez seja este último o tipo mestiço mais representativo da
sociedade brasileira.
Esta intensa conjugação interétnica, característica essencial do processo de
formação do povo brasileiro, é destacada, por vários autores, como fator condicionante
da existência de uma ideologia integracionista que estimula o caldeamento e condena a
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Estudos Antropológicos e Políticos
discriminação, fator este que seria responsável, segundo Marconi (2001), por haver no
Brasil um preconceito racial moderado quando se tem em vista a realidade dos Estados
Unidos.
Certamente, esta afirmação de que o racismo no Brasil é mais moderado que
o racismo nos Estados Unidos está longe de ser um consenso entre os especialistas,
discordando daquela tese especialmente os militantes do movimento “Consciência Negra”
que ressaltam como a força do racismo brasileiro está exatamente em sua diluição, uma
situação que favorece a dominação ideológica que, por ser eficaz em seus objetivos
discriminatórios, dispensa manifestações mais ostensivas como no apartheid da África
do Sul, antes de Mandela, ou mesmo nos Estados Unidos, nos tempos de Luther King.
Isto posto, a cultura brasileira só foi possível em razão do complexo processo de
aculturação havido entre basicamente as etnias indígena, europeia e africana.
Os portugueses trouxeram consigo sua sociedade e sua civilização e adaptaram-
nas ao novo ambiente fazendo muitos empréstimos aos índios que estavam bem casados
com a natureza ambiente.
Os africanos, como já se viu, não participaram deste processo de aculturação como
povo com uma formação cultural específica, mas como pessoas escravizadas, sujeitas
ao tráfico desumano, ao esfacelamento da cultura, aos maus-tratos nas senzalas, à toda
sorte de humilhação, daí sua influência não haver sido ainda maior.
Deste processo de aculturação tremendamente desfavorável para as etnias
indígenas e africanas resultou o predomínio de elementos da cultura portuguesa,
especialmente no que diz respeito à língua e à religião, não obstante a influência nestas
áreas do elemento autóctone e do africano. Por outro lado, é incontestável a forte
influência africana na dança, na música e nos instrumentos musicais da cultura brasileira
que, de resto, tornou-se plural, não havendo, entretanto, grandes diferenças entre as
subculturas que ameacem a unidade da configuração cultural e étnica brasileira.
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2Estudos Antropológicos e Políticos
Situação dos negros no Brasil
Segundo declaração de Dom José Maria Pires, Negro, Arcebispo Emérito da
Paraíba, no III Seminário Nacional de Estudos de História e Cultura Afro-brasileira e
Indígena, ocorrido em novembro de 2010, em Campina Grande na Paraíba, o povo negro
no Brasil praticamente não contou com a atenção evangelizadora e libertadora da Igreja
Católica, até bem pouco tempo, quando em 1988, promoveu a Campanha da Fraternidade
dedicada ao problema dos negros no Brasil, um gesto, no dizer do Bispo, de eloquente
testemunho de sensibilidade para com a causa dos negros. (PIRES, 2013, 31).
Através da Campanha da Fraternidade - CF de 1988, com o tema “A fraternidade e
o negro” e o lema “Ouvi o clamor deste povo” a Igreja não só propõe a comemoração dos
100 anos da Lei Áurea, mas faz um esforço de evangelização à luz da evangélica opção
preferencial pelos pobres, contemplando, no caso, a população negra que, durante quase
400 anos, foi submetida a escravidão, sendo que, mesmo depois da Lei Áurea (1888), foi
mantida marginalizada e discriminada, sofrendo, ainda hoje as consequências daquele
pecado social.
A CF de 1988 tem um forte apelo bíblico. O lema “ouvi o clamor deste povo” faz
parte do diálogo entre Deus e Moises a respeito do povo hebreu escravizado no Egito e
por Deus, através de Moisés, libertado.
Lendo, especialmente a primeira parte do texto-base da CF, salta-nos aos olhos
flashes da situação do negro no Brasil que ainda se mostram muito atuais.
A primeira constatação é que, sendo os negros, como se viu, maioria da população
brasileira; sendo o Brasil o segundo país do mundo em população de origem negra,
superado apenas pela Nigéria, tal população não está distribuída de maneira equitativa
nos diversos segmentos socioeconômicos, nas várias profissões ou em todos os níveis
educacionais, de tal modo que as relações étnico-raciais no Brasil se configuram em
situação de grave injustiça, com diversas práticas racistas e discriminadoras.
O texto-base da CF, referindo-se a estudos baseados em dados do IBGE, registra
várias situações em que o negro sofre com o preconceito racial difuso na sociedade e
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Estudos Antropológicos e Políticos
cultura brasileiras.
A participação de brancos e negros na renda nacional é absolutamente
desproporcional em relação à participação na força de trabalho; há uma presença
majoritária da população preta ou parda nas ocupações classificadas como “manuais”
onde a remuneração é mais baixa; sendo a população branca majoritária em relação às
ocupações “não-manuais” em que a remuneração é mais alta.
Quanto ao processo de seleção, frequentemente a exigência de “boa aparência” é
um eufemismo para excluir candidatos negros. Além disso, enquanto o chefe de família
branco recebia em média, 4,8 salários mínimos (S.M.), o chefe de família negro recebia,
em média, apenas 1,7 S.M. e o “pardo”, 2,5 S.M.
Sabe-se também, como em nossa sociedade machista a mulher é discriminada;
mesmo a mulher branca, quando é chefe de família, recebe menos da metade do que
o homem recebe, ou seja, recebe apenas 2 S.M., mas a mulher preta chefe de família
recebe 0,7 S. M. e a parda 0,8 S.M.
A precariedade da situação dos negros revela-se também em relação a se ter a
carteira de trabalho assinada, o que significa alguma garantia para o caso de doença,
acidente de trabalho ou aposentadoria; a pesquisa citada no Texto Base da CF registrava
que enquanto 48% dos trabalhadores negros e 66% das trabalhadoras negras não
possuíam carteira assinada, esta proporção diminuía para 28% dos trabalhadores
brancos e 39% das trabalhadoras brancas.
Em relação à pirâmide social, é flagrante a ausência de negros nos graus mais
elevados da hierarquia: é praticamente nula nos primeiros escalões dos diversos níveis
do governo, bem como do poder legislativo e judiciário, assim como ocorre no topo da
hierarquia militar, acadêmica e na carreira diplomática. Também na Igreja Católica é
mínima a presença de negros entre religiosos, religiosas, sacerdotes e bispos.
A desigualdade social ou a situação de injustiça sofrida pela população negra no
Brasil é reflexo da situação de sua escolaridade e de cultura.
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2Estudos Antropológicos e Políticos
Comparando o índice de analfabetismo da população economicamente ativa,
enquanto dos negros é 42,4%, dos brancos é de apenas 15,5%, portanto, o analfabetismo
é quase três vezes maior na população negra. Olhando o universo de brasileiros com mais
de 11 anos de estudo, é incrível como aquele universo se divide desproporcionalmente:
brancos somam 9,1%; negros, 1,1% e pardos, 2,7%. Números que falam por si mesmos
sobre a situação dos negros no Brasil.
Do ponto de vista cultural, vale registrar que as manifestações de raiz africana
costumam ser reduzidas a aspectos periféricos como as contribuições linguísticas,
musicais e hábitos alimentares. No universo cultural construído ideologicamente como
europeu e branco, os traços culturais negros não são valorizados, são vistos como
expressão do exótico; os padrões dominantes da beleza, cultura e civilidade são brancos.
No contexto da CF de 1988, os meios de comunicação social, com grande poder na
formação da opinião pública, especialmente a televisão, confirmavam aquele reducionismo
cultural, enfocando o negro, por exemplo nas telenovelas, reportagens e filmes, sempre
em funções subalternas ou secundárias, quando não antissociais.
Registra-se que a mulher negra é a maior vítima da discriminação. Foi escrava
reprodutora, objeto de prazer dos senhores, e explorada nos trabalhos domésticos,
agrícolas e artesanais; depois passou de escrava a mal assalariada, de ama de leite
a mãe solteira, sofrendo grave desestruturação psicológica e social, de modo que hoje
representa o maior contingente da população favelada e das mal remuneradas domésticas
e operárias urbanas ou camponesas, muitas relegadas ao subemprego e obrigadas à
prostituição. Assim, sofrem uma tríplice discriminação porque são mulheres, pobres e
negras.
Por fim, a situação da população negra no Brasil, como se viu, é marcada por um
racismo diluído pela ideologia da democracia racial, uma ideia sem fundamento, à qual
não correspondem os fatos. Contudo, a militância do movimento negro, desde os avanços
da Constituição da República de 1988, tem conseguido importantes conquistas face ao
Estado brasileiro que começa, não obstante às inevitáveis querelas, a adotar políticas de
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Estudos Antropológicos e Políticos
reparações às seculares injustiças cometidas contra o povo negro no Brasil através de
ações afirmativas como a reserva de vagas em concurso público para afro-descendentes,
e buscando promover o reconhecimento e a valorização da história e cultura negras no
Brasil.
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Módulo 08 – O indígena brasileiro
Introdução
A mídia nacional frequentemente traz notícia sobre a luta do povo indígena brasileiro
para garantia e conquista efetiva de seus direitos.
Embora a Constituição da República de 1988 reconheça o direito originário dos
indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, nos termos do seu art. 231,
e, embora, tenha o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em seu art. 67,
estabelecido o prazo de cinco anos para que a União concluísse a demarcação das
terras indígenas, vinte e cinco anos se passaram e a questão das terras indígenas não
demarcadas continua sendo fonte de conflito dos povos indígenas com fazendeiros e
empresários no Brasil.
Veja o texto da jornalista Andreia Martins:
“Em 2014, duas novas propostas no Congresso devem colocar em evidência a questão da demarcação das terras indígenas: a PEC 215, que quer transferir para o Congresso Nacional a função de demarcação das terras, competência que hoje é da União, e o PLP 227, que visa regulamentar o artigo da Constituição que define áreas de interesse público à União, sobre o uso da terra pelos índios.Hoje, os órgãos responsáveis pelas demarcações de terra são a FUNAI (Fundação Nacional do Índio), que faz os estudos e delimita as áreas; o Ministério da Justiça, que faz a declaração da terra; e a Presidência da República, que a homologa. Atualmente, segundo a FUNAI, são 645 terras indígenas em diferentes fases da demarcação.Embora a população indígena tenha obtido novas conquistas ao longo dos anos, como o Estatuto do Índio, de 1973, e o reconhecimento na Constituição de 1988, a disputa pela terra ainda é fato recorrente. São constantes os conflitos envolvendo fazendeiros e empresários em terras com recursos naturais e minérios, principalmente nas áreas rurais, onde vive a maior parte da população indígena (63,8%)”. 3
Afinal, qual o teor das mencionadas proposições? O Projeto de Emenda
Constitucional e o Projeto de Lei Complementar defendem os direitos indígenas ou os
prejudicam? Quais são as forças e os interesses em conflito nas mencionadas proposições?
3 Veja a íntegra do texto de Andreia Martins, acesso em 10/07/2014, disponível em http://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/indios-dois-projetos-ameacam-terras-indigenas-e-acirram-conflitos-rurais.htm
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Estudos Antropológicos e Políticos
Qual a relevância da questão indígena no Brasil?
A população indígena brasileira que, segundo estimativas dos estudiosos, antes
da chegada dos portugueses estava entre 2 e 3 milhões de indivíduos, segundo o
senso do IBGE de 2010, é agora 896 mil pessoas. Embora demograficamente pouco
representativa, 0,4% da população brasileira, é constituída por grande diversidade de
grupos tribais, distribuídos irregularmente pelo território nacional, sendo que a maior
parte encontra-se na região da Amazônia.
O IBGE, adotando a metodologia da autoidentificação ou autodeclaração, isto é,
identificando as pessoas quanto a sua cor ou raça, conforme a declaração da própria
pessoa, ao responder a pergunta: “Sua cor ou raça é: ( ) Branca, ( ) Preta ( ) Parda
( ) Amarela, ( ) Indígena”, tem verificado um aumento crescente do número de pessoas
que se autoidentificam como indígena, desde o senso de 1991.
A população indígena de 896 mil pessoas ocupa 12,5% do território nacional,
sendo que apenas 517 mil, ou seja, 57,7% da população indígena, residem em terras
indígenas já reconhecidas pelo governo federal.
Uma novidade do senso do IBGE de 2010 é o recorte étnico-linguístico da população
indígena brasileira. Apesar de ser relativamente pequena, a população indígena é
formada por 305 etnias com usos, costumes e tradições distintos e que falam 274 línguas
diferentes, portanto, representa uma enorme riqueza, tornando o Brasil o país de maior
diversidade cultural do planeta.
Origem e características indígenas
Desde o século XVI investiga-se a origem dos povos da América. A hipótese mais
aceita pelos estudiosos, segundo Marconi (2001), é a de Paul Rivet (1960), segundo a
qual o continente americano foi povoado por fluxos sucessivos de grupos humanos que
utilizaram pelo menos três vias de acesso: o Estreito de Behring (grupos asiáticos), a
Antártida e a Terra do Fogo (grupos australianos) e o Oceano Pacífico (grupos polinésios).
O consenso entre os estudiosos sobre os americanos pré-colombianos permite
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2Estudos Antropológicos e Políticos
considerar que: o homem americano não é autóctone, sua cultura sim. Os primeiros fluxos
migratórios para a América datam de 40.000 anos; os esquimós foram os últimos a povoar
a América; os primeiros que chegaram eram caçadores, de nível cultural do neolítico;
pertencentes ao grupo racial amarelo e não vermelho como se supunha.
Em relação aos antigos povoadores do Brasil especificamente, as pesquisas
arqueológicas e paleontológicas indicam o ano 8.000 a. C. como a data mais antiga de
sua presença.
Quanto ao nome de “índio”, utilizado para designar o elemento humano integrante
daquela parcela da população brasileira cuja cultura remonta à tradição pré-colombiana,
é uma denominação dada pelos europeus, na suposição de haverem chegado às Indias,
pois chegaram na América quando na verdade procuravam uma nova rota para a Índia.
O índio é aquele que assim se reconhece, conforme a metodologia de autodeclaração
adotada pelo IBGE, e é também assim reconhecido pelos demais seguimentos da
sociedade.
Registra-se que para os colonizadores, o nome “índio” tinha, e ainda hoje se ressente
disso, um caráter depreciativo, indicava o selvagem, pagão, ser subumano, desprovido de
alma. Nos primórdios da colonização foi assim considerado pelo menos até 1537, quando
o Papa Paulo III declarou que os índios possuíam alma e eram “verdadeiros homens e
livres”.
A população indígena brasileira, segundo Marconi (2001), apresenta uma grande
heterogeneidade caracterizada sob três aspectos: biológico: embora pertencente à raça
mongoloide, há diferenças notáveis quanto à estatura, quanto à cor da pele que varia
do amarelo claro ao escuro; linguístico: no século XVI foram registradas 1400 tribos
pertencentes a 40 famílias linguísticas, sendo que o tupi é a língua mais difundida no Brasil;
cultural: considerando o período de 1900 a 1959 e as semelhanças e diferenças entre
os grupos indígenas quanto aos usos e costumes, delimitaram-se 11 áreas culturais no
Brasil: Norte-Amazônica, Juruá-Purus, Guaporé, Tapajós-Madeira, Alto Xingu, Tocantins-
Xingu, Pindaré-Gurupi, Paraguai, Paraná, Tietê-uruguai, Nordeste.
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Estudos Antropológicos e Políticos
Ressalta-se que uma categoria fundamental utilizada na descrição do quadro
indígena é a de tronco ou família linguística. Um tronco ou família linguística, segundo
Marconi (2001), é o conjunto de grupos tribais portadores de línguas semelhantes, os
quais no passado formavam uma única família.
Quanto aos troncos ou famílias linguísticas, a primeira classificação dos índios do
Brasil dividiu-os em dois grupos apenas: Tupi (língua boa) e Tapuia (língua travada). O
tronco linguístico de maior influência na cultura e na sociedade brasileiras é o Tupi ou
Tupi-guarani, sendo constituído pelos Tupinamba, Tamoios, Tupinikin, Goitacá, Temiminó,
Tape, Caeté, Tabajara, Potiguara e outros. Já no tronco Tapuia, inimigos dos grupos Tupi,
figuram os Botocudos, Kayapó, Kariri e outros.
Estudos e contatos posteriores demonstraram a multiplicidade de famílias
linguísticas divididas em quatro grandes troncos: Tupi, Macro-jê, Aruak e Karib, sendo
que cada um desses troncos é constituído por vários grupos de famílias linguísticas;
além destes, há dois outros grupos menores: Pano e Xirianá, e ainda outras línguas
isoladas. Confrontando este quadro com aquele do senso de 2010, certamente, a soma
de todos estes grupos corresponde ao número de 274 línguas diferentes encontradas no
último senso do IBGE.
Índios e brancos no Brasil
A história revela que o contato entre índios e brancos no Brasil tem favorecido
os brancos civilizados, com sua cultura dominante, em detrimento dos grupos tribais
subjugados, que vêm sofrendo os efeitos da destribalização, da depopulação, da
desorganização tribal, em muitos casos, até à destruição total.
Como se viu, o encontro de culturas diferentes, gerando mudança naquelas culturas
constitui-se o processo cultural chamado aculturação. Ao pautar a questão do encontro
do índio com o não índio no Brasil, é oportuno ressaltar que há duas modalidades de
aculturação: aculturação interétnica e aculturação intertribal.
A aculturação interétnica ocorre quando grupos étnicos e culturalmente diferentes
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2Estudos Antropológicos e Políticos
entram em contato direto e permanente, ficando ambos os grupos sujeitos a mudanças
em seus padrões culturais, às vezes mudanças drásticas que significaram o extermínio
do grupo indígena, como em vários casos no Brasil.
A aculturação intertribal ocorre quando grupos tribais, portadores de culturas e
línguas diferentes, entram em contato influenciando-se mutuamente, num processo
geralmente pacífico, como ocorre na área do Alto Xingu.
Marconi ressalta que “na área cultural xinguana, a interação de sociedades
distintas levou a uma homogeneização cultural. Contudo, a autonomia de cada grupo foi
respeitada, assim como sua língua, não havendo o predomínio de uma sobre as demais”.
(MARCONI, 2001, 237).
Assim, a sociedade xinguana apresenta uma grande uniformidade de padrões
culturais. As aldeias são circulares com casas cobertas de sapé; no pátio ficam a casa
das flautas e a gaiola do gavião real; utiliza-se o beiju e não se tem bebidas fermentadas;
há uma supremacia da pesca sobre a caça; as mulheres usam uma tanga chamada
“uluri”, adota-se também o uso de colares de concha, redes, etc; é comum bancos e
vasos em forma de animais; a família é extensa, com descendência bilateral, ou seja, são
considerados parentes tanto aqueles do lado paterno, quanto aqueles do lado materno; a
religião é o xamanismo, celebra-se a festa dos mortos ou o “kuarup” e há uma prática de
comércio intertribal chamata “moitará”.
O processo de aculturação interétnica, ou seja, entre índios e brancos, ocorre no
Brasil com as frentes de expansão da sociedade nacional, geralmente frentes de natureza
socioeconômica através das atividades do extrativismo, da agricultura e da pecuária;
atividades que integram ou destroem o índio.
Quanto à integração com a sociedade nacional, segundo Marconi (2001), estudos
concluídos em 1957 classificaram os grupos tribais em quatro categorias: grupos isolados,
grupos em contatos intermitentes, grupos em contatos permanentes e grupos integrados.
Os grupos isolados são aqueles que ocupam regiões não alcançadas pela civilização e
assim mantém sua cultura e seu efetivo demográfico. Em 1900 eram 105 grupos e em
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Estudos Antropológicos e Políticos
1957 eram apenas 33.
Os grupos em contatos intermitentes são aqueles que mantém contatos esporádicos
com a civilização branca, mas contatos que tendem a se tornar permanentes, porque os
índios contraem uma certa dependência em relação aos civilizados. Em 1900 eram 57
grupos e em 1957 foram reduzidos a 27.
Os grupos em contatos permanentes são aqueles que têm uma dependência
quase total em relação aos civilizados, perdendo assim sua autonomia sociocultural,
conservando apenas traços de sua cultura original. Em 1900 eram 30 grupos em 1957
aumentaram para 45.
Os grupos integrados são aqueles que passando pelas etapas precedentes
conseguiram sobreviver. Normalmente perdem sua língua e cultura original adotando a
língua e costumes dos brancos, participando de forma subalterna da vida socioeconômica
da sociedade nacional. De 29 grupos em 1900 passaram a 38 em 1957.
Marconi (2001) ressalta: “... das 230 tribos que compunham o mundo indígena
no início do século, restaram, em 1957, 143, tendo desaparecido até então 87 grupos.”
(MARCONI, 2001, 236). Um quadro que revela quão prejudicial tem sido para o povo
indígena a aculturação interétnica ao longo da história.
No século XVI, a exploração e a colonização do Brasil deram-se na região litorânea
e dependeram do fornecimento indígena que facilitava a manutenção da população
branca. Assim, era praticado o escambo entre índios e brancos, um comércio baseado na
troca de mercadorias. Ademais, a empresa colonizadora valeu-se dos indígenas de duas
outras maneiras: apropriação de suas terras economicamente rentáveis; apropriação do
indígena como mão de obra indispensável e largamente utilizada.
Nos séculos XVII e XVIII ocorre a interiorização da empresa colonizadora através
da criação de gado e da exploração das “drogas do sertão” que exigiam mão de obra.
No caso a mão de obra indígena, farta, barata e adaptada à região. A resistência da
população indígena era massacrada e os sobreviventes eram feitos escravos. Ocorriam
também as chamadas expedições de caça ao índio visando o aldeamento; uma forma
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disfarçada de escravidão promovida pelos colonos e jesuítas. Merece lembrar também a
atitude ambígua do governo português que proibia a escravidão e autorizava a “guerra
justa” que fazia escravos os prisioneiros, isto até 1757, quando se deu a extinção da
escravidão indígena.
No século XIX, não obstante a extinção da escravidão, a extração da borracha
não dispensou a mão de obra indígena e no Brasil central ocorre o extermínio de tribos
inteiras pela ação de grupos armados que tinham como objetivo o desaparecimento dessa
população que impedia o progresso.
Só no século XX, com a atuação de Rondon e seus colaboradores, os índios
passaram a receber tratamento humanitário. Foram poucos os grupos indígenas
submetidos aos processos de aculturação, nos séculos anteriores, que conseguiram
sobreviver.
Considerando a situação do indígena brasileiro, segundo o senso do IBGE de 2010;
conforme se viu, uma população que não chega a um milhão de indivíduos, entretanto
distribuída em 305 etnias, portanto, em pequenas comunidades, concentradas, sobretudo,
na região da Amazônia, ou seja, região do interior do Brasil que foi menos explorada pelo
colonizador.
Conclui-se que ao longo da história, a presença dos brancos é desastrosa para a
população indígena: diminuição ou perda do território tribal; aquisição de doenças para
as quais não tem imunidade; perda da autonomia econômica e política; depopulação e
destribalização; surgimento de necessidades que não podem satisfazer e desaparecimento.
Considerando as culturas indígenas, ou seja, o modus vivendi dos primeiros habitantes
do Brasil, compreende-se como a posse da terra é de fundamental importância para a
sobrevivência deles. Daí a existência de reservas e parques indígenas.
Uma reserva é uma área oficialmente destinada aos indígenas com meios suficientes
à sua subsistência. Marconi (2001) destaca que em 1975 existiam 11 reservas indígenas.
Em 2013, segundo a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, já existem 36 reservas.
Um parque é uma área na posse dos índios, cujo grau de integração permita
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Estudos Antropológicos e Políticos
assistência econômica, educacional e sanitária dos órgãos da União, em que se
preservem a fauna, a flora e as belezas naturais. Em 1975, segundo Marconi (2001)
eram 04 parques: Xingu, Tumucumaque, Aripuanã e Araguaia.
O fato é que, apesar de a Constituição de 1988 reconhecer o direito originário
dos índios a suas terras, vez que eles já as habitavam antes da formação do Estado
brasileiro, na prática, ainda hoje, mesmo as áreas já demarcadas são frequentemente
invadidas por atividades da agropecuária, da mineração da extração de madeira, da
construção de rodovias e hidrelétricas, resultando no afastamento dos índios de suas
terras, portanto, violação de sua cultura, destribalização e extermínio da etnia4 .
Qual será o futuro desses povos há muito em processo de extinção face ao apetite
voraz do capitalismo?
Ao conferir na tabela abaixo o total de terras indígenas nas cinco grandes regiões
do país, percebe-se o quanto foi, ao longo da história, prejudicial para o índio o contato
com o branco: a presença do índio, a julgar pelo total de terras em cada região, é
inversamente proporcional à presença do branco.
Tabela 01Terras Indígenas - 2000
Grandes Regiões Situação de demarcaçãodemarcadas não-demarcadas
Norte 175 131Nordeste 42 25Sudeste 23 5
Sul 28 33Centro-Oeste 31 13
Brasil 299 207Fonte: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Brasil em Números. Rio de
Janeiro, 2002 (Adaptado).
Política indigenista brasileira
Nos três séculos do Brasil colônia, embora os regimentos expedidos pelas
autoridades recomendassem bom tratamento aos índios, por outro lado, autorizavam as
4 http://brasil500anos.ibge.gov.br/en/territorio-brasileiro-e-povoamento/historia-indigena/terras-indigenas
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chamadas “guerras justas”, ou seja, a guerra contra os índios rebeldes, fazendo escravos
os sobreviventes daquelas guerras.
Os jesuítas empenhados na cristianização dos indígenas apoiavam aquelas
guerras e o consequente extermínio dos indígenas; sem falar que as próprias reduções
ou aldeamentos significavam uma escravização disfarçada, promovida pelos jesuítas até
1759, quando foram expulsos do Brasil.
Em 1757 as leis pombalinas concederam aos indígenas sua total liberdade,
reconhecendo seus direitos de igualdade e o direito de remuneração pelos trabalhos
prestados. Entretanto, em 1808, Dom João VI voltou a autorizar a “guerra justa”,
restabelecendo-se a escravização, sendo que os mais atingidos foram os Botocudo de
Minas Gerais.
Em 1823, José Bonifácio, o patriarca da independência, defende princípios de
justiça e brandura no tratamento dos indígenas, princípios que serviram de base para a
inauguração de uma política indigenista humanitária.
No século XX oficializou-se uma política indigenista, com a criação, em 1910 do
Serviço de Proteção aos Índios – SPI inspirado na filosofia positivista e nas ideias de
José Bonifácio, visando basicamente a assistência, a defesa e a proteção dos silvícolas,
o que nem sempre conseguiu realizar, apesar da exemplar ação humanitária do Marechal
Rondon e de seus companheiros, até os anos de 1930.
O SPI sobreviveu até 1967 quando então foi criada a Fundação Nacional do
Índio – FUNAI. Seu instrumento legal de ação, o Estatuto do Índio foi sancionado em
1973, fixando a política oficial de defesa e assistência ao índio. Entretanto, os propósitos
da FUNAI, segundo Marconi (2001), não vêm sendo cumpridos satisfatoriamente, os
interesses econômicos normalmente prevalecem sobre os interesses indígenas.
O Marechal Rondom foi um reconhecido pacificador que desenvolveu um trabalho
científico, mas antes de tudo humanístico junto aos indígenas brasileiros; jamais apelou à
força ou à violência. Seu lema era: “morrer se preciso for, matar, nunca.” Infelizmente, os
interesses políticos, econômicos e sociais não permitem a continuidade daquela política;
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Estudos Antropológicos e Políticos
o progresso dizima os povos indígenas tomando-lhes as terras.
Do ponto de vista antropológico, ou da defesa do relativismo cultural e da
condenação do etnocentrismo, a prática das missões religiosas (católicas ou protestantes)
que impõem a religião cristã e substitui padrões culturais que lhes parecem exóticos é
criticável pela violência simbólica que fere na alma os povos indígenas, de tal modo que
cristianizar ou civilizar, não raro, tem significado a destruição da identidade do índio.
Nos últimos tempos surgiram motivos para novas esperanças entre os indígenas:
várias instituições retomam a causa indígena: Associação Brasileira de Antropologia;
Comissões pró-índio, Conselho Indigenista Missionário – CIMI; União das Nações
Indígenas – UNIND, formada por líderes indígenas de diversas tribos que pretendem
defender a sua própria causa, várias iniciativas promissoras que certamente são também
responsáveis pelo crescimento da população indígena verificada nos últimos 30 anos
pelo IBGE.
Por fim, registra-se que a história da etnologia brasileira é marcada em sua primeira
fase, do século XVI ao século XVIII, pelo caráter descritivo e empírico das obras dos
cronistas, a exemplo da carta de Pero Vaz de Caminha ao rei Dom Manuel de Portugal,
em 1500, contendo informações e dados etnológicos relevantes. Só a partir da primeira
metade do século XIX tem-se início uma investigação mais sistemática e científica sobre
a população indígena, há cinco séculos às voltas com sérios problemas ligados, como
se viu, à posse e ao uso da terra, à sua cidadania, à sua identidade e à sua própria
sobrevivência.
A questão indígena no Brasil sempre se revestiu de caráter polêmico. Constata-
se que historicamente os interesses dessa minoria étnica quase nunca coincidiram
com os interesses da sociedade nacional. O conflito entre o índio e o não índio esteve
sempre relacionado à posse e ao uso do solo e do subsolo e à atitude etnocêntrica de
desvalorização ou desprezo das culturas indígenas.
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Resumo da Unidade
Nesta unidade, viu-se como Roque de Barros Laraia abordara o conceito
antropológico de cultura, uma realidade múltipla, não obstante a unidade biológica da
espécie humana; como refutara os determinismos biológico e geográfico utilizados
indevidamente para explicar a multiplicidade cultural; como adotara discretamente
uma certa perspectiva histórico difusionista, na linha de Franz Boas e Alfred Kroeber,
criticando o evolucionismo etnocentrista de Tylor e apresentando o relativismo cultural
como abordagem mais adequada face à história e lógica próprias de cada cultura; viu-se
como Laraia mostrara o modo como a cultura age sobre nós, condicionando nossa visão
do mundo, não raro interferindo no plano biológico; como a cultura é uma classificação do
mundo que nos cerca e está sempre em mudança.
Voltando-se para a nossa realidade existencial, focou-se o estudo da cultura
brasileira, ressaltando que se trata de uma cultura complexa, formada por diversas
subculturas alinhavadas por uma cultura dominante. Mergulhou-se na história da formação
da cultura brasileira para se percebê-la como uma cultura marcada pelo estetismo,
pelo mimetismo, caracterizando-se, segundo Darci Ribeiro, como uma cultura espúria,
inautêntica ou alienada.
Ademais, para ver melhor as nervuras do tecido característico da cultura brasileira,
ajustou-se o foco para contemplar a questão dos negros e indígenas no Brasil, ressaltando-
se como os negros e pardos, embora sejam maioria quantitativa na população brasileira,
segundo o último censo do IBGE, configuram-se como minoria política face à situação
marginal dos mesmos em nossa sociedade e cultura.
Por fim, de igual modo, contemplou-se a questão indígena que é debatida desde
os primórdios da sociedade nacional. Inicialmente, o etnocentrismo dos europeus fez
perguntar se os índios eram ou não humanos. Concluindo que se tratava de seres
humanos, sob o pretexto de salvar-lhes a alma, buscara-se cristianizá-los, fazendo-lhes
a guerra justa, escravizando os que sobreviviam, destribalizando-os, tomando-lhes suas
terras, levando centenas de tribos ao desaparecimento. Uma política que, não obstante
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Estudos Antropológicos e Políticos
os avanços havidos com a criação do SPI, da FUNAI e do Estatuto do Índio, continua
em marcha secundarizando os interesses e direitos indígenas já reconhecidos pela
Constituição Cidadã de 1988.
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3Estudos Antropológicos e Políticos
UNIDADE 03 – O SER HUMANO, UM SER ÉTICO. Nesta terceira unidade, enfoca-se especialmente a dimensão ética da vida humana
que aponta diretamente para a dimensão política, a qual, embora já tratada no último
módulo desta unidade, receberá atenção mais ampla e profunda na quarta e última
unidade desta disciplina.
Deste modo, esta unidade contemplará, no modulo 09, chamado de Ética I, a
existência ética do ser humano, onde se verá a distinção entre ética e moral, bem como a
impossibilidade da ausência da ética em nossas vidas; no módulo 10, intitulado Ética II, a
filosofia moral que permitirá um passeio pela história das ideias morais, onde se conhecerá
o racionalismo ético, a ética das paixões e o irracionalismo ético; no modulo 11 sobre a
Liberdade, contemplar-se-á as concepções filosóficas da liberdade, refletindo-se sobre
sua essencialidade para a ética e sobre sua centralidade na vida humana; sendo que no
módulo 10, já se introduz a questão da dimensão política da vida humana, introduzindo a
reflexão sobre a vida essencial e existencialmente política do ser humano.
Módulo 09 – Ética I – A existência ética
Aquele cidadão ocupante de um cargo público que aproveita da circunstância e
indevidamente se apropria dos recursos que deveriam ser aplicados para a promoção do
bem comum é chamado de corrupto; dele se diz comumente que “não tem ética”.
É curioso constatar que, não raro, quem acusa de corrupto o político desonesto que desvia
para seu patrimônio os recursos públicos, é alguém que burla o fisco e não recolhe os
impostos devidos, conforme estabelece a lei, e nem por isso se acha corrupto ou alguém
“sem ética”.
Conheço um caso bastante ilustrativo da mencionada situação. Em uma cidadezinha
das Minas Gerais, um político que gozava da boa fama de ser uma pessoa “ética”,
contratando os serviços de um profissional liberal, enquanto o profissional o atendia, a
conversa, conduzida por aquele profissional, girou em torno dos políticos desonestos ou
corruptos. O profissional, cheio de razão, considerava absurdo o comportamento daqueles
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Estudos Antropológicos e Políticos
políticos que roubam o povo, enriquecendo-se ilicitamente, enquanto a população sofre
com a falta de políticas públicas de qualidade.
Concluída a prestação de serviço, na hora do acerto, o político perguntou quanto
era o serviço e ficou surpreso com a resposta do profissional liberal. Quer saber qual foi?
Aquele profissional que, a julgar pelo seu discurso crítico em relação ao comportamento
dos políticos corruptos, parecia ser alguém comprometido com a moral, respondeu-lhe
perguntando, “então, com recibo ou sem recibo?”.
O político que gozava, pelo jeito, de uma justa fama de “ético”, respondeu-lhe
ironicamente: “com recibo, para você poder continuar criticando de forma coerente os
políticos corruptos”.
Então, qual dos dois cidadãos é mais corrupto ou antiético, aquele que desvia
recursos dos cofres públicos ou aquele que, sonegando o pagamento de impostos,
sequer deixa os recursos chegarem aos cofres públicos? Será que é possível dizer que
alguém é mais ou menos ético?
Bem, para respondermos a essas perguntas, é conveniente introduzir também a
questão da moral. O que é a moral? Ética e moral são coisas diferentes? Qual a relação
entre elas?
Ética e moral
Ética e moral estão sempre entrelaçadas, por isso, muitas vezes, esses termos
são usados como sinônimos, contudo, é possível fazer uma distinção entre eles.
Ética vem do grego ethos que significa “morada”, “casa” ou o lugar onde habitamos,
mas não no sentido material de construção com paredes e telhado. Morada aqui deve
ser entendida no sentido existencial, ou seja, refere-se à maneira de ser do ser humano,
aos seus hábitos, costumes, enfim, à forma de organizar a vida em família. Assim, ética
é um conjunto de princípios e de valores que orientam e guiam, desde uma perspectiva
teórica, as pessoas no seu cotidiano.
Nesse horizonte, segundo Cortella (2013), não há falar de pessoa “sem ética” ou
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3Estudos Antropológicos e Políticos
falar em “falta de ética”, pois, mesmo o político que rouba o povo; o cidadão que sonega
impostos; o bandido que assalta ou aquele cidadão que para o carro em fila dupla, como
seres humanos que são, praticam aquelas condutas a partir de princípios e valores que
utilizam para avaliar, julgar e tomar decisões, portanto, não deixam de ser éticos, ainda
que antiéticos, ou seja, utilizando princípios e valores contrários àqueles princípios e
valores dominantes na sociedade.
Assim, a ética se afirma como uma filosofia moral, uma reflexão sobre os princípios
e valores morais que norteiam a conduta das pessoas.
Moral, por sua vez, vem do latim mores que quer dizer também costume. Contudo,
enquanto a ética se refere ao aspecto teórico da conduta humana, a moral refere-se ao
seu aspecto prático, diz respeito aos costumes, normas e padrões que regem a conduta
das pessoas em uma determinada sociedade ou cultura.
Ao ensejo, vale a pena falar do significado de aético e de amoral. Aético é diferente
de antiético, como amoral é diferente de imoral. Aético e amoral são adjetivos que
qualificam a condição de alguém que é incapaz, ou seja, não possui autonomia para
discernir e decidir eticamente, ou assumir uma conduta moral.
Bem, Marilena Chauí, na última parte de seu Convite à Filosofia, tratando do mundo
da prática, de maneira muito feliz, discute a questão da existência ética e da filosofia
moral. Seguindo o seu esquema, vamos avançar nesta reflexão sobre ética e moral.
Senso moral e consciência moral
Quando encontramos ou vemos pelos meios de comunicação pessoas, sobretudo
crianças e velhos, padecendo na pobreza ou morrendo de fome, sentimos piedade. Quando
vemos que uns esbanjam riqueza e outros penam na pobreza, sentimos indignação diante
da grande desigualdade ou injustiça social. Quando, diante do sofrimento dos flagelados
por enchentes ou outras tragédias, engajamos-nos em campanhas de solidariedade é
porque sentimos responsabilidade.
Muitas vezes, agimos por impulso, sem a reflexão devida, fazendo algo de que
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Estudos Antropológicos e Políticos
depois nos envergonhamos, tendo sentimento de culpa e remorso. Também ocorre
de nos sentirmos contentes e emocionados diante de alguém cujas palavras e ações
revelam honestidade, honradez e compromisso com a justiça, então admiramos aquela
pessoa e desejamos imitá-la.
Não raro, diante da violência de assassinatos brutais, estupros ou linchamentos
sentimos-nos horrorizados. Ficamos indignados diante da acusação e condenação de
um inocente enquanto o culpado permanece livre. Sentimos ira face ao cinismo dos
mentirosos e oportunistas que manipulam e usam outras pessoas para alcançar seus
objetivos.
Todos os mencionados sentimentos (piedade, indignação, solidariedade, vergonha,
remorso, admiração) revelam o nosso senso moral, aquilo que nos diferencia dos outros
animais: “A característica específica do homem em comparação com os outros animais
é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras
qualidades morais”. (Aristóteles apud COTRIM, 2010, 291).
Em nossa vida sempre nos deparamos com situações conflitivas do ponto de
vista moral, verdadeiros dilemas morais, ou seja, precisamos tomar decisões e ficamos
divididos entre duas ou mais opções.
Aquela pessoa querida, com uma doença terminal, que há dias, semanas ou
meses, respira a custa de aparelhos e que, inconsciente, geme de dor. Então, podemos
desligar os aparelhos e deixá-la morrer em paz? O que é correto fazer?
Aquela situação do pai de família desempregado, com vários filhos para tratar e
com a esposa doente, que recebe uma proposta de emprego no qual, entretanto, terá
que agir desonestamente para beneficiar o seu patrão; então, pode aceitar o emprego e
cuidar de sua família ou deve recusá-lo e ver os filhos com fome e sua mulher morrendo?
Aquele cidadão que contratou o serviço do profissional liberal, na hora do acerto,
diante da pergunta “com recibo ou sem recibo?”, que decisão deve tomar? Pagar ou não
pagar o imposto?
Segundo Chauí (2000), situações como essas surgem sempre em nossas vidas,
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manifestando não apenas nosso senso moral, mas colocando a prova nossa consciência
moral, pois exigem que decidamos o que fazer diante de circunstâncias concretas e que
justifiquemos nossas decisões, assumindo responsavelmente todas as consequências de
nossas opções.
Deste modo, o senso moral e a consciência moral, características essenciais do
ser humano, referem-se a valores como justiça, honestidade, generosidade, integridade,
lealdade; a sentimentos relacionados com aqueles valores a exemplo da indignação,
admiração, amor, vergonha; bem como a decisões que nos levam a agir assumindo as
consequências.
Então, qual a diferença entre senso moral e consciência moral? Se na vida real do
ser humano senso moral e consciência moral se entrelaçam, é possível didaticamente
separá-los afirmando que o senso moral refere-se mais aos sentimentos que brotam dos
valores que cultivamos e que vemos mais ou menos respeitados, enquanto a consciência
moral vincula-se diretamente, para além do mero senso moral, ao trabalho de discernir,
em cada circunstância, face aos dilemas morais, decidir e agir de forma coerente com os
valores que cultivamos.
Observa-se, então, que embora sejam diversos valores, múltiplos sentimentos,
várias decisões, no fundo, no fundo, tudo se relaciona com um valor maior: o bem ou o
bom; nossas decisões e ações sempre se dão em função de nosso desejo de felicidade e
em relação ao bem e ao mal, conforme definidos em nossa vida intersubjetiva.
Juízo de fato e juízo de valor
Para se compreender melhor ainda a existência ética dos humanos é importante
distinguir juízos de fato e de valor. Para ficar com o exemplo de Chauí (2000), se dissermos
“Está chovendo”, observa-se que o enunciado se refere a um acontecimento ou fato da
natureza que pode ser constatado, por isso é um juízo de fato. Se afirmamos, “A chuva
é boa para as plantas” ou “A chuva é bela”, observa-se que os enunciados referem-se a
uma interpretação, ou seja, atribuem valor a um acontecimento, por isso é um juízo de
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Estudos Antropológicos e Políticos
valor.
Os juízos de valor se dividem em juízos éticos de valor e juízos éticos normativos.
Os juízos éticos de valor avaliam as coisas, pessoas, ações ou situações como boas ou
más, desejáveis ou indesejáveis, ou seja, definem o que são o bem, o mal, a felicidade,
enquanto os juízos éticos normativos nos dizem que sentimentos ou comportamentos
devemos ter ou adotar para alcançarmos o bem e a felicidade, assim como nos informam
sobre os sentimentos e comportamentos que são condenáveis e que não devemos
cultivar ou adotar.
Ressalta-se que juízos de fato estão ligados à natureza, o reino das relações
necessárias, independente do ser humano, por isso além de povoarem o cotidiano de
nossas vidas estão presentes nas ciências e também na metafísica. Já os juízos de valor
estão ligados à cultura, o reino da liberdade e criatividade humanas, fruto da interpretação
que os seres humanos fazem de si mesmos e de suas relações com a natureza, por isso
são encontrados na moral, na arte, na política e na religião.
Registra-se que por força do processo de endoculturação, aquele processo
educacional pelo qual a criança, desde a primeira infância, vai internalizando as crenças,
os valores e as normas de sua família, comunidade e sociedade, há uma tendência à
naturalização da ética, ou seja, não se perceber que a ética, tal como a cultura de um
modo geral, é criação humana, vinculada a um contexto sócio-histórico específico.
Assim, importa ficar atento para não naturalizar a existência moral, ou seja, a
ética, aquele conjunto de princípios e valores com os quais nos conduzimos na vida, e
a moral, o conjunto das condutas inspiradas naqueles princípios e valores éticos, são
fenômenos histórico-socio-culturais e não uma decorrência da natureza.
Ética e violência
A história das ideias éticas tem como referência central a questão da violência
e dos meios de evitá-la ou controlá-la. Os povos com suas diferentes organizações
socioculturais sempre instituíram conjuntos de valores éticos com padrões sociais de
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comportamento que pudessem garantir a integridade física e psíquica de seus membros,
bem como a conservação da organização social.
Ressaltando que os povos e culturas diversas concebem diferentemente a questão
da violência, Chauí (2000) destaca um pano de fundo comum naquelas concepções:
“... a violência é percebida como exercício da força física e da coação psíquica para obrigar alguém a fazer alguma coisa contrária a si, contrária a seus interesses e desejos, contrária ao seu corpo e à sua consciência, causando-lhe danos profundos e irreparáveis, como a morte, a loucura, a auto-agressão ou a agressão aos outros”. (CHAUÍ, 2000, 336)
É assim que quando uma sociedade define o que entende por mal, por crime
ou vício, está definindo o que julga ser violência contra o indivíduo e a sociedade; e
está estabelecendo a ética como barreira de proteção à integridade física e psíquica da
dignidade humana.
Considerando que nossa cultura e sociedade definem o ser humano, a partir de
sua racionalidade, como sujeito consciente e livre, ou seja, como pessoa, é violência
tudo aquilo que fere sua dignidade de sujeito reduzindo-o a condição de objeto ou coisa.
Contra esse risco permanente de violência colocam-se os princípios e valores éticos.
Os constituintes do campo ético
São necessários três elementos para que haja uma conduta moral: o sujeito moral
ou a pessoa; os valores morais ou virtudes éticas e os meios éticos.
O sujeito moral ou a pessoa é o agente consciente e livre que sabe a diferença
entre bem e mal, certo e errado, permitido e proibido, virtude e vício, e que é capaz
de fazer juízos de valor das situações problemáticas, dos meios disponíveis, deliberar
livremente e agir conforme os valores morais, sendo responsável pelo que faz.
O sujeito moral ou a pessoa para existir deve preencher as condições seguintes:
1ª) ser consciente de si e dos outros, isto é, reconhecer os outros como sujeitos éticos
iguais a ele; 2ª) ser dotado de vontade, ou seja, capacidade de deliberar racionalmente;
3ª) ser responsável, isto é, assumir-se como autor da ação, respondendo pelas suas
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consequências; 4ª) ser livre, ou seja, ser autônomo, oferecendo-se como causa interna
de seus sentimentos e ações.
Os valores éticos e as obrigações morais formam as virtudes éticas que devem ser
realizadas pelo sujeito moral. As virtudes éticas exprimem a maneira como a sociedade,
em um determinado contexto histórico, econômico, político e cultural, define a violência,
o crime, o mal e o vício.
Os meios pelos quais o sujeito realiza o fim ético, como terceiro elemento
constitutivo do campo ético, precisam ser meios éticos. Aquele ditado popular “os fins
justificam os meios”, na ética não é aceitável, pois, por mais nobre e elevado que seja o
fim, considerando que a ética se realiza na vida intersubjetiva e social, se se emprega um
meio antiético, pratica-se violência, ferindo a dignidade da pessoa humana. Assim, fins
éticos exigem necessariamente meios éticos.
Bem, neste módulo, a partir da apresentação de um problema ético, viu-se que o
ser humano existe na ética, ou seja, a existência ética é a condição de possibilidade do
ser humano, não há ser humano fora da ética. Vimos inclusive que não tem sentido falar
que alguém não tem ética ou que uma pessoa tem falta de ética, pois o ser humano é
necessariamente ético, de modo que, quando se diz que alguém não tem ética, certamente
se está querendo dizer que a pessoa é antiética, ou seja, tem valores e princípios éticos
contrários àqueles princípios e valores que constituem a ética hegemônica em uma
sociedade.
Viu-se também a diferença entre juízos de fato e juízos de valor, bem como a
centralidade da questão da violência na história das ideias éticas ou mesmo como
referência básica para constituição da ética.
Por fim, resumiu-se a temática da existência ética falando dos elementos
constitutivos do campo ético: a pessoa, a virtude e os meios.
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3Estudos Antropológicos e Políticos
Módulo 10 – Ética II – A filosofia moral
Considerando que, por um lado, a ética é um horizonte necessário à existência
humana, de modo que não há ser humano ou pessoa sem ética; considerando que, por
outro lado, a pessoa, sujeito consciente e livre, também é condição de possibilidade para
a ética, como compreender a relação entre ética e pessoa?
O fato é que a ética e a pessoa não existem como dados objetivos da realidade.
Uma e outra são instauradas na interação dos indivíduos na sociedade. Os valores dos
quais decorrem as obrigações morais, bem como os meios para realização do ideal ético
são definidos na interação. A pessoa, como sujeito consciente e livre, condição sine qua
nom da conduta moral, também não é um dado da realidade, mas se constitui na relação
intersubjetiva, através do processo de enculturação, no qual é educada para os valores
morais e para as virtudes éticas.
Nesse sentido, cabe perguntar: esse processo de enculturação ou de educação
ética da vontade não seria, ele mesmo, uma violência contra nossa natureza passional,
forçando-nos à racionalidade ativa e impondo-nos o poder da moral social, de tal modo
que a liberdade e a autonomia da pessoa não são reais, mas meras ilusões? Uma questão
que nos impele a examinar o desenvolvimento das ideias éticas na história da filosofia,
conforme sugere Marilena Chauí (2000).
Ética ou filosofia moral
Toda sociedade com sua respectiva cultura institui uma moral, isto é, valores
relativos ao bem e ao mal que definem a conduta correta das pessoas no âmbito daquela
sociedade. Se for uma sociedade complexa que abriga diversas subculturas, pode
inclusive possuir várias morais.
Como se viu no módulo anterior, a ética é uma filosofia moral, ou seja, uma reflexão
que discute, problematiza e interpreta o significado dos valores morais. (Chauí, 2000).
Na história da filosofia, Sócrates é considerado o pai da filosofia moral ou da ética.
Consta que pelas ruas e praças de Atenas Sócrates perguntava aos atenienses: o que
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é a coragem? O que é a justiça? O que é a amizade? Quando lhe respondiam dizendo
serem virtudes, Sócrates indagava: o que é a virtude? Ao definirem a virtude como o agir
em conformidade com o bem, Sócrates questionava: o que é o bem?
Diante das perguntas socráticas os atenienses iam percebendo que não sabiam o
que imaginavam saber, e, não raro até irritados, iam descobrindo que confundiam valores
morais com os fatos da vida cotidiana quando, por exemplo, diziam que “coragem é o que
fulano de tal fez na guerra tal”, ou “é certo fazer tal coisa porque nossos antepassados
assim fizeram e todo mundo faz assim”, ou seja, eles confundiam fatos e valores e
ignoravam as razões porque valorizavam certas coisas e desprezavam outras.
Constata-se em nossa sociedade hoje em dia que aquela confusão, na verdade,
não era privilégio dos antigos atenienses. Quantas pessoas vivem uma vida “bovina”,
isto é, vão caminhando, tal como o boi no matadouro, sem pensar ou refletir nas razões
de seu comportamento; fazem assim porque seus pais assim fizeram e porque todo
mundo faz assim. Bem, qual a razão desse comportamento alienado?
A explicação daquele comportamento é que desde a primeira infância nossos
pensamentos, sentimentos, condutas, ações e comportamentos vão sendo formatados
de acordo com os costumes e padrões de nossa sociedade, vigentes desde antes de
nascermos. Assim, “bebendo com o leite materno” as crenças, os valores e as normas de
nossa família e comunidade, somos levados, pela recompensa que recebemos quando
os seguimos ou pela punição quando os desrespeitamos, a crer que eles são naturais e
não conseguimos perceber que na verdade são culturais.
Fazendo os atenienses pensarem sobre as razões ou sobre a origem e essência
das virtudes (valores e obrigações) que julgavam praticar ao seguirem os costumes da
polis, Sócrates funda a filosofia moral, definindo o campo no qual valores e obrigações
morais são estabelecidos a partir da consciência do agente moral.
Para Sócrates, o conhecimento era a chave da vida moral, pois quem sabe o que
é o bem necessariamente age virtuosamente e só o ignorante é incapaz da virtude.
Neste sentido, Chauí (2000) assegura: “é sujeito ético moral somente aquele que
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sabe o que faz, conhece as causas e os fins de sua ação, o significado de suas intenções
e de suas atitudes e a essência dos valores morais” (CHAUÍ, 2000, 341).
Aristóteles também deu importante contribuição para a filosofia moral ao distinguir
saber teorético e saber prático. O saber teorético é o conhecimento das coisas da natureza
ou das coisas que não dependem de nós, enquanto o saber prático é o conhecimento
daquelas coisas que dependem de nossas ações: poiesis (técnica) e práxis (ação), sendo
que a ética refere-se à práxis.
Na práxis ética, somos o que fazemos e o que fazemos é a finalidade boa da ação
que executamos. Por exemplo, a ação “dizer a verdade” não se separa do agente e nem
de sua finalidade. Na técnica, o agente, a ação e a finalidade do agir estão separados, a
exemplo do que acontece com o carpinteiro que faz uma mesa. A finalidade da técnica é
a fabricação de alguma coisa diferente do agente e de sua ação.
Decorre dessa distinção entre saber teorético e saber prático outra importante
contribuição de Aristóteles: a definição do campo das ações éticas pela deliberação e a
escolha. Não se delibera, por exemplo, sobre as estações do ano ou sobre o movimento
dos astros, não se delibera sobre aquilo que é regido pela Natureza ou pela necessidade.
Delibera-se sobre o que é possível, isto é, sobre aquilo que pode ser ou não ser, dependendo
de nossa vontade e de nossa ação. Deste modo, Aristóteles apontou a vontade guiada
pela razão como elemento fundamental da ética, ressaltando a importância da vontade
racional, da deliberação e da escolha que faz da prudência ou sabedoria prática, a rainha
das virtudes.
“O prudente é aquele que, em todas as situações, é capaz de julgar e avaliar qual a atitude e qual a ação que melhor realizarão a finalidade ética, ou seja, entre as várias escolhas possíveis, qual a mais adequada para que o agente seja virtuoso e realize o que é bom para si e para os outros” (CHAUÍ, 2000, 342).
A ética dos filósofos antigos, segundo Chauí (2000), afirma três grandes princípios
da vida moral: 1) – os seres humanos, por natureza, buscam o bem e a felicidade que
só podem ser alcançados por uma conduta virtuosa; 2) – a virtude é uma força interior
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que consiste na consciência do bem e na conduta definida pela vontade racional; 3) – a
conduta ética é aquela em que o agente sabe o que está em seu poder realizar e age
autonomamente.
Destarte, a vida ética é a vida conduzida pela razão, ou seja, as paixões,
impulsos, apetites e desejos do indivíduo são submetidos à vontade racional do agente
ético que distingue os meios adequados para se alcançar os fins morais, estabelecidos
pelos valores coletivos. Para tanto, é necessário se investir na educação da vontade, a
fim de que, fortalecida, possibilite à razão controlar e dominar as paixões do indivíduo,
orientando sua vida rumo ao bem e à felicidade, conforme definidos socialmente.
O cristianismo: interioridade e dever
Enquanto nas outras religiões antigas a divindade era vinculada a uma nação
ou comunidade politicamente organizada, no cristianismo a relação da divindade é com
os indivíduos que nela creem, portanto, trata-se de uma religião supranacional, fato
que, segundo Chauí (2000), introduz duas importantes diferenças na antiga concepção
ética: 1) – a virtude se define, sobretudo, por nossa relação com Deus e não com a
cidade (polis), sendo a fé e a caridade as duas principais virtudes cristãs, de modo que a
interioridade de cada um passa a ter primazia na ética; 2) – o ser humano possui o livre-
arbítrio, mas, por causa do pecado, o primeiro impulso de sua vontade é para o mal, de
modo que precisa do auxílio divino para se tornar moral; encontrando-se tal auxílio na
revelação bíblica da vontade de Deus.
Marilena Chauí ressalta: “O cristianismo, portanto, passa a considerar que o ser
humano é, em si mesmo e por si mesmo, incapaz de realizar o bem e as virtudes. Tal
concepção leva a introduzir uma nova ideia de moral: a ideia do dever.” (CHAUÍ, 2000,
343).
O Deus do cristianismo revelou à humanidade, através dos profetas e de Jesus
Cristo, sua vontade eterna expressa nas leis do antigo e do novo testamentos; ou seja,
a Bíblia define o bem e o mal, a virtude e o vício, a felicidade e a infelicidade, a salvação
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e o castigo, cabendo aos humanos reconhecer a vontade de Deus e cumpri-la, desde a
intimidade de suas intenções à exterioridade de suas ações.
Chauí (2000) registra que mesmo na modernidade, quando a ética deixa de ter
um fundamento religioso, a ideia do dever, introduzida pelo cristianismo, permanecerá
como marca característica da concepção ética ocidental, podendo-se nela distinguir três
tipos fundamentais de conduta: 1) – a conduta moral ou ética como aquela que se realiza
conforme as normas impostas pelo dever; 2) – a conduta imoral ou antiética que se realiza
contra as normas fixadas pelo dever; 3) – a conduta indiferente à moral quando se refere
a situações em que não vigoram as normas do dever.
Natureza humana e dever
A ideia do dever, introduzida na ética pelo cristianismo, traz um problema. Como
falar em comportamento ético por dever, se o sujeito moral, por definição é autônomo?
O dever não soa como algo externo que nos constrange, de modo que agindo por dever
perderíamos a autonomia?
De acordo com Chauí (2000), no século XVIII, duas respostas contrárias são
elaboradas para esta pergunta: Rousseau e Kant.
Segundo Rousseau, o ser humano é original e naturalmente bom, dotado de
generosidade e benevolência para com os outros, mas a sociedade, ao inventar a
propriedade privada, o teria corrompido, estimulando-o à ganância e a toda sorte de
interesses egoístas, fazendo-o mentiroso e destrutivo. Desse ponto de vista, a consciência
moral e o sentimento do dever seriam inatos no ser humano, equivalendo à voz da natureza
que ressoa em nosso coração, bem como à vontade de Deus que assim nos criou.
Portanto, para Rousseau, o dever não compromete a autonomia do ser humano,
mas simplesmente nos recorda nossa natureza originária. Obedecendo ao dever ou à lei
divina inscrita em nosso coração, estamos obedecendo aos nossos sentimentos mais
profundos, nossas emoções e não a nossa razão, responsável pela sociedade perversa
que aí está.
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Estudos Antropológicos e Políticos
Kant, por sua vez, resgata o papel da razão na ética. Para ele, ao contrário do que
pensa Rousseau, por natureza somos egoístas, ambiciosos, destrutivos e agressivos
na busca por satisfazer nossos insaciáveis desejos, sendo exatamente por isso que
precisamos do dever para nos tornarmos seres morais.
O dever, entretanto, não é algo externo que nos constrange, eliminando nossa
liberdade e autonomia, mas é a expressão da lei moral em nós, de maneira que obedecer
ao dever é obedecer a nós mesmos e não a outrem.
Kant sustenta essa tese a partir da distinção entre razão teórica e razão prática. A
razão teórica tem como conteúdo a realidade da natureza que opera por leis necessárias
de causa e efeito, independentemente de nós. A razão prática tem como conteúdo a
realidade humana que opera por finalidade ou liberdade, portanto, dependente de nós.
Esta distinção mostra que a razão prática instaura, pela liberdade, as normas e
os fins éticos, ou seja, o dever, de maneira que se a razão prática pode criar normas e
fins éticos, pode também impô-los a si mesma, sem que isso acarrete-lhe a perda da
liberdade e da autonomia, requisitos necessários ao agir ético.
Para Kant o dever, pela força da razão, revela-nos nossa natureza moral, pois
sem ele agimos apenas por interesse, ou seja, determinados por motivações físicas,
psíquicas ou vitais, à maneira dos animais dominados pelos seus instintos. Por isso, a
educação da vontade não é uma violência ao ser humano, não fere sua autonomia, como
na introdução deste módulo perguntávamos, mas, ao contrário, o processo educacional
liberta o ser humano do domínio das paixões: apetites, impulsos, desejos e tendências
naturais, introduzindo-o no reino da razão prática ou da liberdade.
Contudo, o dever não se apresenta como um conjunto de normas positivas que
determinam o que fazer e o que não fazer. O dever é uma forma que deve valer para toda
e qualquer ação moral. O dever é um imperativo categórico, ou seja, algo que se impõe
a todas as circunstâncias do agir moral. Imperativo categórico assim formulado: “age em
conformidade apenas com a máxima que possas querer que se torne uma lei universal”.
(CHAUÍ, 2000, 346).
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Ao agir, caso tenhamos dúvidas sobre se o que estamos para fazer é ou não moral,
devemos indagar a nossa consciência moral se aquela nossa ação deve se tornar uma
lei universal; se nossa razão pura prática diz que sim, a máxima daquela ação pode ser
universalizada sem prejuízo para a dignidade humana, então, podemos concluir que se
trata de uma ação moral.
O exemplo clássico dado pelo próprio Kant: mentir é um ato moral? Segundo Kant,
mentir é imoral, pois a universalização da mentira levaria o mundo ao caos e a vida
humana se tornaria impossível.
Deste modo, o dever, que à primeira vista parece ser algo externo e constrangedor
para o agente moral, no pensamento de Rousseau e Kant, embora por caminhos diferentes,
revelou-se compatível e inseparável da liberdade da consciência moral.
Cultura e dever
Conforme Chauí (2000), em Hegel, volta a tona a questão da exterioridade entre
sujeito e dever, na medida em que tematiza a relação sujeito humano – cultura e história,
destacando que as relações pessoais entre indivíduos, consideradas por Rousseau e
Kant, na verdade são determinadas pelas relações sociais fixadas pelas instituições
sociais como a família, a sociedade civil e o Estado.
Hegel sustenta que somos seres históricos e culturais. Significa dizer que, além
da vontade individual subjetiva, o coração ou a razão prática, há uma vontade objetiva,
impessoal, coletiva, social e pública que determina a nossa, inscrita nas instituições e na
cultura, ou seja, aquele conjunto de mores (costumes) e valores de uma sociedade em
uma época determinada, que pela educação ou socialização os indivíduos internalizam,
apropriam-se e livremente respeitam.
Isto posto, o dever é o acordo entre nossa vontade subjetiva individual e a moralidade
própria de uma cultura; ou ainda: “a vida ética é o acordo e a harmonia entre a vontade
subjetiva individual e a vontade objetiva cultural”(CHAUÍ, 2000, 347); de tal modo que a
forma do imperativo categórico de Kant, por ele apresentada como universal, continua
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Estudos Antropológicos e Políticos
válida, desde que o seu conteúdo seja variável segundo as culturas particulares.
Contudo, em razão da condição sócio-histórico-cultural do ser humano, quando
uma totalidade ética ou moralidade específica é experimentada como violência e não
mais como realização ética, a sociedade e a cultura entram em declínio anunciando a
passagem para uma outra formação sociocultural, porque os membros daquela sociedade
e cultura passam a contestar os valores vigentes, agindo de modo a transgredi-los e a
estabelecer novos valores e costumes.
História e virtudes
Chauí (2000) demonstra a determinação histórica do conteúdo dos valores morais,
examinando as virtudes no contexto da antiguidade, a partir da Ética a Nicômaco, de
Aristóteles, no contexto medieval, definidas pelo cristianismo e no mundo moderno,
enfocando o pensamento de Espinosa.
Para Aristóteles um vício é definido pelo critério do excesso ou da falta em relação
a um sentimento ou conduta, enquanto a virtude é definida pelo critério da moderação
daquele sentimento ou conduta. Assim, à virtude da coragem relacionam-se os vícios da
temeridade (excesso) e da covardia (falta); à virtude da prodigalidade relacionam-se os
vícios do esbanjamento e da avareza; à virtude da gentileza, os vícios da irascibilidade
e da indiferença, formando assim um quadro de virtudes e vícios que refletem uma
sociedade que valorizava as relações sociopolíticas entre os seres humanos.
No contexto histórico de expansão e hegemonia do cristianismo as virtudes
teologais (fé, esperança e caridade) se apresentam como as mais importantes, deixando
as virtudes aristotélicas que são as cardeais (coragem, justiça, temperança, prudência)
em segundo plano, enquanto os pecados capitais (gula, avareza, preguiça, luxúria,
cólera, inveja e orgulho) se destacam como vícios. Portanto, virtudes e vícios voltados
para a relação do crente com Deus ou com a lei divina.
Ao enumerar as virtudes morais (sobriedade, prodigalidade, trabalho, castidade,
mansidão, genorosidade, modéstia), Chaui (2000) destaca como surge no cristianismo a
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virtude do trabalho, algo inimaginável para o homem livre da antiguidade greco-romana; e
como o ócio, condição para o exercício da política na sociedade escravista greco-romana,
torna-se o pecado capital da preguiça para os cristãos.
Espinosa, navegando noutras águas, focado na ideia moderna do indivíduo livre,
núcleo da ação moral, parte da ideia de que somos seres naturalmente passionais,
posto que sofremos a ação de causas exteriores a nós. Marilena Chauí explica que “ser
passional é ser passivo, deixando-se dominar e conduzir por forças exteriores ao nosso
corpo e à nossa alma”. (CHAUÍ, 2000, 349).
Ressalta-se que as paixões não são boas nem más, são apenas naturais; que as
três paixões originais das quais todas as outras derivam são: alegria, tristeza e desejo. Da
alegria surgem o amor, a devoção; a esperança; da tristeza, o ódio, a inveja, o medo; e
do desejo, a gratidão, a cólera, a ousadia. Uma paixão triste diminui a nossa capacidade
de agir e de ser, enquanto uma paixão alegre aumenta aquela capacidade em nós.
Na ética espinosana, não se fala em pecado ou em dever, fala-se em fraqueza ou
força para ser, pensar e agir. O vício é submeter-se às paixões, deixando-se governar
pelas causas externas; não é um mal, mas é uma fraqueza para existir, pensar e agir;
enquanto a virtude, não é um bem, mas é ser causa interna de nossos sentimentos, atos
e pensamentos, ou seja, passar da passividade à atividade autônoma.
Deste modo, percebe-se como realmente os valores morais e as obrigações
deles decorrentes, ou seja, as virtudes, mudam-se de tempo em tempo, refletindo as
determinações sócio-histórico-culturais de cada época.
Razão, desejo e vontade
Segundo Marilena Chauí (2000), na tradição filosófica ocidental, identifica-se três
concepções da ética: o racionalismo ético, o emotivismo ético e o irracionalismo ético.
O racionalismo ético é a concepção que atribui à razão o lugar central na vida ética,
sendo que existem duas correntes no racionalismo ético: intelectualista e voluntarista.
Para os intelectualistas a razão identifica-se com a inteligência ou intelecto. Conhecendo-
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se, pela inteligência, o bem e o mal, os fins e os meios morais, a razão ilumina a vontade
no momento da deliberação e da escolha de como agir, definindo assim a conduta ética.
Para os voluntaristas a razão identifica-se com a vontade, podendo ser boa ou má, virtuosa
ou viciosa, sendo que o dever educa a vontade para que seja reta e boa. A vontade boa
orienta nossa inteligência no momento da escolha de uma ação, configurando assim a
conduta ética.
Destarte, segundo Chauí,
“Nas duas correntes, porem, há concordância quanto à ideia de que, por natureza, somos seres passionais, cheios de apetites, impulsos e desejos cegos, desenfreados e desmedidos, cabendo à razão (seja como inteligência no intelectualismo; seja como vontade, no voluntarismo) estabelecer limites e controles para paixões e desejos.” (CHAUÍ, 2000, 351)
A ética racionalista, reconhecendo a importância da educação moral para a
conduta ética, distingue necessidade, desejo e vontade. A necessidade refere-se
a tudo aquilo que o ser humano precisa para conservar sua existência: alimentação,
habitação, agasalho, relações sexuais para procriação, etc. O desejo é a busca do prazer
encontrado na satisfação das necessidades e a fuga da dor presente nas necessidades
não satisfeitas, ou seja, o desejo é uma paixão, um sentimento de contentamento ou
satisfação imaginado que faz do ser humano um ser desejante. A vontade se distingue do
desejo por três características: 1) – implica um esforço para superar obstáculos, por isso
se fala em força de vontade; 2) – exige discernimento e reflexão para tomada de decisão;
3) – refere-se ao possível, isto é, ao que pode ser ou não ser, dependendo de nossa
decisão e ação, sendo, então a vontade necessariamente vinculada à responsabilidade.
Para se compreender o processo que perfaz a conduta ética é necessário prestar
atenção na relação entre desejo e vontade. O desejo, como paixão, fruto da imaginação,
oferece à vontade os motivos interiores e os fins exteriores da ação, mas cabe à vontade,
como decisão que brota da reflexão, a educação moral do desejo.
Sobre esse aspecto, vale a pena ler o próprio texto de Chauí.“Consciência, desejo e vontade formam o campo da vida ética: consciência
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e desejo referem-se às nossas intenções e motivações; a vontade, às nossas ações e finalidades. As primeiras dizem respeito à qualidade da atitude interior ou dos sentimentos internos ao sujeito moral; as últimas, à qualidade da atitude externa, das condutas e dos comportamentos do sujeito moral”.(CHAUÍ, 2000, 352).
Isto posto, para o racionalismo ético, diferentemente do emotivismo e irracionalismo
éticos, a educação é fundamental para o empoderamento da razão que impedirá a
liberdade humana de se sucumbir sob os efeitos de paixões incontroláveis.
Ética das emoções e do desejo
O emotivismo ético é a concepção filosófica que ao invés da razão coloca a
emoção como centro da vida ética. Inspirando-se em Rousseau, os emotivistas afirmam
a bondade natural de nossos sentimentos e paixões, defendendo a utilidade dos mesmos
para nossa sobrevivência em sociedade, cabendo à ética evitar a violência e promover
relações justas entre os seres humanos.
Nesta mesma perspectiva, há outra corrente que se opõe radicalmente à ética
racionalista, contestando a intervenção da razão sobre o desejo e as paixões. Por causa
de seu radicalismo contra a razão essa corrente é chamada de irracionalismo ético. Tal
concepção tem em Nietzsche um de seus principais representantes e, em linhas gerais,
seguindo os passos de Chauí (2000), resume-se como se segue.
A moral racionalista é repressora da liberdade, transformou tudo o que é natural e
espontâneo nos seres humanos em vício e lhes impôs a virtude que oprime a natureza
humana. Paixões, desejos e vontade referem-se à vida e à expansão de nossa força
vital; bem e mal são invenções da moral racionalista criada pelos fracos para dominar os
fortes, assim como inventaram o dever e impuseram o castigo para os transgressores das
normas. A moral dos fracos é produto do ressentimento e da inveja, eles odeiam e temem
a vida (paixões, desejos e vontade forte), por isso inventaram uma outra vida, futura,
eterna e incorpórea que será dada como prêmio a quem sacrificar seus impulsos vitais,
aceitando os valores dos fracos.
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Para os filósofos anti-racionalistas a moral dos fracos é a moral dos escravos que
renunciaram à liberdade verdadeira, a exemplo da ética socrática, da moral kantiana, da
moral judaico-cristã e de todas aquelas utopias que afirmam a ilusória igualdade entre
os seres humanos (socialismo e democracia). Aqueles pensadores afirmam a ética dos
senhores ou a moral aristocrática, isto é, a moral dos melhores, fundada nos instintos
vitais ou na vontade de poder, a exemplo dos guerreiros belos e bons das sociedades
antigas, baseadas nas guerras e disputas pela glória e pela fama.
Marilena Chauí, face ao pensamento dos irracionalistas, conclui este tópico de
seu estudo pontuando duas questões: 1) – Registra-se que a ética surgiu como um
esforço da sociedade para limitar e controlar a violência, ou seja, o uso da força contra
outrem ou contra o próprio agente, para isso instituiu valores, meios e fins. Se a ética
racionalista tornou-se ela mesma violenta, como acusam os anti-racionalistas, resta
saber se a moral aristocrática por eles proposta, com sua violência, poderá exercer um
papel libertador e suscitar uma nova ética. 2) – O grande mérito da moral anti-racionalista
é desmascarar a hipocrisia e violência da moral vigente, tal como fizeram também Freud,
Bergson e Marx, e alimentar o sonho de se resgatar o ideal de felicidade destruído pela
repressão e pelos preconceitos. Contudo, fica posta a dificuldade: nós devemos criticar
e abandonar é a razão ou a racionalidade repressora e violenta, substituindo-a por uma
nova racionalidade?
Ética e psicanálise
O inconsciente, conceito central da psicanálise, traz problemas para ética? Diante
da afirmação da psicanálise de que somos nossos impulsos e desejos inconscientes; de
que não somos senhores em nossa própria casa; de que nossos atos são realizações
inconscientes de motivações sexuais, como manter as ideias tão caras à ética da vontade
livre que age por dever, da consciência responsável ou da autonomia moral?
Não se pode ignorar que o inconsciente possui duas faces antagônicas: o id ou
a libido sexual, em busca de satisfação, e o superego ou censura moral internalizada
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pelo indivíduo em seu processo de socialização, de tal modo que, na expressão de
Chauí (2000,356), “nossa psique é um campo de batalha inconsciente entre desejos e
censuras”, ou seja, um campo de batalha em que o id e o superego travam uma luta
diuturna, sendo que uma vitória do id significa violência aos outros, e uma vitória do
superego, uma violência a si mesmo, de tal modo que apenas uma consciência fortalecida
e crítica poderá arbitrar entre id e superego de modo a se evitar as neuroses e psicoses
resultantes da hipertrofia de um ou de outro.
Deste modo, conclui-se que o rigor excessivo do superego, ou seja, uma moralidade
rígida que produz um ideal para o ego irrealizável é violenta e antiética pois levará os
sujeitos reprimidos a transgredi-la ou a resignar-se passivamente, confundindo neurose
e moralidade. Assim, o que a psicanálise propõe é absolutamente compatível com a
ética: uma moral que harmonize os desejos inconscientes, as formas de satisfazê-los
e a vida social; o que só se realizará pela consciência e pela vontade livre que seriam
então instâncias moderadoras do id e do superego, com base no critério da ausência da
violência interna e externa.
Isto posto, recorda-se como esse módulo se iniciou perguntando pela possibilidade
da ética, ou seja, se a educação da vontade ética não se constituiria numa violência à
natureza passional do ser humano.
Registra-se que na revisão da história da filosofia moral, a partir de Sócrates e do
humanismo dos antigos pensadores, passando-se pelo pensamento cristão, responsável
pela introdução da ideia do dever no campo da ética, chegando-se à razão prática de
Kant, descobriu-se, no horizonte do racionalismo ético, que a ética não só é possível, mas
constitui-se como uma necessidade própria da condição humana.
Viu-se também como na perspectiva do emotivismo ético, em sua corrente mais radical,
liderada por Nietzsche, digna de ser chamada de anti-racional, o estudo de Marilena
Chauí, valorizando a pertinência das críticas ao racionalismo ético, não deixou de sugerir
a impossibilidade de se escapar da humana natureza racional, indagando sobre se não
seria o caso de, ao invés de se atacar a razão, como faz o emotivismo radical, atacar
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antes a contraditória racionalidade vigente, buscando instaurar uma nova racionalidade.
Por fim, concluiu-se o estudo reconhecendo-se, também graças à psicanálise, a
importância da ética como característica essencial do ser humano.
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Módulo 11 – A liberdade
Neste módulo, vamos pensar a liberdade do ponto de vista filosófico. Vamos
contemplá-la como problema, procurando compreender as soluções apontadas pelos
filósofos para esse problema fundamental da vida humana; vamos ver sua relação
fundamental com a ética e compreender como se realiza em nossa vida.
A liberdade como problema
O ser humano é realmente um ser livre? O que é a liberdade? Qual a possibilidade
da liberdade? Quais são as principais teorias filosóficas sobre a liberdade? Como
compreender a liberdade?
A questão da liberdade, como se viu nos módulos anteriores, está na base da
ética. A liberdade ou autonomia do agente é requisito essencial para que a ação seja
ética. Sem liberdade o agente é aético, o que não se confunde com antiético, e não
há responsabilidade em seu agir, pois o sujeito só pode responder pelo que assumiu
livremente fazer.
Instigando-nos a pensar sobre o tema, pergunta Marilena Chauí:
“O que está e o que não está em nosso poder? Até onde se estende o poder de nossa vontade, de nosso desejo, de nossa consciência?... Até onde alcança o poder de nossa liberdade?... O que está inteiramente em nosso poder e o que depende inteiramente de causas e forças exteriores que agem sobre nós?”(CHAUÍ, 2000, 357)
Para a autora do clássico Convite à filosofia, filosoficamente, o problema da
liberdade se apresenta sob a forma de dois pares opostos: 1) – o par necessidade –
liberdade, e 2) – o par contingência-liberdade.
O que é necessidade? “Necessidade é o termo empregado para referir-se ao todo
da realidade, existente em si e por si, que age sem nós e nos insere em sua rede de
causas e efeitos, condições e consequências.” (CHAUÍ, 2000, 358). A necessidade, como
sugere o sentido comum desta palavra, exclui a liberdade. Enquanto a liberdade fala de
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Estudos Antropológicos e Políticos
ser ou não ser, implica desejo, vontade, decisão, escolha e ação, enfim, depende do ser
humano; a necessidade é, necessariamente, e não pode não ser; ou seja, a necessidade
não depende do ser humano.
O par necessidade-liberdade, na expressão de CHAUÍ (2000), é formulado, em
termos religiosos, como fatalidade-liberdade, ou seja, quando, queiramos ou não, somos
governados por forças transcendentes superiores às nossas forças, assim como, em
termos científicos, fala-se em determinismo-liberdade, ou seja, quando, tanto nas ciências
naturais como humanas, somos vistos como completamente determinados pelas leis e
causas que condicionam nossos pensamentos, sentimentos e ações.
O que é contingência? A contingência é o acaso, ou seja, refere-se à mutabilidade
e à imprevisibilidade da realidade, de maneira que é impossível deliberar e decidir
racionalmente tal como a liberdade exige.
Resume Marilena CHAUÍ:
“Necessidade, fatalidade, determinismo significam que não há lugar para a liberdade, porque o curso das coisas e de nossas vidas já está fixado, sem que nele possamos intervir. Contingência e acaso significam que não há lugar para a liberdade, porque não há curso algum das coisas e de nossas vidas sobre o qual pudéssemos intervir.(CHAUÍ, 2000, 359).
O fato é que a realidade é feita de situações necessárias ou contingentes,
situações que não dependem de nós, situações adversas e opressoras, contra as quais
nada podemos fazer.
Em nossa vida, as situações necessárias não são apenas as situações ligadas
à natureza, reino da necessidade, onde causa e efeito imperam inelutavelmente, mas
também daquelas situações ligadas à cultura, onde as normas-regras que vigoram
não foram estabelecidas por nós, entretanto, de forma poderosa, pautam nossa vida
cotidiana.
Assim, por um lado, o indivíduo recebe gratuitamente, como dom irrecusável, por força
de sua carga genética, seu sexo, sua cor, sua estatura, enfim, seu organismo com todas
as suas necessidades a serem satisfeitas, conforme reclamam as leis necessárias
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da natureza; ademais, o indivíduo, logo após o nascimento, começa necessariamente
a internalizar as crenças, os valores, as normas-regras da cultura de sua família e
comunidade, de modo que sua visão do mundo e da vida será aquela visão possibilitada
pelo seu processo de socialização; ele verá e sentirá o mundo conforme lhe possibilitam
as normas-regras de sua cultura, consequentemente seu comportamento e suas ações
se darão de acordo com aquelas normas-regras que já existiam antes de ele nascer; por
outro lado, além do obstáculo da necessidade, como se viu, a liberdade se vê às voltas
também face à contingência, ou seja, aqueles acontecimentos fortuitos, imprevisíveis ou
aquelas situações que acontecem por acaso, atingindo a vida e as possibilidades de ser
de uma pessoa.
Nessa perspectiva desenhada pelos pares necessidade-liberdade e contingência-
liberdade, como falar de liberdade? Não seria a liberdade apenas um sonho ou uma ideia
ilusória?
Três concepções filosóficas da liberdade
Face ao problema da necessidade e da contingência que à primeira vista excluiria
a possibilidade da liberdade e da ética, os filósofos, ao longo da história da filosofia,
procuraram definir o campo da liberdade possível. Os diversos posicionamentos filosóficos
sobre a liberdade podem ser enfeixados em três teorias filosóficas da liberdade.
Uma primeira teoria filosófica da liberdade foi exposta por Aristóteles, no século
IV a. C. e explicitamente retomada por Sartre, no século XX. Para esses pensadores
a liberdade é a possibilidade de se escolher entre alternativas existentes, realizando-
se, portanto, como decisão e ato voluntário, ou seja, a liberdade é o poder pleno e
incondicional da vontade para se autodeterminar; realiza-se quando o próprio agente é a
causa da ação.
Nesta perspectiva a liberdade se opõe ao que é condicionado externa ou
internamente pela necessidade e mesmo àquilo que acontece aleatoriamente, sem
escolha deliberada, como no caso da contingência.
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À crítica de que a vontade não seria livre porque é determinada pela inteligência
ou razão, os filósofos posteriores a Aristóteles explicaram que a inteligência apenas
inclina a vontade numa certa direção, mas não a obrigaria a segui-la, tanto é assim que
na realidade podemos agir na direção contrária àquela apontada pela inteligência ou
razão.
Desta reflexão, conclui-se que “a liberdade será ética quando o exercício da
vontade estiver em harmonia com a direção apontada pela razão.”(CHAUÍ, 2000, 361).
Sartre radicalizou a concepção aristotélica ao afirmar que a liberdade é a escolha
incondicional que o próprio ser humano faz de seu ser e de seu mundo. Para ele o ser
humano é condenado a ser livre, ou seja, a liberdade é a própria essência da humanidade.
O humanismo sartriano funda-se no paradoxo da liberdade necessária. O ser do
ser humano é plasmado a partir do exercício da liberdade. Em todas as circunstâncias
da existência o ser humano é livre, pois mesmo quando queda-se resignado, aceitando
a situação que julga ser um obstáculo intransponível, esta posição é produto de uma
decisão, portanto, da liberdade exercida. Noutras palavras, a vida humana é exercício
da liberdade; viver é sempre escolher algo, mesmo quando escolhemos não escolher,
estamos escolhendo.
A segunda teoria filosófica da liberdade foi desenvolvida pelo estoicismo, corrente
filosófica que surgiu no final do século IV a. C., e foi retomada no século XVII por Espinosa
e no XIX com Hegel e Marx.
Embora esta concepção mantenha elementos da concepção aristotélica, como a
ideia de autodeterminação ou ser causa de si mesmo; em relação ao agente, desloca a
referência do indivíduo para a totalidade, ou seja, a liberdade não está no ato de escolha
realizado pela vontade individual, mas na atividade do todo, do qual os indivíduos são
partes. (CHAUÍ, 2000, 361).
A totalidade pode ser a natureza (estoicismo), a cultura (Hegel) ou a formação
histórico-social (Marx) que tem em si os princípios, regras ou normas de ação
estabelecidos por ela mesma, de modo que age autonomamente e não por força de
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condicionamentos externos. Observa-se que nesta concepção não há oposição entre
liberdade e necessidade, mas liberdade e necessidade estão compatibilizadas, vez
que ser livre não é escolher e deliberar, mas agir em conformidade com a natureza da
totalidade, ou seja, agir conforme as regras ou normas da totalidade.
Neste horizonte, cabe a pergunta: “o que é então a liberdade humana?”. Segundo
Chauí (2000), são duas as respostas para essa questão: em primeiro lugar, afirma-se
que o todo é racional, logo as partes também o são, de maneira que o ser humano é livre
quando age em conformidade com as leis do todo, para o bem da totalidade; em segundo
lugar, afirma-se que as partes são de mesma essência que o todo, assim são racionais e
livres, de modo que a liberdade humana seria tomar parte ativa na atividade do todo, ou
seja, viver criticamente, conhecendo as normas que regem o todo de modo a não apenas
sofrer suas influências mas também influenciá-las.
Por fim, a terceira concepção de liberdade faz como que uma síntese entre a teoria
aristotélico-sartreana para a qual a liberdade é o poder incondicional para escolher e agir,
e a teoria de tipo estoico-hegeliano segundo a qual nossas escolhas são condicionadas
pela totalidade natural e histórica em que nos situamos.
Para esta terceira teoria, elaborada a partir de Espinosa, Hobbes (Século XVII) e
Voltaire (Século XVIII), de acordo com Chauí (2000), a liberdade é um ato de decisão e
escolha entre vários possíveis, mas não se trata da liberdade de querer alguma coisa,
mas sim de fazer alguma coisa quando temos o poder para fazê-la. Introduz-se nesta
concepção de liberdade a noção de possibilidade objetiva, afinal de contas, querer não é
poder. A possibilidade não pode ser apenas sentida subjetivamente por nós, mas precisa
estar inscrita na ordem da necessidade, ou seja, é necessário que haja indicadores
objetivos de que a situação pode ser mudada por nós, sob certas condições.
Isto posto, “a liberdade é a capacidade para perceber tais possibilidades e o poder
para realizar aquelas ações que mudam o curso das coisas, dando-lhe outra direção ou
outro sentido.”(CHAUÍ, 2000,362).
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Estudos Antropológicos e Políticos
Liberdade e possibilidade objetiva
Marilena Chauí, depois de apresentar o problema filosófico da liberdade, utilizando
para tanto poemas que versam sobre aquele tema; depois de apresentar, sempre
se referindo aos poemas selecionados, as três teorias filosóficas sobre a liberdade,
recorrendo-se mais uma vez a Carlos Drummond de Andrade, evidencia sua preferência
pela terceira concepção de liberdade, aquela que introduz a ideia de possibilidade
objetiva.
A autora distingue o provável do possível. Para ela o provável é o previsível, ou
seja, algo que podemos calcular e prever, porque é uma probabilidade contida nos fatos
que analisamos. O possível, por sua vez, é o que vem à existência graças ao nosso
agir sobre as circunstâncias que o anunciavam como apenas provável. Deste modo, “a
liberdade é a consciência simultânea das circunstâncias existentes e das ações que,
suscitadas por tais circunstâncias, nos permitem ultrapassá-las.” (CHAUÍ, 2000,362).
Para melhor compreensão do complexo fenômeno da liberdade humana,
passemos a palavra à própria CHAUÍ:
“Nosso mundo, nossa vida e nosso presente formam um campo de condições e circunstâncias que não foram escolhidas e nem determinadas por nós e em cujo interior nos movemos. No entanto, esse campo é temporal: teve um passado, tem um presente e terá um futuro, cujos vetores ou direções já podem ser percebidos ou mesmo adivinhados como possibilidades objetivas. Diante desse campo, poderíamos assumir duas atitudes: ou a ilusão de que somos livres para mudá-lo em qualquer direção que desejarmos, ou a resignação de que nada podemos fazer.”(CHAUÍ, 2000, 363).
As duas atitudes prováveis, em nossa cultura, não raro, efetivamente, são atitudes
possíveis. Contudo, nos assegura Chauí,
“a liberdade, porém, não se encontra na ilusão do “posso tudo”, nem no conformismo do “nada posso”. A liberdade se encontra na disposição para interpretar e decifrar os vetores do campo presente como possibilidades objetivas, isto é, como abertura de novas direções e de novos sentidos a partir do que está dado.”(CHAUÍ, 2000. 363).
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Assim, interpretando Marilena Chauí, liberdade é a capacidade de discernir o
provável e transformá-lo em possível, ou seja, a capacidade para darmos, através de nossa
ação, em quatro momentos, um sentido novo ao que parece fatalidade. Por exemplo, se
vivemos em uma sociedade que nos ensinam valores morais como “justiça”, “igualdade”,
“veracidade” ou “direito à felicidade”, entretanto, é uma sociedade contraditória porque
está organizada de um modo que impede a concretização daqueles valores, o primeiro
momento da liberdade, é a tomada de consciência daquela contradição entre o real e o
ideal. O segundo momento seria a busca das brechas existentes no real por onde o possível
possa passar, ou seja, aqueles valores ideais possam se realizar. O terceiro momento da
liberdade seria o da nossa decisão de agir e da escolha dos meios para a ação, e, por
fim, o último momento seria a realização da ação que transforma a possibilidade numa
realidade.
Isto posto, percebe-se que “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”; nosso desejo
e nossa vontade não são incondicionados, como queria a teoria aristotélico-sartriana da
liberdade, mas os condicionamentos não são obstáculos à liberdade, como parece sugerir
a teoria estoico-hegeliana da ação dentro da totalidade, ao menos em relação ao indivíduo;
são antes condições e meios pelos quais a liberdade pode exercer-se, conforme a teoria
da possibilidade objetiva.
Vida e morte
Marilena Chauí conclui seu estudo sobre a liberdade propondo uma reflexão,
recheada de citações diretas e indiretas de vários filósofos, que evidencia como a ética e,
portanto, a liberdade estão na base da vida humana.
Ela inicia sua reflexão falando como apenas o ser humano existe, isto é, vive e morre.
A vida e a morte são acontecimentos significativos para o ser humano, diferentemente dos
outros animais cuja vida apenas começa e acaba.
Viver e morrer revelam a finitude ou temporalidade humana. Na verdade, somos
tempo e mudança, não somos um ser-em-si, estamos continuamente sendo. A máxima
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Estudos Antropológicos e Políticos
do existencialismo de que “no ser humano, a existência precede a essência” quer dizer
exatamente isso: nossa essência é a síntese final de toda nossa existência.
Em nossa existência cotidiana, ao longo do tempo, por entre vicissitudes, vamos
tecendo nossa vida ao exercitarmos, no encontro com o outro, a nossa liberdade.
Assegura-nos Marilena Chauí, viver é estar com os outros. Morrer é estar só. A essência
da morte é a solidão, enquanto a essência da vida é intercorporeidade e intersubjetividade.
Considerando que “ninguém é uma ilha”; sabendo que a vida humana é
naturalmente intersubjetiva, entende-se que a vida humana é necessariamente ética,
pois, no encontro com o outro, no espaço da intersubjetividade, tal como ocorre no
diálogo, vamos negociando cada lance e entrelaçando os fios de nossas vidas.
“Na experiência do diálogo, constitui-se entre mim e o outro um terreno comum, meu pensamento e o dele formam um só tecido, minhas falas e as dele são invocadas pela interlocução, inserem-se numa operação comum da qual nenhum de nós é o criador. Há um entre-dois, eu e o outro somos colaboradores e, numa reciprocidade perfeita, coexistimos no mesmo mundo. No diálogo, fico liberado de mim mesmo, os pensamentos de outrem são dele mesmo, não sou eu quem os formo, embora eu os aprenda tão logo nasçam e mesmo me antecipe a eles, assim como as objeções de outrem arrancam de mim pensamentos que eu não sabia possuir, de tal modo que, se lhe empresto pensamentos, em troca ele me faz pensar. Somente depois, quando fico sozinho e me recordo do diálogo, fazendo deste um episódio de minha vida privada solitária, quando outrem tornou-se apenas uma ausência, é que posso, talvez, senti-lo como uma ameaça, pois desapareceu a reciprocidade que nos relacionava na concordância e na discordância.” (MERLEAU PONTY apud CHAUÍ, 2000, 366).
CHAUÍ (2000) ressalta que muitos filósofos, exatamente em razão da
intersubjetividade ou reciprocidade essencial da vida humana, terreno onde devem
crescer a liberdade e a ética, exaltaram a amizade (philia) como virtude que expressa o
mais alto ideal da justiça: La Boétie contrapôs a amizade à servidão voluntária afirmando
que “não pode haver amizade onde há crueldade e injustiça”; Espinosa destacou como
“somente os seres humanos livres são gratos e reconhecidos uns aos outros”; Epicuro
assegurou que “a justiça não existe por si própria, mas encontra-se sempre nas relações
recíprocas, em qualquer tempo e lugar em que exista entre os humanos o pacto de não
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3Estudos Antropológicos e Políticos
causar nem sofrer dano”. (CHAUÍ, 2000,367).
Por fim, considerando que a ética possui uma dimensão valorativa e normativa;
considerando que valores e normas são exteriores e anteriores a nós, elaborados pela
sociedade e pela cultura, como a liberdade entra nessa história e se torna fundamento
essencial da ética e da nossa vida? A liberdade é o poder fundamental que o sujeito
possui para, na intersubjetividade, interpretar sua situação, valores e normas vigentes,
e então decidir aceitá-los ou recusá-los, criando, conforme possibilidade objetiva, novos
valores e normas ao tomar, responsavelmente, novo rumo em sua trajetória existencial.
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Estudos Antropológicos e Políticos
Módulo 12 – A vida política
O Analfabeto Político“O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo.” (BRECHT, Bertolt apud MONIZ, 2014)
Neste módulo, inicia-se o estudo da questão política. A expectativa que se tem
ao propor esse estudo no âmbito da disciplina humanidades é não só possibilitar a
compreensão do ser humano, a quem Aristóteles na antiguidade definiu como um “animal
político”, mas também contribuir para superação de uma certa indiferença em relação à
política muito comum em nossa cultura, responsável pelo perverso analfabetismo político.
Adianta-se que a principal referência neste estudo sobre a política será o trabalho
de Marilena Chauí. Adotar-se-á o esquema por ela proposto a partir do capítulo 7 da
unidade 8 de seu livro Convite à filosofia.
Paradoxos da política
O que é a política? Quais os sentidos da palavra política? Qual a relação entre
política e poder?
CHAUÍ (2000) apresenta várias situações em que aparece a palavra política,
para possibilitar a compreensão dos vários significados de política, bem como de seus
paradoxos ou contradições: “estudante estuda, não faz política”; “os estudantes estão
alienados, não se interessam por política”, “a política do sindicato” entre outras.
Entre os vários significados da palavra política usada nas mais diversas situações,
destaca-se a política como a maneira de uma instituição pública ou privada definir e
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3Estudos Antropológicos e Políticos
realizar sua gestão; ou seja, organizar e gerir uma empresa envolve relações de poder; é
nesse sentido geral que se fala em política da empresa, política do hospital ou política da
escola.
Um outro uso mais específico e preciso da palavra política, segundo CHAUÍ (2000),
é aquele em que a palavra apresenta três significados inter-relacionados, a saber:
1) - Política como governo, entendido como direção e administração do poder
público, sob a forma de Estado, ou seja, ação dos governantes que detêm a
autoridade para dirigir a coletividade e ou mesmo a ação, de apoio ou não, da
coletividade aos governantes de plantão. No horizonte da política, entendida
como relação entre governantes e governados, é comum as pessoas do povo
confundirem governo e Estado. “Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra
coisa”. Governo é o conjunto dos programas, projetos e ações que uma parte da
sociedade propõe para o todo que a compõe; enquanto o Estado é um conjunto
órgãos ou instituições permanentes que permitem a ação dos governos.
2) - Política como atividade de especialistas e profissionais (políticos)
pertencentes aos partidos que disputam o direito de governar, ocupando cargos
e postos no Estado. Neste sentido a política se apresenta para o povo como
algo distante, coisa de especialista, ou seja, a política é feita “por eles” e não
“por nós”.
3) - Política como conduta duvidosa, não muito confiável, um tanto secreta,
cheia de interesses particulares dissimulados e frequentemente contrários aos
interesses gerais da sociedade, por isso não raro ilegítimos e mesmo ilegais.
Há quem chame a essa prática, para diferenciar daquela primeira acepção
mencionada, de politicagem, sendo, portanto, característico da politicagem
que o interesse privado atropele o interesse público, enquanto a política, no
primeiro sentido, caracteriza-se essencialmente pela primazia do interesse
público sobre o privado.
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Estudos Antropológicos e Políticos
Observa-se que entre o primeiro e o terceiro sentido da palavra política há
expressiva distinção, provocada pelo segundo significado, ou seja, pela prática política
corrupta dos políticos profissionais. O primeiro se refere a algo geral, positivo, que
concerne à sociedade como um todo, definindo leis, garantindo direitos e criando espaço
inclusive de contestação e de resistência, enquanto o terceiro afasta a política do alcance
do povo e a faz surgir como algo maléfico para a sociedade.
Em razão deste paradoxo fundamental outros surgem. CHAUÍ (2000) enumera
algumas expressões muito frequentes em nossa sociedade em que o uso da palavra
“política” é paradoxal; expressões utilizadas não por pessoas do povo, mas por
magistrados e líderes políticos: “que o julgamento do pedido não seja político”; “foi um
julgamento legal e não político”; “trata-se de uma greve política”. Por que tais expressões
revelam o paradoxo da política?
O caráter paradoxal das expressões está no fato de que, do ponto de vista daquele
primeiro sentido da política, um julgamento necessariamente é político, assim como uma
greve só pode ser política, entretanto, nas frases acima mencionadas, a palavra política
foi utilizada como sinônimo de algo perverso, maligno, perigoso, ou seja, foi usada no
sentido de “politicagem” e não de “política” no sentido positivo.
Esse uso da política no sentido de algo perverso, maligno e perigoso revela outros
paradoxos: como uma invenção humana que foi concebida e veio à luz para possibilitar
a vida pacífica na sociedade pode ser percebida como maléfica e violenta? O que
aconteceu para que a política se tornasse uma fardo de que gostaríamos de nos livrar?
Uma situação que alimenta esse paradoxo é o fato de a mídia divulgar cotidianamente
acontecimentos políticos que reforçam a visão pejorativa da política: mentiras, corrupção,
fraude, mau uso das leis, impunidades, serviços públicos de má qualidade, maus tratos
da população por parte dos servidores públicos, enfim, uma série de mazelas que, no
que pese serem necessárias as denúncias, trazem como efeito colateral o agravamento
da descrença e da indiferença em relação à política. Talvez um remédio eficaz, ao menos
para neutralizar o desequilíbrio que as necessárias denúncias provocam, fosse que as
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3Estudos Antropológicos e Políticos
boas práticas tivessem tanto espaço na mídia quanto as más.
Por fim, diante do quadro paradoxal da política, é necessário saber que aquelas
práticas politiqueiras, que tornam desprezível a política, só podem ser combatidas e
superadas através da própria política, pois a apatia social é uma forma passiva de fazer
política que alimenta a politicagem em detrimento da verdadeira política.
O vocabulário da política
CHAUÍ (2000) ressalta que o próprio vocabulário utilizado na política revela sua
origem greco-romana.
Política vem de polis, palavra grega que significa cidade, entendida como
comunidade organizada, formada pelos politikos ou cidadãos, homens livres e iguais,
nascidos no solo da polis ou cidade e que possuem dois direitos inquestionáveis: isonomia
e isegoria, sendo isonomia a igualdade perante a lei e isegoria, o direito de expor e
defender em público suas ideias a respeito das questões que são de interesse de todos
os cidadãos.
A expressão grega ta politika equivale a negócios públicos dirigidos pelos politikos
ou cidadãos. Na língua dos romanos, ou seja, em latim, ta politika diz-se res pública, isto
é, coisa pública ou os negócios públicos dirigidos pelo populus romanus, ou seja, pelo
povo de Roma, formado pelos patrícios ou cidadãos livres e iguais, nascidos no solo de
Roma.
A palavra civitas é a tradução latina de polis, significa pois a cidade como ente
público e coletivo. Polis e civitas correspondem, no vocabulário político moderno, ao
Estado, o conjunto das instituições públicas (leis, recursos ou patrimônio público, serviços
públicos).
Ta politika e res publica correspondem ao que se designa modernamente por
práticas políticas, referindo-se ao modo de participação no poder e aos conflitos e acordos
na tomada de decisões.
Observa-se então que o próprio significado desse vocabulário básico da política,
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Estudos Antropológicos e Políticos
ao qual poder-se-iam acrescentar outros termos ainda: democracia, aristocracia,
despotismo, anarguia, monarguia, império, república, ditadura, senado e sociedade,
revela que a política foi inventada pelos gregos e romanos.
O poder despótico
Considerando a afirmação de que foram os gregos e os romanos que inventaram
a política, ou seja, o poder e a autoridade políticos, cabe investigar como era então o
poder e a autoridade nos reinos e impérios existentes antes dos gregos e romanos.
Antes da invenção do poder político pelos gregos e romanos, vigorava o poder despótico
ou patriarcal. O que significa o poder despótico ou patriarcal?
Despótico ou despotismo vem da palavra grega despotes que equivale à expressão
latina pater-familias, ou seja, o patriarca, ou o chefe de família, cuja vontade absoluta é a
lei: “aquilo que apraz ao rei tem força de lei”. O déspota ou patriarca tinha poder absoluto,
decidia sobre a vida e a morte de todos os membros do grupo. Era o monarca, ou seja,
o único princípio organizador da vida coletiva, definia tudo o que era proibido e o que era
permitido fazer.
Embora a origem desse poder absoluto fosse a propriedade da terra e dos
rebanhos, afirmava-se sua origem divina como estratégia para solidificá-lo e para se
evitar as revoltas; afinal, quem questionaria aquele preferido da divindade?
O despotes ou patriarca era, portanto, o chefe ou o senhor que enfeixava em suas mãos
não apenas a riqueza material, mas também a autoridade religiosa e militar, decidindo
sobre a guerra e sobre a paz.
Com o crescimento dos reinos por força das alianças celebradas através dos
casamentos entre membros das famílias reais ou por força das conquistas de novos
territórios através das guerras, o rei passou a delegar poderes a membros de sua família
ou das famílias aliadas para se viabilizar a gestão dos mesmos. Contudo, mantinha a
propriedade da terra e de seus produtos, o que lhe dava motivo para cobrar tributos
(impostos) de seus súditos.
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3Estudos Antropológicos e Políticos
Na verdade, havia duas formas principais de propriedade da terra: 1) Propriedade
privada do rei: o rei cedia o patrimônio a chefes de clãs e tribos, aos grupos sacerdotais
e militares, mediante a prestação de serviços e ou pagamento de tributos a ele. 2)
Propriedade coletiva das aldeias ou do chefe da aldeia que pagava tributos ao rei em
troca de proteção, submetendo-se à autoridade religiosa e militar de seu rei e senhor.
Por fim, visando a possibilidade de se comparar o poder político e o poder despótico,
afinal, quais eram as características do poder despótico?
Bem, o poder era despótico ou patriarcal: ou seja, o poder era exercido pelo chefe
de família que garantia proteção aos súditos que lhe juravam obediência e fidelidade;
o poder era total: ou seja, o rei detinha todas as formas de autoridade: moral, religiosa
e militar; ainda que consultasse seus conselheiros, tudo isso era secreto, publicava-se
apenas o decreto que era sua vontade pessoal; o poder era incorporado ou corporificado:
isto é, o corpo do rei figurava as características do poder: a cabeça, a autoridade que
dirige; o peito, a vontade que ordena; braços, seus delegados (sacerdotes e militares),
as pernas, os súditos que obedeciam; o poder era mágico: por receber a autoridade
dos deuses, o rei possuía força sobrenatural ou mágica; o rei dizia “faça-se” e todas as
coisas aconteciam simplesmente porque assim o desejava; o poder era transcendente:
ou seja, pela sua origem divina o rei é considerado imortal; condição para preservação da
comunidade, ele possuía império total sobre a comunidade (via tudo, sabia tudo e podia
tudo); o poder era hereditário: ou seja, era transmitido ao primogênito do rei ou, na sua
falta, a um membro da família real.
A invenção da política
O que significa afirmar que os gregos e romanos inventaram a política? Tal
afirmação significa apenas que os gregos e romanos desfizeram aquelas características
acima enumeradas do poder despótico: não haveria mais um rei, senhor da terra, da
justiça e das armas, representante da divindade.
A história da invenção da política inicia-se com a forma de propriedade diferenciada
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Estudos Antropológicos e Políticos
adotada pelos gregos e romanos. Entre eles a propriedade se manteve como propriedade
de famílias independentes que não formavam uma casta fechada sobre si mesma, mas
aberta à possibilidade de incorporar novos proprietários enriquecidos no comércio.
Nesse contexto os camponeses migravam para as aldeias, tornando-se artesãos e
comerciantes, as aldeias se tornaram cidades que abrigavam uma certa luta de classes.
O processo crescente de urbanização incrementou a luta de classes, pois todos eram
convocados e participavam das guerras externas para expansão territorial e para defesa
da cidade, isso fez com que também os pobres que lutavam em defesa da cidade
reivindicassem o direito da participação igualitária na definição dos destinos da cidade.
A solução para aquela luta de classes foi a divisão territorial das cidades. Em Atenas a
unidade sociopolítica era chamada de demos e em Roma era chamada de tribus. Esta
medida reduzia o poder dos ricos, pois quem nascesse num demos ou numa tribus tinha
direito de participar das decisões da cidade.
Em Atenas, todos os nascidos no demos tinham o direito de participar diretamente
do poder, daí o nome democracia. Em Roma, um pouco diferentemente, os pobres ou
plebeus que viviam na tribus participavam indiretamente do poder elegendo um tribuno
da plebe, ou seja, um representante que defendia os interesses dos plebeus junto aos
patrícios que constituiam o populus romanus, ou o povo de Roma. Assim havia uma
democracia em Atenas e uma oligarquia em Roma.
O significado da afirmação de que os gregos e romanos inventaram a política
pode ser assim resumido: os gregos e romanos inventaram a política na medida em
que separaram a autoridade pessoal privada do chefe de família (despotes) e o poder
impessoal público, pertencente à coletividade; na medida em que separaram autoridade
militar e poder civil, subordinando a primeira ao segundo, sendo que os chefes militares
deixaram de ser vitalícios e passaram a ser eleitos periodicamente pelas assembleias;
na medida em que separaram autoridade religiosa e poder temporal laico, impedindo a
divinização dos governantes; na medida em que criaram a ideia e a prática da lei como
expressão de uma vontade coletiva e pública, não mais a vontade de um rei; na medida
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em que criaram instituições públicas para aplicação das leis e garantia de direitos, tal
como os tribunais e os magistrados; na medida em que passaram para o Estado o direito
de punir crimes, concedendo-lhe o monopólio da força e da violência, sob a lei e o direito,
retirando dos indivíduos o direito de fazer justiça com suas próprias mãos; por fim, afirma-
se que os gregos e romanos inventaram a política na medida em que criaram o espaço
político ou público, tal como a assembleia grega e o senado romano.
Chauí (2000) nos adverte do risco do anacronismo, pois os valores e princípios
eram diferentes dos nossos; ou seja, a democracia antiga dos atenienses era diferente da
moderna democracia. Naquele tempo escravos, mulheres, estrangeiros e miseráveis não
eram considerados politikos ou cidadãos, então não participavam da vida pública.
Contudo, destaca-se o mérito de gregos e romanos haverem inventado a política
como solução e resposta que uma sociedade oferece para suas diferenças, seus conflitos
e contradições; uma arte de se administrar os conflitos, com respeito às diferenças.
Sociedade contra o Estado
Como se viu, a sociedade se organiza a partir da forma de propriedade, propriedade
que cria diferenças, categorias ou classes sociais e dá margem a conflitos sociais ou lutas
de classe. Para arbitrar ou resolver os conflitos surgem duas formas de poder: a despótica
e a política, acima caracterizadas. Tanto na solução despótica quanto na política, surge
o Estado como poder separado da sociedade e encarregado de dirigi-la, usando a força.
Não haveria um terceiro caminho?
O etnocentrismo dos europeus no processo de colonização da América, levou-os a
considerar as sociedades tribais da América como bárbaras, selvagens ou inferiores porque
eram sociedades sem mercado, sem moeda, sem escrita, sem história ou sem Estado;
razões que serviram de justificativa para submetê-las à escravidão, à evangelização e ao
extermínio.
Contudo, o antropólogo francês, Pierre Clastres, mostrou que eram apenas
sociedades diferentes, inclusive não eram sem comércio ou sem Estado, mas contrárias
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Estudos Antropológicos e Políticos
a eles.
As sociedades tribais sul americanas não possuem a propriedade privada nem
divisão social do trabalho, não havendo classes sociais nem luta de classes, de modo
que também não carecem de uma forma de poder que dela se separa como ocorre nas
sociedades cuja organização se apoia na propriedade privada e, portanto, precisam de
um Estado.
Nelas o poder não forma uma instância acima como na política, nem fora dela como
no despotismo. A comunidade decide para si mesma, o chefe não manda; a comunidade
não obedece; nelas ocorre a chamada autogestão.
O papel do chefe nas sociedades tribais sul americanas estudadas pelo antropólogo
resume-se a cinco tarefas: dar presentes a todos os membros da tribo, devolvendo a
eles aquilo que eles mesmos produziram, evitando assim a concentração de bens nas
mãos de alguns; promover a paz quando eventualmente surge algum conflito interno,
apelando ao bom senso e à tradição do bom convívio; fazer a diplomacia, representando
a comunidade face a outras comunidades; se a comunidade decidir fazer a guerra, liderar
os guerreiros; e, sobretudo, falar a “Grande Palavra”, ou seja, todas as tardes o chefe se
dirige para fora da aldeia, mas visível e de onde possa ser ouvido e ali discursa. Embora
ouvido, ninguém deve lhe dar atenção. Ele fala a palavra do poder, canta sua força,
coragem e prestígio. Por esse ritual da “Grande Palavra” a comunidade coloca-se contra
o surgimento do Estado, lembrando a si mesma, cotidianamente, “o risco e o perigo que
correria se possuísse um chefe que lhe desse ordens e ao qual devesse obedecer... a
Grande Palavra simboliza a maneira pela qual a comunidade impede o advento do poder
como algo separado dela e que a comandaria pela coerção da lei e das armas.”(CHAUÍ,
2000,379).
Bem, neste módulo, iniciando-se o estudo sobre a questão da política, a partir
de uma reflexão sobre os paradoxos da política, distinguiram-se política e politicagem,
analisando três significados principais e inter-relacionados da palavra política; analisou-
se também o vocabulário básico da política, percebendo, então, sua origem greco-
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romana; procurou-se entender e caracterizar o poder despótico, comparando-o ao poder
político; interpretou-se o significado da afirmação de que a política foi inventada pelos
gregos e romanos e, por fim, contemplou-se alguns flashes da experiência do poder nas
sociedades tribais sul americanas como uma possível terceira via de resposta à questão
do poder.
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Estudos Antropológicos e Políticos
Resumo da Unidade
Nesta terceira unidade tratou-se de uma dimensão fundamental da vida do ser
humano que é a dimensão ética, apontando já para a questão da política.
No módulo 09, vendo a existência ética, diferenciou-se ética de moral, juízo de
valor de juízo de fato; pensou-se sobre o conceito de violência e sua relação com a ética,
conhecendo-se os elementos constitutivos do campo ético.
No módulo 10, vimos a ética como filosofia moral, passeando pela historia e
refletindo sobre como os filósofos pensaram esta dimensão fundamental da vida humana,
seja na perspectiva do racionalismo ético, do emotivismo ético e mesmo do irracionalismo
ético.
No módulo 11, pensando sobre a liberdade, analisaram-se as três grandes
concepções filosóficas da liberdade, dedicando atenção especial ao dilema da liberdade
e possibilidade objetiva, percebendo-se a liberdade como fio ontologicamente constitutivo
da trama da vida humana.
No módulo 12, iniciando o estudo sobre o tema da política, vimos os paradoxos
da política; como uma realidade positiva, inventada para o bem, apresenta-se como
algo perverso e repudiado por muitos. Ademais, a partir do vocabulário da política que
revela sua origem greco-romana, procurou-se entender, caracterizar e relacionar o poder
despótico e o poder político, percebendo-se os meandros históricos que possibilitaram a
invenção da política.
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UNIDADE 04 – O SER HUMANO, UM SER POLÍTICO Nesta unidade veremos as filosofias políticas ao longo da história da cultura
ocidental, estudaremos as teorias liberal e socialista, consideraremos a democracia como
criação e garantia de direitos, lançando um rápido olhar sobre a democracia brasileira, e
contemplaremos a relação entre democracia, Direitos Humanos e meio ambiente.
Módulo 13 – As filosofias políticas antigas e medievais
No módulo anterior, viu-se que a política foi inventada pelos antigos gregos
e romanos, como atesta o próprio vocabulário da política. Para os filósofos gregos e
romanos a política é um valor. A existência política é a finalidade superior da vida humana.
A vida boa é a vida racional, feliz e justa, própria dos homens livres na polis.
A filosofia e a política nasceram juntas, por isso, como ressalta Chauí (2000),
costuma-se dizer que “a Filosofia é filha da polis”, de modo que nunca cessou de refletir
sobre a origem, a finalidade e as formas do fenômeno político. Como se viu, deve-se
aos filósofos antigos a distinção entre poder despótico e poder político e, de lá para cá,
os filósofos não deixaram de oferecer conceitos e teorias para a organização da cidade,
visando a felicidade de todos.
Marilena Chauí, em seu “Convite à filosofia”(2000), apresenta três explicações
sobre a origem da vida política: a razão; a convenção e a natureza.
A primeira explicação, de fundo mítico, diz que no princípio, os seres humanos
viviam em harmonia na companhia com os deuses; era a idade do ouro; os seres humanos
sofrem uma queda, perdendo a amizade dos deuzes e passam a viver isoladamente
pelas florestas, correndo todos os perigos, até que descobrem o fogo e suas vidas sofrem
grandes transformações, chegando à idade do ferro, quando passam a viver em grupos, os
quais fazem a guerra entre si. Os deuses se compadecem dos humanos em permanente
estado de guerra e suscitam entre eles um homem eminente que, pela força da razão,
redigirá as primeiras leis estabelecendo a ordem e a paz entre os humanos, fundando
assim pela razão a cidade e a política. Esta é a perspectiva de Platão e de Cícero.
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Estudos Antropológicos e Políticos
A segunda explicação inspira-se na obra de Hesíodo, O trabalho e os dias. Graças
ao semideus Prometeu que roubou dos deuses o fogo e o deu aos humanos, suas
vidas se transformaram; agora eles podiam cozinhar os alimentos, trabalhar os metais
e fabricar utensílios, descobrindo-se assim diferentes dos outros animais. Perceberam
que poderiam dividir os trabalhos, convencionar leis e organizar a vida em comunidade;
ou seja, criaram a vida política pela convenção. Esta é a perspectiva dos Sofistas.
A terceira teoria afirma que os humanos são por natureza diferentes dos outros
animais, são seres dotados do logos, ou seja, palavra em forma de fala e pensamento,
por isso são capazes de vida social. Deste modo, a vida política ou na cidade é uma
decorrência da natureza humana; o ser humano é um animal racional, como definiu
Aristóteles.
Observa-se que enquanto as duas primeiras teorias tem um pano de fundo
mitológico, a última parte da definição da natureza humana; ou seja, o ser humano é um
ser, por natureza, essencialmente racional.
Finalidade da vida política
Segundo Chauí (2000), a finalidade da vida política para os gregos é a justiça na
comunidade. Desse modo é importante perguntar: o que é a justiça?
Inicialmente, os gregos conceberam a justiça em bases míticas. A justiça se referia
à lei divina e à ordem cósmica ou do mundo estabelecida na natureza, de modo que ser
justo era respeitar a lei divina e a ordem natural das coisas. Assim, a ideia de justiça se
inscrevia no espaço da lei, da ordem e da natureza (physis).
Com o surgimento da filosofia e a invenção da política, coloca-se a questão: se justo
é o que segue a ordem natural e respeita a lei natural, afinal, “a polis existe por natureza
ou por convenção? A justiça e a lei política são naturais ou convencionais?”(CHAUÍ, 2000,
381). Surgem duas respostas distintas para estas perguntas: os sofistas defenderão a
tese da convenção, enquanto Platão e Aristóteles a tese da natureza.
Para os sofistas uma lei política nada mais é do que um acordo, um pacto ou
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4Estudos Antropológicos e Políticos
conveção celebrada entre as pessoas sobre o que é mais útil para a vida humana, de
maneira que a justiça é o consenso quanto às leis. Para eles a finalidade da política seria
criar e preservar aquele consenso, promovendo a concórdia através da discussão pública
de opinões e interesses divergentes; daí a importância da retórica para os Sofistas, ou
seja, a importância de se saber debater um assunto falando sobre seus prós e contras de
maneira persuasiva, colaborando assim para a construção do consenso ou para a tomada
de decisão pelo voto da maioria.
Para Platão e Aristóteles a polis e a justiça possuem um caráter natural, embora
apresentassem eles abordagens distintas sobre a justiça.
Para Platão os seres humanos e a polis possuem a mesma estrutura tripartite,
ou seja, a cidade reflete a estrutura do ser humano. Platão entendia o ser humano como
alma, na verdade, uma alma com três partes, cuja localização no corpo do ser humano as
hierarquizava. Começando pela inferior, 1) a alma concupiscente ou apetitiva, localizada
no ventre, responsável pelos desejos da pessoa; 2) a alma irascível, localizada no peito,
responsável pelos sentimentos e emoções da pessoa; 3) a alma racional, localizada na
cabeça, responsável pelos pensamentos e racionalidade da pessoa.
A cidade platônica estrutrurava-se conforme predominasse nos seres humanos
uma ou outra parte da alma. Aqueles nos quais prevalecia a alma concupiscente,
desenvolviam a virtude da moderação e formavam a classe econômica, responsável
por trabalhar, produzir e alimentar a cidade. Aqueles dominados pela alma irascível,
desenvolviam a virtude da coragem e integravam a classe militar, assumindo a defesa
da cidade. Finalmente, aqueles nos quais predominava a alma racional, desenvolviam a
virtude da sabedoria, formavam a classe dos magistrados e cuidavam da administração
e do governo da cidade.
Desse modo, segundo Platão, uma pessoa seria justa à medida em que nela a
racionalidade dominasse a cólera e o desejo; ao passo que a cidade justa seria aquela
governada pelos filósofos, administrada pelos cientistas, protegida pelos guerreiros e
mantida pelos produtores.
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Estudos Antropológicos e Políticos
Aristóteles, por sua vez, concebendo a polis e a justiça como decorrentes da
natureza, possuia uma outra visão da justiça. Para ele há dois tipos de justiça conforme
seja o objeto da justiça: em relação ao bens partilháveis, isto é, bens que podem ser
divididos, tem-se a justiça distributiva, em relação aos bens participáveis, ou seja, bens
que não podem ser divididos, mas apenas participados, tem-se a justiça participativa.
A justiça distributiva que se relaciona ao mundo da economia, ou seja, da produção
e da distribuição dos bens materiais necessários à vida, consiste em dar a cada um o que
é devido; desigualmente aos desiguais para torná-los iguais.
A justiça participativa que se relaciona ao mundo da política, ou seja, às relações
de poder próprias do processo de organização da vida coletiva, consiste em respeitar o
modo pelo qual a comunidade definiu a participação no poder, ou seja, levar em conta os
valores definidos pela comunidade. Se o valor maior é a honra advinda do sangue ou das
posses então tem-se uma monarquia, e o poder ficava concentrado nas mãos de um só;
se é a virtude, enquanto qualidades iminentes das pessoas, então tem-se a aristocracia,
e o poder é exercído apenas pelos melhores; se o valor maior é a igualdade dos cidadãos,
então tem-se uma democracia e todos os membros do povo dele participam.
Os regimes políticos e a ética.
Como se viu, a origem da política está explícita no próprio vocabulário da ciência
política que para designar os regimes políticos adota nomes compostos pela palavra arche
que significa princípio de comando ou fonte de poder e pela palavra kratos que significa
poder. Deste modo, quando o nome termina por arche (arquia) indica a quantidade de
princípios ou fontes de comando, quanto termina por kratos (cracia) indica quem está no
poder.
Assim, por um lado, monarquia é o regime político em que o governo é exercido
por um (mono) só; oligarquia o governo de alguns (oligos); poliarquia é o governo de
muitos (poli), e anarquia, o governo de ninguem (ana); por outro lado, autocracia refere-
se ao poder de uma só pessoa, o rei; aristocracia indica que só os melhores (aristos)
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participam do poder, e democracia que todo o povo (demos) está no poder. Observa-se
que o próprio significado dos prefixos acrescentados às palavras arche e kratos indica
as características do regime político designado pelo nome e mantem entre elas uma
correspondência.
Platão e Aristóteles deixaram lições fundamentais no campo da política: 1) há
regimes políticos e regimes não-políticos; 2) um regime político, em função de mudanças
na economia ou por força das guerras, pode se transformar em outro; 3) a índole do povo
e a extensão do território influenciam na definição do regime político; 4) a política que tem
como fim o bem propriamente humano é inseparável da ética.
Em primeiro lugar, regime político é aquele no qual os governantes, tal como os
governados estão sujeitos às leis. Caso ocorra que a vontade pessoal e arbitrária do
governante seja a lei, não se tem aí um regime político, mas despotismo. Isto posto, um
regime político é legítimo quando além de legal é justo. Um regime é ilegítimo quando é
ilegal, quando a lei é injusta ou não existe lei alguma.
Em segundo lugar, conforme as mudanças na sociedade, uma monarquia pode
se degenerar em tirania, quando a vontade do rei é lei para todos; uma oligarquia em
plutocracia (governo dos muito ricos) ou timocracia (governo dos guerreiros); e uma
democracia pode-se degenerar em demagogia e esta em anarquia que, por sua vez, em
geral, leva à tirania.
Em terceiro lugar, uma ideia de Aristóteles que atravessou milênios é a de que a
variação dos regimes politicos depende de dois fatores principais: a natureza ou índole do
povo e a extensão do território. No caso de um povo de índole igualitária, vivendo em uma
pequena extensão territorial, têm-se as condições favoráveis para a democracia. Sobre
isso, diversas experiências exitosas de orçamento participativo em municípios brasileiros
atestam que Aristóteles tinha razão. Por outro lado, no caso de um povo de índole pró-
obediência, espalhado por uma grande extensão territorial, têm-se as condições favoráveis
à monarquia. Daí, as dificuldades para se avançar da democracia representativa para a
participativa nos governos supra-locais, sejam os regionais ou nacional.
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Estudos Antropológicos e Políticos
Em quarto lugar, se a política tem como finalidade a vida justa e feliz, ou seja,
o bem propriamente humano, como ensina Aristóteles em sua Ética a Nicômacos, a
política é inseparável da ética. Ademais, o bem do indivíduo, segundo Aristóteles, está
subordinado ao bem da polis ou da cidade, de tal modo que se o bem do indivíduo
sobrepuser o bem comum, não se tem verdadeira política, mas apenas politicagem.
Por fim, em razão desse necessário vínculo metafísico entre ética e política, vigora na
história uma dialética entre a cidade e os cidadãos, de maneira que a qualidade das leis
e do poder depende das qualidades morais dos cidadãos e vice-versa, as qualidades
morais dos cidadãos dependem da qualidade das leis e do poder que vigoram na polis.
Romanos: a construção do príncipe
Segundo Chauí (2000), Roma inicialmente era uma República Aristocrática
governada pelo Senado e o Povo Romano (patrícios ou senhores de terras e tribunos da
plebe) que elegiam dois Cônsules a quem eram entregues dois poderes: administrativo
(fundos e serviços públicos) e imperium (judiciário e militar).
Com a expansão dos territórios os Cônsules eleitos reivindicaram mais poderes,
e na medida em que o Senado e o Povo Romano iam lhes concedendo mais poder,
Roma, pouco a pouco, foi passando de uma República Oligárquica para uma República
Monárquica, sendo que, gradualmente, a Monarquia foi perdendo o seu caráter
republicano até tornar-se um Principado, ou seja, um Imperio, onde o príncipe detém
todos os poderes e é autoridade suprema.
A teoria política, graças aos filósofos Cícero e Sêneca que se inspiraram em
Platão, produziria o ideal do príncipe perfeito ou do Bom Governo, retratando também a
imagem do príncipe vicioso, o tirano. Observa-se como esta teoria deposita na pessoa
do governante a qualidade da política.
O Bom Governo seria aquele conduzido por um príncipe perfeito que possuísse as
virtudes cardeais da prudência, justiça, coragem e temperança, virtudes estas que são
comuns a todo homem virtuoso; e que possuísse as virtudes principescas da honradez,
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da clemência e da liberalidade; devendo ainda o príncipe virtuoso aspirar as virtudes da
honra, da glória e da fama.
O poder teológico-político e o cristianismo
A teoria política cristã é elaborada a partir de uma dupla herança: hebraica e romana.
Por um lado, o pensamento político cristão herdou dos hebreus o caráter teocrático do
poder, a ideia de povo de Deus, bem como a noção de lei divina revelada no Antigo
Testamento, sobretudo através dos profetas, e no Novo Testamento através de Jesus. Por
outro lado, dos romanos, a teoria politica cristã adotou a ideia de que o imperador deveria
ser visto como o Senhor do Universo, cabendo a ele manter a concórdia no mundo, a pax
romana, garantida pela força das armas; enfim, o imperador era visto como divino.
O cristianismo se constitui como uma seita, à margem do poder político oficial; não
estando vinculado a uma nação específica, dirige-se aos seres humanos em geral, sem
distinção, ou seja, dirige-se ao ser humano universal. Contudo, o seu próprio vocabulário,
a exemplo dos termos “povo”, “lei”, “assembléia” e “reino”, revela o seu caráter político. A
ekklesia ou assembléia designa a Igreja como reino de Deus ou a Civitas Dei, a Cidade
de Deus, oposta a Roma, a cidade dos homens.
Na Igreja, como se crê, a autoridade foi constituída pelo próprio Cristo: “Fazei isso
em memória de mim”; “Ide pelo mundo e anunciai...”; “Tu es Pedro e sobre esta pedra
edificarei a minha igreja... o que ligares na terra será ligado no céu, o que desligares na
terra será desligado no Céu.”
Assim, o cristianismo que surgiu periférico, como uma seita, no século IV, com
a conversão do Imperador Constantino, torna-se religião oficial do Império Romano,
absorvendo muito de sua estrutura.
Dois motivos, especialmente, farão crescer o poderio da Igreja: a expansão do
cristianismo por obra da evangelização dos povos pertencentes ao Império Romano
e o fato de ser a Igreja o único poder centralizado e homogeneamente organizado, no
momento da queda do Império Romano, quando se deu a fragmentação da propriedade
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Estudos Antropológicos e Políticos
da terra, surgindo o feudalismo em torno dos poderes locais.
Naquele contexto, a Igreja detem três poderes crescentes: o poder religioso
pois articulava a terra ao Céu por ordem do próprio Jesus como acima se referiu; o
poder econômico, graças à propriedade de grandes extensões de terra recebidas em
doação quando da conversão dos nobres do Império; e o poder intelectual, já que tinha o
monopóleo da leitura e da escrita, bem como da interpretação da Bíblia, assumindo pois
a elaboração da concepção teológico-política do poder.
As teorias teológico-políticas
Ao longo da Idade Média, os teólogos cristãos, lançaram mão de três fontes distintas
para elaboração da teologia política: a Bíblia latina, em cuja versão se combinaram os
legalismos judaíco e latino; o Direito Romano e as ideias retiradas de algumas poucas
obras filosóficas conhecidas de Platão, Aristóteles e, sobretudo, de Cícero, sendo que o
grande desafio fora a conciliação das concepções filosófica e teocrática do poder.
Considerando que as teorias do poder teológico-político receberam diferentes
formulações ao longo da Idade Média, passa-se aqui a elencar os pontos em comum
daquelas teorias.
1) A ideia de que o poder é teocrático, ou seja, o rei está no poder pela vontade de Deus,
representa Deus perante os governados, de forma que o regime político é a monarquia
teocrática que se forma pelo pacto de submissão dos súditos ao rei.
2) A concepção de que o rei é a fonte da lei e da justiça; sendo autor da lei pela graça de
Deus, está acima das leis e seu poder, então, é absoluto. Mesmo na circunstância de um
rei tirânico e injusto o povo não pode lhe resistir, pois foi instituído por Deus para punir
os pecados do povo.
3) A convicção de que o príncipe cristão, como espelho para a comunidade, deve possuir
as virtudes cristãs: fé, esperança e caridade, e aquelas necessárias ao Bom Governo,
conforme definiram Cícero e Sêneca. O príncipe é responsável pela finalidade mais alta
da política: a salvação eterna de seus súditos.
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4) A transformação da polis platônica no corpo político do rei, sendo a cabeça, o próprio
rei; o peito, o conjunto das leis, os magistrados e os conselheiros do rei; os membros
superiores, os exércitos e os membros inferiores, o povo que trabalha para o sustento do
corpo político.
5) A ideia de cosmos hierárquico, ou seja, a crença de que a ordem da hierarquia política
e social é estabelecida por Deus, portanto é natural e justa; não existindo a ideia de
indivíduo, mas de ordem ou corporação a que cada um pertence por vontade divina,
natureza e hereditariedade, portanto, sem a possibilidade de mobilidade social.
6) A concepção de que no topo da hierarquia encontram-se o papa e o imperador que
exigem, reciprocamente, o poder espiritual e o temporal; sendo que, inicialmente, a nível
regional, o rei era eleito pelo conjunto dos senhores, passando-se o poder a seu herdeiro
do sexo masculino, subordinando-se a assembléia dos reis ao Grande Rei ou imperador
da Europa, cujo poder era teocrático.
Poder espiritual e poder temporal em conflito
Na Idade Média não existe ainda a divisão tripartite do poder como a conhecemos
hoje: legislativo, executivo e judiciário; tal divisão surgiria na modernidade com John
Locke e Montesquieu. A divisão do poder na Idade Média se dava entre a chamada
Auctoritas e Potestas. À auctoritas cabia a promulgação das leis e a promoção da justiça,
enquanto à Potestas a administração das coisas e pessoas, de tal modo que a auctoritas
era claramente superior à potestas, já que aquela era a fundadora da comunidade e esta
a executora de atividades na forma definida pelas leis.
No início da idade média não há conflito entre aqueles poderes, mas com o passar
do tempo surge o conflito, dando lugar à questão das investiduras. O fato é que padres
e bispos são investidos pelo rei porque são administradores dentro dos reinos, contudo,
a Igreja não aceita esta interferência na sua autoridade, afirmando-se que o papa possui
autoridade suprema, à qual o imperador deve submeter-se.
O conflito papa-imperador é consequência da concepção teocrática do poder,
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afinal, qual dos dois representa Deus, o papa ou o imperador?
A solução para esta questão veio através da teoria da dupla investidura, da unção
e da espada, criada pelos juristas de Carlos Magno. Em resumo a teoria dizia que o
imperador é investido no poder temporal pelo papa que o unge e o coroa e o papa recebe
do imperador a investidura da espada, ou seja, a promessa de proteger a Igreja, desde
que esta nunca interfira nos assuntos administrativos e militares do império.
Outro conflito que alimentou a produção de teorias teológico-políticas foi aquele
entre o Imperador e as assembléias dos barões; estas, invocando a Lei Régia Romana,
segundo a qual o governante recebe do povo o poder, afirmavam que barões e reis eram
os instituidores do imperador, enquanto o Imperador, invocando a origem teocrática do
poder, afirmava que seu poder vinha de Deus e não de barões e reis.
A solução para esta querela veio pela teoria que distingue eleição de unção.
Afirmava-se que de fato o imperador é eleito, mas só teria o poder pela unção com óleos
santos que era feita pelo Papa.
Considerando que tanto na teoria da dupla investidura como na da distinção entre
eleição e unção, o imperador ficava na dependência do papa, para fortalecê-lo surge
a teoria dos dois corpos do imperador: o corpo humano frágil, de natureza mortal, e o
corpo místico-político, imortal, formado por elementos como coroa, cetro, manto, espada,
trono, terras, leis, tributo e sua dinastia, de modo que, tal como Jesus que possuia duas
naturezas, a humana mortal e a divina imortal, o rei possuia dois corpos.
No final da Idade Média, Tomás de Aquino produz uma teoria que separa de maneira
mais clara a Igreja da Comunidade Política. É a teoria da separação dos poderes, um
sobrenatural e um natural, ambos possuidores de legitimidade. Para este teólogo a Igreja
foi instituída diretamente por Deus com a doação das Chaves do Reino aos apóstolos,
enquanto a Comunidade Política é uma decorrência da natureza, criada por Deus, que
fez o homem um animal racional e político, como Aristóteles ensinara na antiguidade, de
tal modo que a finalidade da comunidade política é a ordem e a justiça, ou seja, o bem
comum.
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Segundo Guilherme de Ockham, o critério para que a comunidade política promova
a justiça é o direito subjetivo natural de cada um e de todos o homens como o direito à
vida, à consciência e aos bens materiais e espirituais necessários à garantia da vida e da
consciência.
Aquino e Ockham mantém a ideia do Bom Governo do príncipe cristão virtuoso,
da monarquia como melhor regime para se promover a justiça como bem comum, da
hierarquia natural, mas inclui o direito de resistência dos súditos ao tirano, plantando
assim a semente da própria Reforma Protestante, pois onde o direito subjetivo natural é
violado pelo governante, o pacto de submissão dos governados ao governante perde a
validade, devendo o governante, diante da resistência dos governados, abdicar do poder.
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Módulo 14 – As filosofias políticas modernas
Redescoberta do ideal republicano
Marilena Chauí (2000) contextualiza o pensamento político moderno afirmando que
na Idade Média, quando predominavam as relações de vassalagem, ou seja, juramento
de fidelidade de um inferior a um superior em troca de sua proteção, surgem os burgos
e aí as corporações de ofício: tecelões, pedreiros, ferreiros, médicos, comerciantes,
etc. associavam-se em confrarias, uma espécie de organização social, através de um
juramento de confiança recíproca, onde se ressaltam a liberdade e a igualdade dos seus
membros.
A partir daquelas novas organizações sociais surge a burguesia, uma nova classe
social que se fortalece por causa do comércio e passa a reivindicar independência diante
dos barões, reis, papas e imperadores; inicia-se assim o que viria a ser o capitalismo
comercial ou mercantil.
É o tempo do Renascimento. Redescobre-se a cultura greco-romana, o
pensamento, as artes, a ética, as técnicas e a política dos antigos, de modo que o novo
ideal de vida é a vida política e a liberdade republicana tal como haviam nas cidades
antigas de Esparta, Atenas e Roma.
As obras políticas medievais, como se viu, são teocráticas e as renascentistas
procuravam agora evitar a teocracia, mas, porque foram produzidas no mundo cristão,
têm muito em comum: 1) dão à política um fundamento exterior, às vezes Deus, a
natureza ou razão; 2) veem a política como instituição de uma comunidade sem conflito,
em função da justiça ou do bem comum; 3) a política é obra do príncipe racional e
virtuoso, portador da justiça; 4) classificam os regimes políticos em justos e injustos: a
monarquia e a aristocracia hereditárias são justos o poder usurpado é tirânico e injusto.
Neste contexto (1513-14) surge O príncipe, de Maquiavel, que inaugura o pensamento
político moderno.
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A revolução maquiaveliana
Chauí (2000) registra como as pessoas em nossa cultura utilizam as expressões
“maquiavélico” e “maquiavelismo” e nos questiona sobre o “que teria escrito Maquiavel
para que gente que nunca leu sua obra e que nem mesmo sabe que existiu, um dia,
em Florença, uma pessoa com esse nome, fale em maquiavélico e maquiavelismo?”.
(CHAUÍ, 2000, 395)
Afinal, a que nos referimos quando usamos as expressões “maquiavélico” e
“maquiavelismo”? Relaciona Chauí (2000): a uma conduta desleal, hipócrita, fingida,
malévola; ao uso da boa-fé alheia em proveito próprio; a um poder que age nos bastidores;
ao uso de meios imorais para se alcançar determinados fins, alegando-se que os fins
justificam os meios; a alguém superpoderoso, perverso, sedutor e enganador; àquilo que
é considerado diabólico.
Vamos resumir aqui a reflexão da filósofa Marilena Chauí, buscando compreender
as razões históricas da carga semântica daquelas expressões, compreendendo assim,
um pouco do pensamento revolucionário de Maquiavel.
O ponto de partida de Maquiavel, diplomata e conselheiro dos governos de
Florença, foi a experiência real de seu tempo e não a Bíblia e o Direito Romano, onde
se inspiravam os teólogos medievais, e nem os filósofos clássicos de onde partiam os
pensadores renascentistas.
Assim, Maquiavel não admite um fundamento anterior e exterior à política, Deus, a
natureza ou a razão. Para ele toda cidade está dividida por dois desejos opostos, o desejo
de oprimir e o desejo de não ser oprimido; ou seja, a política nasce das divisões sociais,
é obra da própria sociedade que busca unificar-se.
A política não é obra de uma sociedade una e harmoniosa, cuja finalidade é o bem
comum, mas da divisão social entre os grandes e o povo, de tal modo que a ideia de
sociedade harmoniosa é uma ideologia ou ilusão para fazer crer que os interesses dos
grandes e dos populares são os mesmos.
A finalidade da política é a tomada e manutenção do poder. Para tanto, o príncipe
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jamais deve aliar-se aos grandes, mas ao povo que espera ser protegido da sanha dos
grandes.
Maquiavel recusa a figura tradicional do bom governo: as virtudes do príncipe são
suas qualidades para tomar e manter o poder, ainda que em alguma circunstância tenha
que usar violência, mentira, astúcia e força.
Enquanto, segundo o pensamento tradiconal, o governante deveria ser amado e
respeitado pelos governados, para ele, basta que o príncipe não seja odiado, devendo
ser apenas respeitado e temido. A virtude política do príncipe aparecerá nas instituições
que criar e manter e na capacidade de lidar com a fortuna ou sorte.
Maquiavel não aceita o tradicional critério de legitimidade dos regimes politicos
que era a hereditariedade. Para ele o critério é a liberdade. Se o poder dos grandes é
maior que o do príncipe e esmaga o povo, então é ilegítimo, do contrário, é legítimo.
Qualquer regime será legítimo se for uma república, ou seja, se o poder não está a
serviço dos desejos e interesses de de um grupo de particulares.
Segundo Chauí (2000), a tradição uniu ética e política na pessoa do príncipe;
o governante virtuoso é aquele cujas virtudes não sucumbem ao poderio da fortuna.
Maquiavel, por sua vez, recusa aquela tradição. Para ele o que poderia ser imoral do
ponto de vista da ética privada pode ser virtude política, pois o ethos político é diferente
do ethos moral. A virtu do príncipe é a capacidade para ser flexível às circunstâncias,
mudando com elas para agarrá-las e vencê-las. Às vezes será cruel, outras generoso,
em certas ocasiões deverá mentir, em outras ser honrado, ceder ou ser inflexível.
Deste modo, conclui Marilena Chauí, porque inaugurou a ideia de valores políticos
medidos pela eficácia prática e pela utilidade social do comportamento político, destoando
totalmente do horizonte ideológico de seu tempo; porque inaugurou a teoria moderna da
lógica do poder como independente da religião, da ética e da ordem natural; porque
concebe a política como ação social puramente humana, Maquiavel só poderia ter sido
visto como maquiavélico, satânico ou diabólico.
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O mundo desordenado
A obra de Maquiavel, atacada por católicos e protestantes, tornou-se referência
para o pensamento político moderno. Enquanto na França e na Prússia foi revista a teoria
do direito divino dos reis, na maioria dos países, novas teorias surgiram, partindo de
Maquiavel.
Para se entender as novas teorias políticas que surgiam, segundo Chauí (2000),
ao lado da burguesia nascente e do crescimento das corporações de ofício, é necessário
considerar os acontecimentos que mudaram a Europa do século XV ao XVII.
A decadência de inúmeras famílias aristocráticas envolvidas com as cruzadas e
a peste negra empurraram para as cidades servos e camponeses pobres e livres que
se tornaram membros das corporações de ofício. A vida urbana provocou o crescimento
de atividades artesanais e do comércio local e regional. As rotas do comércio com o
Oriente e os impérios ultramarinos, pela exploração do trabalho, geraram um novo tipo de
riqueza, o capital. No campo e na cidade, por causa da miséria e das péssimas condições
de trabalho, e como consequência da Reforma Protestante que pregava a igualdade de
todos, os pobres se revoltaram contra os ricos. As guerras entre potências pelo domínio
dos mares e dos novos territórios descobertos, assim como a queda de reis e famílias da
nobreza e a ascensão da burguesia comercial provavam que aquela ideia de um mundo
constituído naturalmente por hierarquia não correspondia à realidade.
Diante de todos esses acontencimentos, dois fatos não podiam ser negados: 1) a
existência de indivíduos: um burguês e um trabalhador não podiam mais invocar o sangue
ou linhagem para justificar suas existências; 2) face aos conflitos pela posse da riqueza,
aquela imagem da comunidade cristã, una, indivisa e fraterna perde completamente o
sentido.
Naquele novo contexto histórico-social, os teóricos voltaram a se indagar sobre a
origem da sociedade e da política. “Por que indivíduos isolados formam uma sociedade?
Por que indivíduos independentes aceitam submeter-se ao poder político e às leis?”
(CHAUÍ, 2000, 399). Daí, o surgimento das ideias de Estado de Natureza e Estado Civil.
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Estado de Natureza e Estado Civil
A ideia de Estado de Natureza refere-se a uma situação pré-social na qual os
indivíduos existem isoladamente. Para Hobbes, no séc. XVII, os indivíduos no Estado
de Natureza vivem isoladamente e em luta permanente; “o homem é o lobo do homem”;
a vida não tem garantias; vigora o medo; a única lei é a força do mais forte. “É a guerra
de todos contra todos”. Para Rousseau, já no séc. XVIII, os indivíduos, no Estado de
Natureza, vivem isolados pelas florestas, sobrevivendo do que a natureza oferece. O
ser humano era o “bom selvagem inocente”, até que alguém cerca um terreno e diz: “É
meu”, criando assim a propriedade privada que dá origem ao Estado de Sociedade, que
equivale ao Estado hobbesiano da guerra de todos contra todos.
Para cessar o estado ameaçador e ameaçado de Hobbes e Rousseau, os
humanos, pelo contrato social, criam o Estado Civil.
Pelo contrato social, os indivíduos renunciam à liberdade natural e à posse natural
de bens, transferindo a um terceiro, o Estado Civil, o poder para criar e aplicar leis,
garantindo assim para todos, o direito à vida e à paz.
A legitimidade do contrato social é garantida pelo Direito Romano que diz:
“Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu”, bem como pela Lei
Régia romana que afirma: “O poder é conferido ao soberano pelo povo”. (CHAUÍ, 2000,
400). Deste modo, parte-se do conceito de direito natural, pois os indivíduos possuem
naturalmente o direito à vida e à liberdade, para se chegar ao direito civil ou positivo, que
é o contrato social, através do qual os indivíduos dão livremente ao soberano o poder
para dirigí-los.
Com esse avanço teórico do direito natural ao direito civil, através do contrato social,
o pensamento político moderno não fala mais em comunidade mas sim em sociedade.
A comunidade pressupõe um grupo humano homogêneo, copartilhando os mesmos
bens, crenças e costumes, com um destino comum. A sociedade pressupõe indivíduos
isolados, dotados de direitos naturais, que decidem livremente a se associarem para
vantagem recíproca.
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Uma outra questão importante pontuada por Marilena Chauí é a da soberania.
Quem é o soberano? Para Hobbes não importa o número dos governantes, pode ser um
rei, uma aristocracia ou democracia, a soberania pertence de modo absoluto ao Estado
que tem o poder de promulgar e aplicar as leis. Já para Rousseau o soberano é o povo,
entendido como vontade geral, pessoa moral coletiva livre e corpo político de cidadãos. O
governante não é o soberano, mas o representante da soberania popular.
A teoria liberal e a cidadania
Em Hobbes e Rousseau a propriedade privada não é um direito natural, mas um
efeito do contrato social. Locke, no início do século XVIII, atende a uma demanda da
burguesia, economicamente poderosa, mas politicamente subalterna, e elabora a teoria
da propriedade privada como direito natural, uma teoria que colocaria a burguesia em
condições de igualdade para a disputa política com a nobreza.
Segundo Chauí (2000), Locke, partindo da definição de direito natural como direito
à vida, à liberdade e aos bens necessários para conservá-las, estende ao trabalho, que é
o meio de se conseguir aqueles bens, a abrangência da definição de direito natural.
Para Locke, o mundo é fruto do trabalho de Deus, por isso lhe pertence. O mundo
é de sua propriedade. Contudo, tal como consta no Gênesis, quando Deus criou o homem
a sua imagem e semelhança, deu-lhe o mundo para que nele reinasse, mas quando o
expulsou do paraíso não lhe retirou o domínio do mundo, mas lhe disse que o teria com o
suor de seu rosto.
Desse modo, por ordem divina, a propriedade privada, como fruto legítimo do
trabalho, é um direito natural. Por isso, o burguês, que é proprietário pelo trabalho, se
reconhece como moralmente superior aos nobres que são parasitas da sociedade, bem
como superiores aos pobres que não tem propriedade e são obrigados a trabalhar para
outros porque são perdulários, gastando todo o salário ao invés de acumulá-lo para
comprar propriedades, ou são preguiçosos e não trabalham bastante.
Isto posto, a teoria liberal, desde Locke, passando pelos realizadores da
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Estudos Antropológicos e Políticos
Independência norte-americana e da Revolução Francesa, até pensadores do século XX,
como Max Weber, afirma que a função do Estado é tríplice: 1) garantir o direito natural
de propriedade e não interferir na vida econômica, respeitando a liberdade econômica
dos proprietários privados; 2) arbitrar, por meio das leis e da força, os conflitos existentes
na sociedade civil; 3) legislar sobre o que pertence à esfera da vida pública, mas sem
intervir na consciência dos governados.
A consagração na teoria liberal da propriedade privada como um direito natural
dos indivíduos a ser garantida pelo Estado é o coração do liberalismo que se consolidaria
na Revolução Francesa, em 1789, encerrando o Antigo Regime baseado no poder
teocrático e absolutista, onde o rei era visto como o marido da terra, senhor dos bens e
riquezas do reino. Agora, a propriedade é individual e privada, ou estatal e pública.
Ao lado da ideia da propriedade privada como um direito natural, a ideia de
sociedade civil como relações entre indivíduos livres e iguais por natureza quebra a
ideia de hierarquia, assim como a ideia de contrato social, como pacto entre indivíduos
livres e iguais quebra a ideia da origem divina do poder que sustentava as monarquias
absolutistas por direito divino.
As teorias políticas liberais afirmam que o indivíduo é a origem e o fim do poder
político, através do contrato social voluntário; afirmam a existência da sociedade civil
organizada, independente do Estado; afirmam o caráter republicano do poder através
do Estado no qual se articulam os poderes legislativo, executivo e judiciário, detendo o
monopólio da violência para punir os crimes e garantir a ordem pública, tal como definida
pelos proprietários privados e seus representantes no parlamento.
Assim, o Estado é uma República representativa: Poder executivo (administração);
Poder legislativo (institui as leis); Poder judiciário (aplica as leis); Forças armadas (exército
e polícia) e a Burocracia (servidores públicos que cumprem as decisões dos três poderes
perante os cidadãos).
No Estado liberal a cidadania é bastante restrita, apenas os proprietários,
considerados por isso independentes e livres, têm cidadania política, ou seja, poderiam
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votar e ser votado para ocupar cargo de representante em um dos três poderes, a maioria
da sociedade formada por não-proprietários, trabalhadores e mulheres, era excluída. Em
razão disso, lutas populares intensas, desde o século XVIII, forçaram o Estado liberal a se
tornar uma democracia representativa, ampliando a cidadania política.
Segundo Chauí (2000), nos Estados Unidos, os trabalhadores brancos eram
considerados cidadãos desde o século XVIII, mas os negros do sul, só se tornaram
cidadãos nos anos de 1960; em potências mundiais como Inglaterra e França, as mulheres
só votaram em 1946; na África do Sul os negros votaram pela primeira vez apenas em
1994, graças à longa e sangrenta luta contra o apartheid liderada por Nelson Mandela.
Dessa forma, fica claro que a ideia de contrato social não previa o direito à cidadania para
todos, mas o limita a uma classe social, a classe proprietária ou burguesa.
A ideia de revolução e seu significado político
O que significa uma revolução? A palavra revolução vem do vocabulário da
astronomia para o vocabulário da política. Originalmente significa o movimento circular
completo de um astro ao voltar a seu ponto de partida. Contudo, na política, a palavra
foi introduzida para significar as mudanças e alterações profundas na economia, nas
relações sociais e no poder que conduziriam à sociedade justa, livre e feliz, como era no
princípio, o paraíso terrestre.
As revoluções burguesas a exemplo das mais conhecidas, a Inglesa de 1644, a
Norte-Americana de 1776 e a Francesa de 1789, na verdade, são meias revoluções,
ou seja, a face popular da revolução, no passado foi e agora é sufocada pelo poder do
Estado, comitê executivo da burguesia, no dizer de Karl Marx.
A burguesia, classe economicamente poderosa, aspirando também o poder
político, manipula e articula a força dos seguimentos pobres da sociedade agitando
as bandeiras da igualdade, liberdade e fraternidade, conforme constam no slogam da
Revolução Francesa, contudo, uma vez no poder, passa a reprimir as classes populares
revolucionárias que aspiravam ir mais longe, ou seja, buscavam a restauração do paraíso
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Estudos Antropológicos e Políticos
perdido ou a construção da nova Jerusalém prometida.
Encerrando, pela força, o processo revolucionário, a burguesia se assenhora do
Estado e o mantém como instância de dominação, separado da sociedade civil, fazendo
as leis, executando-as e julgando os conflitos, bem como mantendo a ordem social
conforme seus interesses que são bem distintos dos interesses das classes populares.
O significado político de uma revolução, seja burguesa ou popular, segundo Chauí
(2000), está no fato de evidenciar: 1) a divisão da sociedade entre opressor e oprimido;
2) a percepção do poder como resultado de uma ação humana que foi, em um dado
momento, construído e que, portanto, pode ser reconstruído; 3) a compreensão de que
os agentes são sujeitos políticos de direitos e que podem reivindicá-los; 4) a relação
entre poder político e justiça social, bem como a percepção de que a justiça, no mundo
moderno, não depende de um príncipe virtuoso, mas de instituições públicas capazes de
atender as demandas dos cidadãos ao Estado.
Chauí (2000) fala da diferença entre a face burguesa e a face popular da revolução
nos seguintes termos:
“a face burguesa liberal (a revolução é política, visando a tomada do poder e à instituição do Estado como república e órgão separado da sociedade civil) e a face popular (a revolução é política e social, visando a criação de direitos e à instituição do poder democrático que garanta uma nova sociedade justa e feliz).(CHAUÍ, 2000, 406)
Como se viu, nas revoluções burguesas, lá pelas tantas, passa-se a sufocar a face
popular da revolução, mas, para se evitar a explosão contínua de revoltas populares, a
burguesia adota uma política de “dar os anéis para não se perder os dedos”, introduzindo
e garantindo alguns direitos políticos e sociais para o povo.
Contudo, a face popular da revolução não desaparece, e, à medida em que se
desenvolve o capitalismo industrial, a classe do proletariado se define melhor e passa
a demandar teorias que sustentem sua atuação sociopolítica, assim, surgem as teorias
políticas socialistas
As teorias políticas socialistas tomam o proletariado como sujeito político e histórico
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e projetam uma nova sociedade onde as exclusões a que os trabalhadores são forçados
deixem de existir. Ademais, percebem o Estado como cúmplice da classe dominante e por
isso são teorias anti-estatais que apostam na capacidade de autogoverno da sociedade.
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Estudos Antropológicos e Políticos
Módulo 15 – As teorias socialistas e a questão democrática
As teorias socialistas
Depois de se estudar os fundamentos da teoria liberal que lastreara as revoluções
burguesas, estuda-se agora as teorias socialistas, iniciando-se pela investigação acerca
de suas fontes.
As teorias socialistas se inspiram em uma certa tradição libertária. O que é tradição
libertária?
A tradição libertária, segundo Marilena Chauí, articula as lutas populares por
liberdade e justiça contra a opressão dos poderosos, a exemplo das revoltas milenaristas
pelas quais os pobres buscam instaurar o Reino de Mil Anos de felicidade e justiça
prometido na Bíblia.
Como se viu, a teoria política que orienta os pobres é aquela exposta nas páginas
da Bíblia. Está muito presente no imaginário popular a ideia do Paraíso, da Nova
Jerusalém ou dos fins dos tempos, quando o Cristo voltaria em sua glória e venceria o
Anti-Cristo, inaugurando um novo tempo.
As revoltas camponesas e dos artesãos no final da Idade Média, no início da
Reforma Protestante e a Revolução Inglesa de 1644 são exemplos de movimentos que,
segundo Chauí (2000), se inscrevem no horizonte da tradição libertária, de onde, mais
tarde, brotariam as ideias utópicas e as chamadas teorias socialistas.
As teorias socialistas modernas são o socialismo utópico, o anarquismo e
o comunismo ou socialismo científico. Em primeiro lugar, quais são as principais
características do socialismo utópico e do anarquismo? O que essas teorias têm em
comum e quem são seus principais representantes?
O socialismo utópico e o anarquismo têm algumas características em comum:
primeiro, veem a classe trabalhadora como despossuída e oprimida; como geradora
da riqueza social sem dela desfrutar; segundo, concebem os Estado burguês como um
instrumento artificial de dominação dos mais fortes; terceiro, propõem a organização de
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cidades que se autogovernem, valorizando a liberdade e a responsabilidade de todos nas
decisões da comunidade.
Os socialistas utópicos mais conhecidos são Saint Simon, Fourier, Proudhon e
Owen; enquanto os mais importantes anarquistas foram Bakunin, Tolstói e George Orwell.
Quanto ao comunismo ou socialismo científico, este foi desenvolvido por Karl Marx
e Friedrich Engels a partir da crítica não apenas ao liberalismo econômico e político, mas
também ao socialismo utópico. Quais as críticas de Marx ao pensamento político liberal?
O liberalismo político, fundado a partir do liberalismo econômico de Adam Smith
e David Ricardo, concebe a sociedade civil como manifestação de uma ordem natural
racional em que a concorrência é responsável pela riqueza social e pela harmonia entre
interesses privados e coletivos, ou mesmo, um aglomerado conflitante de interesses que
serão conciliados pelo contrato social através do Estado, uma instância separada da
sociedade civil, expressão do interesse e da vontade gerais, de tal forma que se insiste na
ideia da separação entre economia (espaço privado dos antigos gregos) e política (esfera
pública).
Marx, criticamente, vê a sociedade civil como um sistema de relações sociais
que organiza a produção econômica engendrando as classes sociais: proprietários e
não proprietários dos meios de produção, de modo que se realiza como luta de classes.
Quanto ao Estado, Marx critica a concepção liberal, argumentando que o Estado é a
expressão legal, jurídica e policial dos interesses da classe dominante, os proprietários
dos meios de produção, portanto, como expressão política da luta econômico-social das
classes e não como expressão da vontade geral ou do interesse geral, como se afirma no
liberalismo político.
Ressalta Chauí (2000): não é por acaso que o liberalismo define o Estado
como garantidor do direito de propriedade privada e reduz a cidadania aos direitos dos
proprietários privados. Na verdade, a teoria marxista nos faz ver que economia e política,
apesar de não parecer evidente, nunca estiveram separadas.
Antes de avançarmos na compreensão do pensamento de Marx, convem situar
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Estudos Antropológicos e Políticos
que teorias existiam antes que ele iniciasse a crítica da economia política e em que,
basicamente, consistiu esta crítica.
Objetivamente, o pano de fundo da teoria marxista são o socialismo utópico, o
liberalismo político, a economia política ou liberalismo econômico e o idealismo político
hegeliano. A crítica da economia política consistiu em mostrar que jamais houve separação
entre a esfera privada da propriedade e a esfera pública do poder, apesar das teorias
políticas greco-romanas e das teorias liberais, pois o poder político sempre foi a forma
legal de a classe economicamente dominante manter o seu domínio na sociedade.
Então, por que razão o pensamento de Marx e Engels é chamado de materialismo
histórico e dialético? Este nome do pensamento de Marx e Engels se justifica pelas razões
seguintes: primeiro, é materialismo porque nele se crê que a história das sociedades é
determinada pelas condições materiais de produção e pela divisão social do trabalho,
assim como se crê que a consciência humana é determinada a pensar as ideias que
pensa por causa das condições materiais instituídas pela sociedade; segundo, é histórico
porque nele se crê que a sociedade é resultado, não de decretos divinos ou de forças
naturais, mas da ação concreta dos seres humanos no tempo; e, terceiro, é dialético
porque nele se crê que a história não é um processo linear de causas e efeitos, mas
um processo de transformações sociais movido pelas contradições entre os meios de
produção e as forças produtivas, isto é, entre a forma de propriedade e o trabalho, seus
instrumentos e técnicas.
Bem, por que e como Marx distingue o aparecer social e a realidade social?
Para Marx a aparência da sociedade não corresponde ao que a realidade social
é de fato. A aparência social nos apresenta a realidade de cabeça para baixo, isto é,
o que é causa parece ser efeito, e o que é efeito parece ser causa, não apenas para
a consciência individual, mas, sobretudo, no plano da consciência social. O Estado,
por exemplo, aparece para a consciência social como legítimo, como justo, porque
defende o interesse geral ou coletivo, enquanto, na realidade defende o interesse dos
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proprietários privados, pois onde há propriedade privada há interesse privado e não pode
haver interesse geral. Esta aparência social é o que Marx chamou de ideologia, isto é,
um conjunto de imagens, de ideias ou representações sobre os seres humanos e suas
relações, sobre as coisas, sobre o bem e o mal, o justo e o injusto, os bons e os maus
costumes, formando um imaginário social invertido, decorrente do modo de produção
econômico.
Poder-se-ia ainda dar um outro exemplo de ideologia. Na realidade social há
capitalistas e trabalhadores, mas na ideologia aparece abstratamente o Homem. Deste
modo a ideologia cumpre sua finalidade, como lógica da dominação social e política:
ocultar a realidade da origem da sociedade; dissimular a presença da luta de classes;
negar as desigualdades sociais e oferecer a imagem ilusória da comunidade (o Estado)
originada do contrato social entre os homens livres e iguais.
Outro conceito central no pensamento de Karl Marx é o de praxis; um conceito
que remonta ao pensamento aristotélico, mas que é profundamente modificado em Marx,
articulando-se com o conceito de luta de classes.
Aristóteles distinguiu poiesis e praxis. Poiesis é a ação fabricadora, o trabalho e
as técnicas, naquele contexto social escravista, exercidas, sobreudo, pelos escravos,
enquanto a praxis é a ação livre do agente moral e do sujeito político, algo reservado aos
nobres dirigentes da sociedade, de tal modo que em Aristóteles se valoriza muito mais a
praxis do que a poiesis.
Os burgueses valorizam o trabalho, do ponto de vista moral, como legitimador
da propriedade privada, mas no plano político a praxis continuou sendo aquela greco-
romana, isto é, apenas os que são livres e não precisam trabalhar, participam do poder
político.
Neste horizonte, Marx critica a ideologia da praxis liberal, superando o concepção
aristotélica e afirmando que o ser humano é praxis e que praxis é trabalho: relação dos
seres humanos com a natureza e entre si, na produção das condições de sua existência,
ou seja, ação em que o agente e o produto de sua ação são idênticos, pois o agente
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se exterioriza na ação produtora e no produto, ao mesmo tempo em que este produto
interioriza uma capacidade criadora humana, ou a subjetividade.
Contudo, a praxis ou o trabalho, no sistema capitalista, é uma praxis alienada; isto
é, o trabalhador não se reconhece no produto de seu trabalho e vai ficando fora de si, à
medida que se exterioriza no processo produtivo, mas não tem acesso aos produtos por
ele produzidos, em razão do salário defazado que recebe, por causa da “mais valia”, ou
seja, aquela parte do trabalho que é apropriada pelo proprietário dos meios de produção
(capital).
A luta de classes é o conflito básico existente na sociedade capitalista entre
proprietários (burguesia) e não proprietários (proletariado) dos meios de produção. Graças
à propriedade dos meios de produção a burguesia exerce a dominação na sociedade,
enquanto, o proletariado, possuindo apenas sua prole (família) e seu trabalho, submete-
se ao domínio dos donos do capital, vendendo-lhes seu trabalho. Para Marx a ideologia
e o Estado são instrumentos de dominação, nesta luta desigual.
Karl Marx não foi apenas um teórico, crítico do capitalismo, mas se engajava na
ação política para que os proletários passassem à praxis política revolucionária. Afinal,
como isso se daria?
Marx considerava que a consciência é determinada pelas condições sociais do
trabalho e uma vez que no capitalismo industrial os proletários trabalham juntos no
ambiente da fábrica, pouco a pouco, eles perceberiam o caráter falseador da ideologia,
pois, enquanto ela lhes diz que eles são livres, perceberiam que não têm liberdade para
escolher o ofício, para definir o salário, para fixar a jornada de trabalho; ou enquanto lhes
diz que todos os homens são iguais, perceberiam que não podem ter moradia, vestuário,
transporte, saúde, educação, como os seus patrões. Enfim, eles acabariam por descobrir
como funciona o modo de produção capitalista, baseado na propriedade privada dos
meios de produção, que só faz o capital crescer graças à exploração do trabalho, através
da extração da “mais valia” ou lucro; perceberiam, então, a existência das classes sociais
e assumiriam uma praxis revolucionária, desmascarando as ideologias e o Estado
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capitalista, lutando, então, para construção de uma sociedade sem propriedade privada e
sem classes.
Bem, mas por que a revolução proletária deveria abolir o Estado?
A revolução proletária deveria abolir o Estado porque este, segundo o liberalismo
político, é fruto do contrato social celebrado entre iguais, isto é, entre proprietários, de
tal modo que sua finalidade precípua é garantir o direito a propriedade privada, portanto,
defender os interesses da classe proprietária. Considerando que a propriedade privada
é a fonte das contradições do capitalismo, a revolução colocaria um fim na propriedade
privada e para aboli-la necessário seria abolir antes aquele que a defende, o Estado.
Além disso, uma vez abolida a propriedade privada, não há também mais motivo para a
existência de um Estado, pois sua razão de ser já não mais existiria.
A questão do totalitarismo
A história política dos países tem se dado entre as teorias liberais e as teorias
socialistas, ocorrendo experiências múltiplas com regimes políticos diversos. Vamos
ver agora, o que caracteriza algumas experiências políticas totalitárias que marcaram
especialmente a primeira metade do século XX.
Em primeiro lugar, de forma bem objetiva, por que o nazismo, originado na
Alemanha, sob a liderança de Adolf Hitler, e o fascismo, originado na Itália, sob Benito
Mussolini, são regimes totalitários? Que outras características eles possuem em comum?
O nazismo e o fascismo são regimes antiliberais não porque são socialistas, mas
porque são totalitários, ou seja, neles o Estado é total, isto é, absorve em seu interior e em
sua organização o todo da sociedade e suas instituições, controlando-as por inteiro por
meio do partido único, das milícias jovens, da educação moral e cívica, da propaganda de
massa, da censura e da delação.
Diferentemente do socialismo, o nazismo e o facismo afirmam a colaboração de
classe, ou seja, capital e trabalho não são contrários mas complementares; no lugar das
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classes sociais criam as corporações de ofício harmonizadas pela política econômica
do Estado, ocultando assim a divisão de classe. Além disso, propõem aliança com o
capital industrial monopolista e financeiro que é imperialista e exige a conquista de novos
territórios para ampliação do mercado, daí também o caráter belicista daqueles regimes
movidos pela ideologia nacionalista expancionista.
O nazismo e o facismo professam um nacionalismo radical, ou seja, a relidade
social é a Nação, entendida como unidade territorial e identidade racial, linguística,
de costumes e tradições, sendo que nela imperaria um partido único que organiza as
massas, articulando a sociedade e o Estado.
Apesar do discurso de unidade nacional, o nazismo e o facismo possuem uma
ideologia de classe média, pois aproveitando o caráter conservador próprio daquela
classe que, não sendo proletária e nem burguesa, teme o risco do socialismo e da
desordem do liberalismo, propõem organizar o Estado e a economia de modo que lhe
sejam favoráveis.
Por fim, segundo Chauí (2000), o nazismo e o facismo se caracterizam pela adoção
da educação moral e cívica por meio da qual se incute nas crianças e adolescentes os
valores da pátria, da disciplina, da força do caráter, da necessidade de corpos fortes e
belos para a guerra; pela prática da propaganda de massa, especialmente através do
rádio, voltada para a manifestação de sentimentos, emoções e paixões, desvalorizando
a consciência crítica; pela prática da censura e da delação através das quais se controla
o pensamento, as ciências e as artes, perseguindo e torturando os dissidentes e
estimulando a delação dos “inimigos internos” do Estado; bem como pela prática do
racismo, especialmente, no nazismo, graças a sua ideia de uma raça superior a todas as
outras que deveriam ser dominadas ou eliminadas, tal como se tentou ao exterminar seis
milhões de judeus.
Outra experiência totalitária que se deve conhecer é aquela que brotou da revolução
de outubro de 1917, na Rússia, sob a liderança do Partido Bolchevique, aliás, segundo
Chauí (2000), contra toda a expectativa marxista, já que o capitalismo russo era ainda
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embrionário e não apresentava aquelas contradições radicais que, segundo Karl Marx,
desencadeariam a revolução comunista, condições que provavelmente surgiriam antes
na Inglaterra, na França ou mesmo na Alemanha, onde o capitalismo já se encontrava
mais desenvolvido.
Quais foram, então, segundo Marilena Chauí, as dificuldades enfrentadas pela
revolução de outubro de 1917? Objetivamente, a revolução bolchevique enfrentou as
dificuldades previsíveis: a reação militar e econômica do capital na forma de guerra civil
e boicote econômico; o envio, por parte dos poderes capitalistas, de tropas à Russia para
auxiliar a contra-revolução; o fracasso da revolução comunista alemã, em 1919, deixando
no isolamento a experiência revolucionária russa; a inexistência de forte consciência
política e organização operárias em um país majoritariamente agrário; ausência de
economia capitalista desenvolvida que houvesse preparado a infra-estrutura econômica e
a organização sociopolítica para a nova sociedade; os efeitos da guerra sobre a economia
e o boicote do capitalismo internacional que obrigaram a implantação de um “comunismo
de guerra”, isto é, a ditadura do partido Bolchevique, ao invés da ditadura do proletariado
e a estatização da economia (capitalismo de Estado) ao invés da abolição do Estado,
situação encarada como “etapa socialista” para a futura sociedade comunista.
Quando, porem, em 1924, veio a falecer Vladimir Lenim, o lider da revolução
bolchevique, o partido estava dividido entre duas lideranças, Trotski e Stalin. Tendo maior
influência, Stalin assumiu o poder do Estado, banindo do país muitos líderes da revolução
e implantando a tese do “socialismo num só país”, contrária ao internacionalismo proletário
pregado por Marx, consolidando um regime totalitário, tornando a Russia, mesmo às
custas de enormes sacrifícios e privações da população, potência econômica e militar
mundial.
O regime implantado na Rússia por Stalin o transcenderia. Por que o stalinismo
permaneceu após a morte de Stálin? O stalinismo permaneceu após a morte de Stalin
porque suas ideias e práticas totalitárias, muito parecidas àquelas do nazifascismo, foram
institucionalizadas, dando origem a uma nova formação social que modelou corpos,
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corações e mentes e que só desapareceu, parcialmente, no fim dos anos 80, quando,
sob Gorbachev, a crise econômica fez emergirem contradições sufocadas durante 70
anos, provocando a chamada Glasnost (transparência).
Ainda no horizonte de compreensão do stalinismo, sabendo-se de suas origens a
partir da revolução de outubro que se deu sob a inspiração marxista, pode-se perguntar:
que destruição do marxismo foi realizada pelo stalinismo?
Pontuando objetivamente, segundo Chauí, o stalinismo desvirtuou radicalmente
o marxismo: enquanto este falava da revolução proletária mundial, aquele falava de
socialismo num só país; à ideia da ditadura do proletariado para derrubada do Estado
contrapôs-se a ditadura do partido único e do Estado forte; a sociedade sem classes
de Marx foi substituída pela burocracia estatal, a nova classe dominante; à tese do
internacionalismo proletário contrapôs-se o nacionalismo e o imperialismo russo; a ideia
do partido político como instrumento de organização da classe trabalhadora foi substituída
pela burocracia partidária como vanguarda política, detentora do saber e do poder; a
tese da relação indissolúvel entre teoria e prática que permitiria o desenvolvimento da
consciência crítica da classe trabalhadora foi substituída pela propaganda estatal e pelo
controle da educação e dos meios de comunicação pelo partido e pelo Estado; à tese
de que a classe trabalhadora é sujeito de sua própria história contrapôs-se a ideia da
história oficial da classe proletária, identificada com a história do partido comunista e da
interpretação dada por este último aos acontecimentos históricos; enfim, à tese de Marx
da nova sociedade como concretização da liberdade, da igualdade, da abundância, da
justiça e da felicidade, o stalinismo contrapôs o “operário-modelo” e o “militante exemplar”,
acostumados à obediência cega aos comandos do Estado e do partido e à hierarquia
social imposta por eles.
Isto posto, salta aos olhos o quão distante do marxismo o stalinismo se situa, bem
como fica evidente que o socialismo científico, elaborado a partir da crítica ao capitalismo
e da crítica ao socialismo utópico, não logrou ser implementado nos termos pensados
por Karl Marx e Friedrich Engels, continuando pois uma utopia inspiradora.
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A questão da democracia
Tendo visto os traços gerais do totalitarismo no século XX, convem agora olhar
para o fenômeno da democracia, procurando, ainda que em linhas gerais e através
de questões pontuais, discernir sua essência e desmascarar suas feições ideológicas.
Assim, seguindo o esquema proposto por Marilena Chauí, vamos às perguntas e suas
respectivas possíveis respostas.
Por que a democracia corre o risco de ser transformada em mera ideologia? A
democracia corre o risco de ser transformada em mera ideologia à medida em que é
considerada apenas do ponto de vista formal ou teórico e não do ponto de vista concreto.
Ou seja, desde a Revolução Francesa de 1789 que a democracia declara os direitos
universais do homem e do cidadão, mas a sociedade está estruturada de uma maneira
que tais direitos não podem existir concretamente para a maioria da população. Ademais,
a democracia corre o risco de ser mera ideologia enquanto é entendida como liberdade
de competição ou enquanto é identificada com o regime da lei ou da ordem garantida
pelas potências do executivo e do judiciário, mas uma ordem que interessa efetivamente
apenas à classe dominante, tornando-se então um regime político eficaz, do ponto de vista
daquela classe, porque evitaria a participação dos “extremistas” e “radicais” da sociedade.
Por que é mais importante falar de sociedade democrática do que simplesmente de
governo democrático? Diz-se que uma sociedade é democrática, quando, além de
eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da
maioria e das minorias, institui-se algo mais profundo, que é condição do próprio regime
político, ou seja, quando se instituem direitos.
Para se compreender o alcance desta concepção da democracia como instituição e
garantia de direitos, convem saber a diferença entre carência, interesse e direito. Segundo
Chauí (2000), a carência é uma necessidade de alguém ou de um grupo, trata-se de
algo particular e específico, por exemplo, alguém pode ter necessidade de comida ou a
comunidade de um bairro da cidade pode ter carência de transportes; o interesse também
é algo particular e específico, por exemplo, o interesse dos comerciantes é diferente do
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interesse dos comerciários; agora, o direito não é particular e específico, ao contrário, é
geral e universal, isto é, válido para todos os indivíduos, grupos e classes. Por exemplo,
a necessidade de água ou a carência de comida manifesta algo mais profundo: o direito à
vida. Assim, salta aos olhos a importãncia da noção de direito para se definir democracia.
Para se compreender melhor a relação entre democracia e direitos, pergunta-se: por
que a democracia institui direitos novos? A democracia inventada pelos gregos instituiu
três direitos fundamentais: igualdade, liberdade e participação no poder. Contudo,
observando a história da democracia real, com seus altos e baixos, percebe-se que tais
direitos tenderam a se ampliar graças às lutas socialistas e populares. A democracia
efetiva, amplia ou cria direitos porque é o único regime político que considera o conflito
legítimo; não só trabalha politicamente os conflitos de necessidades e de interesses como
procura instituí-los como direitos e exigir que sejam respeitados, graças as associações,
sindicatos e partidos que se estabelecem como um contra-poder social face ao poder do
Estado. Ademais, a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta
às possibilidades da liberdade e, portanto, de alterar-se pela própria prática.
Outro elemento importante para se compreender a democracia é a prática de
eleições. Afinal, o que são as eleições? Segundo Marilena Chauí, as eleições significam
muito mais do que a mera rotatividade de governos ou a alternância de partidos no poder.
As eleições simbolizam o essencial da democracia, ou seja, o poder não se identifica
com os ocupantes do governo, não lhes pertence, mas é sempre um lugar vazio que,
de tempo em tempo, os cidadãos preenchem com um representante, podendo inclusive
revogar seu mandato se não cumprir o que lhe foi delegado.
Por fim, quais os principais obstáculos à democracia? O “governo do povo, pelo
povo e para o povo” enfrenta grandes obstáculos. Talvez o primeiro deles seja o próprio
capitalismo posto que se organiza a partir da exploração de um classe social por outra,
ainda que a ideologia afirme que todos são livres e iguais. Se nos países centrais a
exploração dos trabalhadores é menor, isto se tornou possível em razão de uma divisão
internacional do trabalho que atribuiu a exploração mais violenta do trabalho pelo capital
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ao terceiro mundo. Outro obstáculo à democracia, ou seja, à concretização dos direitos
de igualdade e de liberdade é o abandono da política do Estado do Bem-Estar5 social
a favor de um neoliberalismo, via privatização das políticas sociais e desregulação
da economia, acreditando-se na possibilidade de o mercado resolver os problemas
econômicos e sociais; sem falar do grande desenvolvimento das tecnologias eletrônicas
que causaram desemprego em massa. Outro obstáculo à democracia, especialmente
ao direito à participação política, ergueu-se a partir de uma nova divisão do trabalho
industrial, na segunda metade do século XX, entre dirigentes que detém o saber científico
e tecnológico e os executantes que não detém o conhecimento, mas apenas executam
tarefas; uma lógica ideológica que invadiu o campo da política tornando-a uma atividade
para administradores competentes e não uma ação de todos os cidadãos. Por fim, o
obstáculo colocado pelos meios de comunicação de massa que transmitem as informações
de acordo com os interesses de seus proprietários ou dos detentores do poder econômico
e político, negando ao povo o direito à informação o que impede uma participação política
qualificada.
Dificuldades da democracia brasileira
Marilena Chauí conclui o seu Convite à filosofia com uma apreciação crítica da
realidade da democracia no Brasil, apontando as dificuldades enfrentadas pela nossa
democracia. Mesmo sendo um texto longo, e embora tenha sido elaborado no final
do século passado, em razão da expressividade e atualidade do mesmo, vale a pena
transcrevê-lo na íntegra:
“Periodicamente os brasileiros afirmam que vivemos numa democracia, depois de concluída uma fase de autoritarismo. Por democracia entendem a existência de eleições, de partidos políticos e da divisão republicana dos três poderes, além da liberdade de pensamento e de expressão. Por autoritarismo, entendem um regime de governo em que o Estado é ocupado através de um golpe (em geral militar ou com apoio militar), não
5 Estado do Bem-Estar social (Welfare State) uma prática política em que o Estado passa a intervir na economia para garantir uma melhor distribuição dos benefícios do desenvolvimento e passa a assumir serviços públicos tais como saúde, educação, moradia, transporte, previdência social, seguro desemprego, bem como a garantir o sufrágio universal. Uma estratégia do capitalismo para se evitar o perigo do retorno do nazifacismo e da revolução comunista. (CHAUÍ, 2000, 429)
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há eleições nem partidos políticos, o poder executivo domina o legislativo e o judiciário, há censura do pensamento e da expressão (por vezes com tortura e morte) dos inimigos políticos. Em suma, democracia e autoritarismo são vistos como algo que se realiza na esfera do Estado e este é identificado com o modo de governo.Essa visão é cega para algo profundo na sociedade brasileira: o autoritarismo social. Nossa sociedade é autoritária porque é hierárquica, pois divide as pessoas, em qualquer circunstância, em inferiores, que devem obedecer, e superiores, que devem mandar. Não há percepção nem prática da igualdade como um direito. Nossa sociedade também é autoritária porque é violenta (nos termos em que, no estudo da ética, definimos a violência): nela vigoram racismo, machismo, discriminação religiosa e de classe social, desigualdades econômicas das maiores do mundo, exclusões culturais e políticas. Não há percepção nem prática do direito à liberdade. O autoritarismo social e as desigualdades econômicas fazem com que a sociedade brasileira esteja polarizada entre as carências das camadas populares e os interesses das classes abastadas e dominantes, sem conseguir ultrapassar carências e interesses e alcançar a esfera dos direitos. Os interesses, porque não se transformam em direitos, tornam-se privilégios de alguns, de sorte que a polarização social se efetua entre os despossuídos (os carentes) e os privilegiados. Estes, porque são portadores dos conhecimentos técnicos e científicos, são os “competentes”, cabendo-lhes a direção da sociedade.Como vimos, uma carência é sempre específica, sem conseguir generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito. Um privilégio, por definição, é sempre particular, não podendo generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito, pois, se tal ocorresse, deixaria de ser privilégio. Ora, a democracia é criação e garantia de direitos. Nossa sociedade, polarizada entre a carência e o privilégio, não consegue ser democrática, pois não encontra meios para isso.Esse conjunto de determinações sociais manifesta-se na esfera política. Em lugar de democracia, temos instituições vindas dela, mas operando de modo autoritário.Assim, por exemplo, os partidos políticos costumam ser de três tipos: os clientelistas, que mantêm relações de favor com seus eleitores, os vanguardistas, que substituem seus eleitores pela vontade dos dirigentes partidários, e os populistas, que tratam seus eleitores como um pai de família (o despotes) trata seus filhos menores. Favor, substituição e paternalismo evidenciam que a prática da participação política, através de representantes, não consegue se realizar no Brasil. Os representantes, em lugar de cumprir o mandato que lhes foi dado pelos representados, surgem como chefes, mandantes, detentores de favores e poderes, submetendo os representados, transformando-os em clientes que recebem favores dos mandantes.A “indústria política” – isto é, a criação da imagem dos políticos pelos meios de comunicação de massa para a venda do político aos eleitores-consumidores – aliada à estrutura social do país, alimenta um imaginário político autoritário. As lideranças políticas são sempre imaginadas como chefes salvadores da nação, verdadeiros messias escolhidos por Deus e referendados pelo voto dos eleitores. Na verdade, não somos realmente eleitores (os que escolhem), mas meros votantes (os que dão o voto para alguém).A imagem populista e messiânica dos governantes indica que a concepção teocrática do poder não desapareceu: ainda se acredita no governante como enviado das divindades (o número de políticos ligados a astrólogos e videntes fala por si mesmo) e que sua vontade tem força de lei.As leis, porque exprimem ou os privilégios dos poderosos ou a vontade
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pessoal dos governantes, não são vistas como expressão de direitos nem de vontades e decisões públicas coletivas. O poder judiciário aparece como misterioso, envolto num saber incompreensível e numa autoridade quase mística. Por isso mesmo, aceita-se que a legalidade seja, por um lado, incompreensível, e, por outro, ineficiente (a impunidade não reina livre e solta?) e que a única relação possível com ela seja a da transgressão (o famoso “jeitinho”).Como se observa, a democracia, no Brasil, ainda está por ser inventada.” (CHAUÍ, 2000, 435-436).
A bem da verdade, por um lado, é preciso dizer que o quadro das dificuldades da
democracia brasileira hoje, talvez não corresponda mais exatamente à caracterização
descrita pela autora, em razão das mudanças havidas na sociedade brasileira, inclusive
graças à participação de Marilena Chauí, apoiando os movimentos populares que, em
2002, garantiram a vitória nas urnas de um projeto político mais sensível às condições
existenciais das camadas populares.
Contudo, por outro lado, não obstante todas as mudanças havidas, considerando
o passivo de uma história política de dominação das elites e de sistemática exclusão das
classes subalternas, precisa-se reconhecer que a descrição de Chauí sobre as dificuldades
da democracia no Brasil ainda corresponde grandemente à nossa realidade, até porque
se trata de uma cultura política consolidada que não se altera em pouco tempo.
Sendo assim, urge empenhar-se diuturnamente no processo de construção da
democracia em andamento, avançando-se a cada dia na perspectiva da ampliação e
garantia da efetividade dos Direitos Humanos na sociedade brasileira.
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Estudos Antropológicos e Políticos
Módulo 16 – Democracia, Direitos Humanos e meio ambiente
Depois de se compreender a democracia para além de seus aspectos formais,
como conquista e efetivação de direitos, este último módulo confrontará a questão dos
Direitos Humanos e a questão do meio ambiente com a questão da democracia.
Direitos Humanos e democracia.
Não obstante visões estreitas que identificam os movimentos pelos Direitos
Humanos apenas com a reivindicação de tratamento digno aos criminosos, aqueles
movimentos possuem uma história rica na qual o advento da Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948 significou um passo decisivo com
desdobramentos promissores em todo o mundo.
A propósito, o que são os Direitos Humanos? Segundo a Resolução Nº 1 do
Conselho Nacional de Educação que trata das diretrizes para educação em Direitos
Humanos no Brasil,
“Os Direitos Humanos, internacionalmente reconhecidos como um conjunto de direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sejam eles individuais, coletivos, transindividuais ou difusos, referem-se à necessidade de igualdade e de defesa da dignidade humana.” (CNE/CP Resolução N 1, 2012, art. 2º,§ 1º).
Percebe-se pelo enunciado a grande abrangência dos Direitos Humanos e
que, portanto, a ideia de que Direitos Humanos se identifica apenas com a defesa de
tratamento humanitário para os criminosos recolhidos nas penitenciárias não passa de
um vesquismo imenso a denunciar a falta de educação em Direitos Humanos.
Regis de Morais, em seus livro Sociologia crítica contemporânea (2002), falou
sobre as novas dimensões dos Direitos Humanos. Seguindo o seu esquema, enumera-
se aqui, objetivamente, os pontos mais relevantes de um breve histórico da evolução dos
Direitos Humanos.
A família é apresentada como o primeiro espaço humano de caráter político, onde
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relações de poder ocorrem constituindo direitos e deveres, não importanto muito se a
família é mais ou menos democrática.
A partir da família, Morais (2002) destaca os seguintes momentos na evolução
dos Direitos Humanos: 1) - a teocracia hebraica, na qual a Tora ou o Pentateuco, os
cinco primeiros livros da Bíblia, é um grande tratado de direito que visava garantir a boa
convivência dos judeus e agradar a Deus; 2) - a civilização grega, onde, como se viu, foi
propriamente inventada a política, uma decorrência da natureza racional do ser humano,
buscando-se implementar as ideias de justiça e liberdade; 3) - a contribuição dos romanos
surge de forma negativa, motivada pelas opressões praticadas pelo Império Romano
que fizeram Sêneca, Petrônio e Cícero levantarem a bandeira dos Direitos Humanos;
4) - na Idade Média, enquanto as cúpulas da Igreja se articulavam com os poderosos,
ordens religiosas como os Agostinianos e os Franciscanos se mobilizaram em defesa
dos direitos do cidadão; 5) - na Idade Moderna a luta pelos Direitos Humanos avança
significativamente, constituindo-se vários tratados em defesa dos cidadãos face ao abuso
dos Monarcas, desde a Carta Magna (1215) sob o reinado de João Sem Terra, passando
pela revolução gloriosa em 1688 com o England Bill of Rights, chegando à Revolução
Francesa em 1789 com a Declaration des Droits de L’homme et du Citoyens; 6) - no
século XIX, Marx e Engels, face às contradições do capitalismo industrial, conclamam
os proletários a se unirem para mudar a lógica exploratória daquela organização social
perversa; 7) – culminando o longo itinerário de avanços dos Direitos Humanos, no século
XX , com a Declaração da ONU de 1948.
O século XX herdou a bipolaridade conflitiva entre direitos sociais e direitos
individuais, superada apenas em 1948. Alceu Amoroso Lima, citado por Morais (2002),
fala de um movimento pendular: na Idade Média, primazia dos direitos sociais através
do Estado ou Reino, Igreja ou corporação de ofício; na Idade Moderna, primazia dos
direitos individuais simbolizada pelo movimento de independência norte-americana e pela
Revolução Francesa, até que, no século XX, aquela tensão entre direitos sociais e direitos
individuais foi resolvida pela Declaração de 1948 da ONU que proclama o cidadão como
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sujeito de direitos e de deveres, harmonizando, portanto, os dois polos do movimento
pendular.
Morais (2002) cita a obra Cidadania e Globalização (1998) de Liszt Vieira e
esquematiza a evolução dos Direitos Humanos em quatro gerações de direitos, a
saber: 1ª) Civis e Políticos (direito à liberdade, à igualdade, à propriedade, de ir e vir,
de se associar, de participar, de votar e ser votado); 2ª) sociais (direito ao trabalho,
saúde, educação, moradia, bem-estar social); 3ª) coletivos e humanitários (direito ao
desenvolvimento e à paz; ao meio ambiente sadio; do consumidor; do idoso; da criança
e do adolescente, das mulheres; etc); 4ª) Bioéticos (proteção à vida contra intervenções
indevidas na estruturas vitais, a questão da engenharia genética).
Isto posto, registra Morais:
“...o que vamos constatando são claros avanços no refinamento da conceituação de direitos do cidadão, os quais, como nos parece claro, não se voltam – como querem vozes cínicas – apenas para os bandidos nas penitenciárias. Para a construção atual dos direitos do homem importa o ser humano todo e todos os seres humanos.” (MORAIS, 2002, 214).
É impressionante o crescimento, no século XX, da preocupação com os Direitos
Humanos no mundo. Além da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU em
1948, uma série de outros instrumentos internacionais de proteção dos Direitos Humanos
foram elaborados e promulgados influenciando as novas Cartas Constitucionais de
inúmeras nações.
Regis de Morais fala de como o fenômeno da globalização, esse conjunto complexo
de processos econômicos, políticos, tecnológicos e culturais que não pode ser ignorado,
intensifica o entrelaçamento entre Direito Interno e Direito Internacional, redefinindo e
não eliminando a Soberania dos Estados Nacionais.
Ressalta-se que o Brasil, pela sua Constituição de 1988, é signatário da Declaração
Universal dos Direitos Humanos feita pela ONU em 1948 que influenciou a elaboração
de várias constituições nacionais mundo afora, criando perspectivas promissoras na luta
pela defesa dos direitos da pessoa e do cidadão.
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Uma circunstância que inspira otimismo em relação à necessária ampliação dos
Direitos Humanos para consolidação da democracia no Brasil é o empenho na educação
em Direitos Humanos cujo objetivo foi explicitado no artigo 5º da Resolução nº 1 do
Conselho Nacional de Educação.
“Art. 5º A Educação em Direitos Humanos tem como objetivo central a formação para a vida e para a convivência, no exercício cotidiano dos Direitos Humanos como forma de vida e de organização social, política, econômica e cultural nos níveis regionais, nacionais e planetário.” (CNE/CP – RESOLUÇÃO N 1/2012).
O Parecer 008 do Conselho Nacional de Educação de 06 de março de 2012,
resgatando a história recente dos Direitos Humanos bem como, no âmbito do direito
humano fundamental à educação, a história da educação em Direitos Humanos no Brasil,
destaca a elaboração, em 2003, do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos –
PNEDH, onde se explicita em que consiste aquele projeto:
“Assim, o PNEDH define a Educação em Direitos Humanos como um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação do sujeito de direitos, articulando as seguintes dimensões:a) apreensão de conhecimentos historicamente construídos sobre Direitos Humanos e a sua relação com os contextos internacional, nacional e local;b) afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que expressem a cultura dos Direitos Humanos em todos os espaços da sociedade;c) formação de uma consciência cidadã capaz de se fazer presente em níveis cognitivo, social, cultural e político;d) desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de construção coletiva, utilizando linguagens e materiais didáticos contextualizados;e) fortalecimento de práticas individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da promoção, da proteção e da defesa dos Direitos Humanos, bem como da reparação das violações.” (CNE/CP – PARECER 008/2012,5).
Isto posto, percebe-se a viceral relação entre Direitos Humanos e democracia e
como tal relação é dependente da educação. No Brasil, com o fim da ditadura militar,
simbolizada pela promulgação da Constituição da República de 1988, de lá para cá, tem-
se assistido a um crescente processo de fortalecimento da construção da educação em
Direitos Humanos.
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Uma série de dispositivos que visam a proteção e a promoção de direitos da
criança e do adolescente; a educação das relações étnico-raciais; a educação escolar
quilombola, indígena, ou de jovens e adultos que se encontram em estabelecimentos
penais; a educação ambiental; as temáticas de identidade de gênero e orientação sexual
na educação; a inclusão educacional das pessoas com deficiência e a implementação dos
Direitos Humanos de forma geral no sistema de ensino brasileiro atestam o fortalecimento
da educação em Direitos Humanos; uma perspectiva animadora quando se sabe da
relação direta entre educação, Direitos Humanos e democracia verdadeira.
Ouvindo Milton Nascimento que cantou: “Se muito vale o já feito, mais vale o que
será. E o que foi feito. É preciso conhecer para melhor prosseguir.”, enumeram-se aqui
alguns avanços importantes da democracia brasileira nas últimas décadas que, pouco
a pouco, vai deixando de ser mera formalidade e se concretizando para o bem geral da
nação.
Em primeiro lugar, registra-se a resistência e a luta de muitos brasileiros e brasileiras
contra o cerceamento dos direitos políticos ao longo do regime militar; uma história de
sangue, suor e lágrimas, escrita pelo desaparecimento de tantos, contada pelas torturas
sofridas por muitos presos e exilados; culminando aquele período tenebroso de nossa
história com a reconquista da democracia na forma de direitos políticos, simbolizada na
campanha das “Diretas Já” de 1985 e, sobretudo, na promulgação da nova Constituição
Brasileira de 1988.
De lá para cá, entre avanços e retrocessos, em busca de uma democracia que
se traduza como efetividade de Direitos Humanos ou cidadania para todos, ressalta-
se que a partir da importante conquista da estabilidade econômica em 1994, assiste-
se no Brasil, à redução dos índices de miséria e de pobreza, resultado não apenas
do crescimento econômico, mas também das políticas de distribuição de renda que
promoveram a redução das desigualdades econômicas e sociais no país.
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Objetivos do Milênio no Brasil
Tomando o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD,
conhecido como Objetivos de Desenvolvimento do Milênio - ODM, elaborado no ano
2000 para ser cumprido até 2015; um projeto diretamente conectado ao tema dos Direitos
Humanos e da efetividade da democracia, face a suas metas: 1 - Acabar com a fome
e a miséria; 2 - Oferecer educação básica de qualidade para todos; 3 - Promover a
igualdade entre os sexos e a valorização das mulheres; 4 - Reduzir a mortalidade infantil;
5 - Melhorar a saúde das gestantes; 6 - Combater a Aids, a malária e outras doenças; 7 -
Garantir qualidade de vida e respeito ao meio ambiente; 8 - Estabelecer parcerias para o
desenvolvimento, qual a situação do Brasil?
Talvez esse balanço em relação ao cumprimento dos objetivos do milênio deixe
transparecer como estamos ou não avançando no sentido de se inventar a democracia
como forma social de vida, ou como efetividade dos Direitos Humanos fundametais da
igualdade e da liberdade.
Segundo fontes oficiais6 , a meta dos ODM de reduzir a fome e a pobreza extrema
até 2015 à metade do que era em 1990 foi alcançada pelo Brasil em 2002. Em 2007,
a meta nacional de reduzir a porcentagem de pobres a ¼ da de 1990, apesar de mais
ambiciosa, também foi cumprida e superada em 2008.
6 Objetivos de desenvolvimento do Milênio: relatório nacional de acompanhamento, 2014. Disponível em http://www.pnud.org.br/Docs/5_RelatorioNacionalAcompanhamentoODM.pdf acessado em 05/11/2014.
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Estudos Antropológicos e Políticos
Gráfico 1
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Pelo que se observa no gráfico acima, o Brasil deu grande contribuição para o
cumprimento global da primeira meta dos ODM vez que conseguiu reduzir não apenas à
metade, ou a um quarto, mas a menos de um sétimo a pobreza extrema no país que em
1990 era de 25,5% e foi reduzida em 2012 para 3.5% da população brasileira.
Quanto à meta de oferecer educação básica de qualidade para todos, nos últimos
anos, houve avanços significativos em termos de acesso e rendimento escolar de
crianças e jovens no Brasil. Em 2009, conforme dados do governo, 95,3% da faixa etária
de 7 a 14 anos freqüentavam o ensino fundamental. No mesmo ano, 75% dos jovens
que haviam atingido a maioridade concluíram o ensino fundamental. Como se vê há um
grande desafio a vencer: embora 98% da população, mais de 50 milhões de crianças
e jovens, tenham acesso à educação básica, elevados índices de repetência e evasão
reduzem a taxa de conclusão escolar.
No que se refere à meta de promover a igualdade entre os sexos e valorização
das mulheres, considerando que tal meta depende do acesso à educação, registra-se
que nesse aspecto o Brasil alcançou a meta, pois meninas e mulheres já são maioria 7 Idem, página 15.
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em todos os níveis de ensino. Apesar das melhoras havidas nos indicadores específicos,
registra-se que a desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, nos
rendimentos e na política persiste, sem falar que a violência doméstica continua atingindo
milhares de mulheres brasileiras.
Quanto à taxa da mortalidade infantil (menores de 1 ano) por mil nascidos vivos
passou de 29,7, em 2000, pra 15,6, em 2010. Essa taxa é menor que a meta prevista para
2015, de 15,7 por mil nascidos vivos. A taxa de mortalidade das crianças abaixo de cinco
anos apresentou queda de 65% entre 1990 e 2010. O número de óbitos por mil nascidos
vivos passou de 53,7 para 19 óbitos. Os indicadores demonstram que tanto as taxas de
mortalidade na infância (menores de 5 anos) e infantil (menores de 1 ano) apresentaram
forte queda entre 1990 e 2010.
No que se refere a melhorar a saúde da gestante, assume-se que este é o objetivo
que o Brasil tem mais dificuldade de atingir. O país melhorou, mas ainda não alcançou
a meta de reduzir em ¾, entre 1990 e 2015, a razão da mortalidade materna. Segundo
estimativas da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, a razão da
mortalidade materna era de 141 por 100 mil nascidos vivos em 1990 e declinou para 68
por 100 mil nascidos vivos em 2010. Esforços estão sendo envidados para se avançar
nesse aspecto e se alcançar a meta de 35 óbitos por 100 mil nascidos vivos em 2015.
No que se refere à meta do combate à AIDS, à Malária e a outras doenças, o
Brasil tem conseguido cumprir a meta do programa da ONU, sua experiência de combate
à epidemia de HIV/Aids se tornou uma referência mundial. Desde o início da epidemia,
em 1980, até junho de 2011, o Brasil registrou 608,2 mil casos de AIDS, mas a taxa de
incidência passou de 20,0 por 100 mil habitantes em 2003 para 17,9 por 100 mil habitantes
em 2010. Em relação à malária. O número de exames positivos por mil habitantes caiu de
33,2, em 1990, para 13,1 em 2010. Quanto à tuberculose, o número de casos novos por
100 mil habitantes caiu de 51,8, em 1990, para 37,6, em 2010, e reduziu pela metade os
óbitos pela doença já em 2010, cinco anos antes do prazo final.
Tratando-se do objetivo da qualidade de vida e respeito ao meio ambiente, a área
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de 6.418 km² desmatada na Amazônia no período de agosto de 2010 a julho de 2011
é 76,9% menor do que a registrada em 2004, quando foi criado o Plano de Ação para
a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal. Atualmente, 81,2% da
floresta original da Amazônia permanecem conservados. Esta redução do desmatamento
na Amazônia ajuda na meta de redução da emissão de gases de efeito estufa, tendo
reduzido em 19,2% até 2011, sendo que a meta é de 36,1%, a ser alcançada em 2020.
O Brasil pode contar ainda com 75,1 milhões de hectares de Unidades de Conservação
Ambiental federais. A homologação de terras indígenas já atinge 109,77 milhões de
hectares, cerca de 12,9% do território nacional. As terras indígenas são responsáveis
pela preservação de 30% da biodiversidade brasileira.
Já se atingiram as metas relativas ao abastecimento de água e ao esgotamento
sanitário dos Objetivos do Milênio. De uma forma geral, o Brasil ruma à universalização
do acesso ao abastecimento de água no meio urbano, com aproximadamente 91,9%
dos domicílios ligados à rede de abastecimento. No caso do esgoto, no entanto, ainda
estamos longe da universalização. O total ligado à rede coletora ou à solução individual
por fossa séptica é de 75,3% .
Por fim, quanto à oitava meta: todo mundo trabalhando para o desenvolvimento,
tendo-se consciência da responsabilidade da comunidade local, regional, nacional e
internacional para com o desenvolvimento, trabalha-se internamente na implementação
de políticas públicas que visam aumentar a inclusão social, envidando esforços para
tornar a gestão municipal eficiente e eficaz na aplicação dos recursos e na catalização
do desenvolvimento local, enquanto se intensifica a agenda bilateral e o fortalecimento
das relações com países da América Latina e Caribe.
Isto posto, percebe-se como a luta pela efetivação dos Direitos Humanos,
formalmente já garantidos, é importante para concretizar a democracia como forma de
vida e organização social. Fica evidente o entrelaçamento da democracia e dos Direitos
Humanos, não apenas do ponto de vista teórico-conceitual, mas também prático,
observando-se a história brasileira recente; fato que deve servir de incentivo, face aos
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grandes desafios da democracia no Brasil, para se valorizar e efetivamente promover, em
todas as instâncias, a educação em Direitos Humanos.
Meio ambiente e democracia
O meio ambiente e a democracia são duas questões visceralmente entrelaçadas.
Uma afirmação que pode parecer mero chavão, irresistível a um exame crítico. Contudo,
se se considera com o vagar necessário, meio ambiente e democracia revelam suas
essências, evidenciando suas mais íntimas ligações.
A democracia verdadeira, como se viu, para além de mero sistema político-eleitoral,
é uma forma social de vida, dinamizada pela criação e efetivação de direitos pela via da
participação social, no sentido mais amplo e profundo, dos cidadãos na vida da polis,
aquele solo comum que a todos oferece seus bens.
O direito, segundo a filósofa Marilena Chauí, distingue-se da carência e do interesse,
pois enquanto estes geralmente são particulares, referindo-se a grupos ou seguimentos
sociais específicos, o direito é necessariamente universal, é sempre para todos os que
vivem sob o solo daquela polis que reconhece a conquista do direito; se não é para todos
não é direito, mas privilégio.
Vale lembrar que a globalização é uma realidade inelutável que integra as nações,
articulando direito interno e direito internacional, sem prejuízo da soberania das nações,
evidenciando que somos cidadãos planetários, ou seja, a terra é nossa casa comum, o
meio ambiente não tem fronteiras; ela é nossa grande aldeia, fonte que nos sustenta e que
demanda de nós assumir responsabilidades e dela cuidar com a mesma generosidade
com que ela nos alimenta.
Deste modo, o meio ambiente, por seu turno, afirma-se como um direito fundamental
da pessoa humana; um direito natural que decorre do próprio direito à vida; vida que
brota do rico solo planetário, entrecortado pelos seus rios, ribeirões, córregos e riachos,
cujas águas, enquanto correm para os mares e oceanos, perfazem o seu ciclo natural,
umidificando o ar, elemento imprescindível da vida, subindo aos céus e retornando para
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Estudos Antropológicos e Políticos
irrigar e fecundar os solos que produzem tantas espécies vivas que se amam e se
entregam, crescendo e multiplicando-se como ordenara o criador.
Assim, meio ambiente e democracia revelam-se articulados, não apenas do ponto
de vista formal pela categoria do direito, mas também do ponto de vista real pela categoria
da vida. Haja vista que democracia é criação e garantia de direitos que favorecem a
vida, e que meio ambiente é direito natural fundamental, pois é a fonte da própria vida
humana.
Isto posto, diante do fenômeno do aquecimento global e das preocupantes
mudanças climáticas que já acarretam sofrimentos a vários povos, mundo afora, ecoa
por todos os cantos do planeta um grito de alerta para que façamos uma revisão de
nossos conceitos e padrões de comportamento em relação à natureza. Eis que salta aos
olhos a importância de se cuidar da vida, preservar os recursos naturais, não só para os
atuais, como também para os futuros habitantes do planeta.
A Constituição Brasileira, segundo Rocha (2011), dedicou um capítulo próprio para
tratar das questões ambientais e, em seu artigo 225, dispõe que o meio ambiente é um
bem de uso comum do povo e um direito de todos os cidadãos, das gerações presentes
e futuras, estando o Poder Público e a coletividade obrigados a preservá-lo e a defendê-
lo.
Rocha (2011) ressalta a consagração na constituição brasileira da tríplice
dimensão do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ou seja,
individual, social e intergeracional. Individual na medida em que interessa a cada pessoa,
detentora do direito fundamental à vida sadia. Social enquanto é um patrimônio coletivo,
ou seja, a água, o ar e o solo, bens essenciais, devem satisfazer as necessidades de
todos. Intergeracional porque a geração presente deve defender e preservar os recursos
ambientais para as futuras gerações.
Nesta perspectiva, para se perceber mais claramente ainda a interconexão entre
meio ambiente, democracia e Direitos Humanos, vale a pena conhecer a carta da terra
elaborada, depois de longo processo de discussão, no ano 2000, por uma comissão
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internacional de especialistas, sob o patrocínio da ONU; um documento que pretende
ser um código ético planetário, o qual, segundo Boff (2003), coloca a categoria da inter-
retro-relação de tudo com tudo como eixo articulador da convicção de que formamos uma
grande comunidade terrenal e cósmica.
Carta da Terra8
Assim, encerrando-se esse tópico “meio ambiente e democracia”, transcreve-se
aqui o preâmbulo da carta da terra e os itens principais de seus princípios, sem os seus
desdobramentos, onde se destacam valores éticos como a integridade ecológica, a justiça
econômica e social, a democracia e a paz.
PREÂMBULOEstamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro reserva, ao mesmo tempo, grande perigo e grande esperança. Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio de uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos nos juntar para gerar uma sociedade sustentável global fundada no respeito pela natureza, nos Direitos Humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade de vida e com as futuras gerações.
TERRA, NOSSO LARA humanidade é parte de um vasto universo em evolução. A Terra, nosso lar, é viva como uma comunidade de vida incomparável. As forças da natureza fazem da existência uma aventura exigente e incerta, mas a Terra providenciou as condições essenciais para a evolução da vida. A capacidade de recuperação da comunidade de vida e o bem-estar da humanidade dependem da preservação de uma biosfera saudável com todos seus sistemas ecológicos, uma rica variedade de plantas e animais, solos férteis, águas puras e ar limpo. O meio ambiente global com seus recursos finitos é uma preocupação comum de todos os povos. A proteção da vitalidade, diversidade e beleza da Terra é um dever sagrado.
A SITUAÇÃO GLOBALOs padrões dominantes de produção e consumo estão causando devastação ambiental, esgotamento dos recursos e uma massiva extinção de espécies. Comunidades estão sendo arruinadas. Os benefícios do desenvolvimento não estão sendo divididos eqüitativamente e a diferença entre ricos e pobres está aumentando. A injustiça, a pobreza, a ignorância e os conflitos violentos têm aumentado e são causas de grande sofrimento. O crescimento sem precedentes da população humana tem sobrecarregado os sistemas ecológico e social. As bases da segurança global estão
8 Disponível em http://www.cartadaterrabrasil.org/prt/text.html acesso em novembro de 2014.
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ameaçadas. Essas tendências são perigosas, mas não inevitáveis.
DESAFIOS FUTUROSA escolha é nossa: formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida. São necessárias mudanças fundamentais em nossos valores, instituições e modos de vida. Devemos entender que, quando as necessidades básicas forem supridas, o desenvolvimento humano será primariamente voltado a ser mais e não a ter mais. Temos o conhecimento e a tecnologia necessários para abastecer a todos e reduzir nossos impactos no meio ambiente. O surgimento de uma sociedade civil global está criando novas oportunidades para construir um mundo democrático e humano. Nossos desafios ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais estão interligados e juntos podemos forjar soluções inclusivas.
RESPONSABILIDADE UNIVERSALPara realizar estas aspirações, devemos decidir viver com um sentido de responsabilidade universal, identificando-nos com a comunidade terrestre como um todo, bem como com nossas comunidades locais. Somos, ao mesmo tempo, cidadãos de nações diferentes e de um mundo no qual as dimensões local e global estão ligadas. Cada um compartilha responsabilidade pelo presente e pelo futuro bem-estar da família humana e de todo o mundo dos seres vivos. O espírito de solidariedade humana e de parentesco com toda a vida é fortalecido quando vivemos com reverência o mistério da existência, com gratidão pelo dom da vida e com humildade em relação ao lugar que o ser humano ocupa na natureza.Necessitamos com urgência de uma visão compartilhada de valores básicos para proporcionar um fundamento ético à comunidade mundial emergente. Portanto, juntos na esperança, afirmamos os seguintes princípios, interdependentes, visando a um modo de vida sustentável como padrão comum, através dos quais a conduta de todos os indivíduos, organizações, empresas, governos e instituições transnacionais será dirigida e avaliada.
PRINCÍPIOSI. RESPEITAR E CUIDAR DA COMUNIDADE DE VIDA
1. Respeitar a Terra e a vida em toda sua diversidade.2. Cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor.3. Construir sociedades democráticas que sejam justas, participativas, sustentáveis e pacíficas.4. Assegurar a generosidade e a beleza da Terra para as atuais e às futuras gerações.
II. INTEGRIDADE ECOLÓGICA5. Proteger e restaurar a integridade dos sistemas ecológicos da Terra, com especial atenção à diversidade biológica e aos processos naturais que sustentam a vida.6. Prevenir o dano ao ambiente como o melhor método de proteção ambiental e, quando o conhecimento for limitado, assumir uma postura de precaução.7. Adotar padrões de produção, consumo e reprodução que protejam as capacidades regenerativas da Terra, os Direitos Humanos e o bem-estar comunitário.8. Avançar o estudo da sustentabilidade ecológica e promover o intercâmbio aberto e aplicação ampla do conhecimento adquirido.
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III. JUSTIÇA SOCIAL E ECONÔMICA9. Erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental.10. Garantir que as atividades e instituições econômicas em todos os níveis promovam o desenvolvimento humano de forma eqüitativa e sustentável.11. Afirmar a igualdade e a eqüidade dos gêneros como pré-requisitos para o desenvolvimento sustentável e assegurar o acesso universal à educação, assistência de saúde e às oportunidades econômicas.12. Defender, sem discriminação, os direitos de todas as pessoas a um ambiente natural e social capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e o bem-estar espiritual, com especial atenção aos direitos dos povos indígenas e minorias.
IV. DEMOCRACIA, NÃO-VIOLÊNCIA E PAZ13. Fortalecer as instituições democráticas em todos os níveis e prover transparência e responsabilização no exercício do governo, participação inclusiva na tomada de decisões e acesso à justiça.14. Integrar, na educação formal e na aprendizagem ao longo da vida, os conhecimentos, valores e habilidades necessárias para um modo de vida sustentável.15. Tratar todos os seres vivos com respeito e consideração.16. Promover uma cultura de tolerância, não violência e paz.
A leitura e reflexão da Carta da Terra nos recorda a situação crítica de nossa casa
comum, o planeta terra, que não mais suporta a lógica exploratória a que foi submetida
nos últimos séculos; chama-nos à responsabilidade da decisão e da mudança de
comportamento, fazendo-nos vislumbrar um caminho viável demarcado pelos princípios
anunciados.
Deste modo, espera-se que as considerações sobre democracia, Direitos Humanos
e meio ambiente aprofundem a concepção do ser humano como um ser racional, ético,
histórico, social, político e cultural, bem como a compreensão de que a realidade nos
convoca a todos e a cada um para adotar e promover os valores e princípios contemplados
pela Carta da Terra em vista da construção de uma sociedade reconciliada com o meio
ambiente, com a justiça e a paz.
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Resumo da unidade Esta unidade continuou o estudo iniciado na unidade anterior, onde se contemplou
especialmente a dimensão ética do ser humano que se desdobra ou se realiza na sua
vida política como membro de uma sociedade.
Contemplaram-se no módulo 13 as teorias políticas da Antiguidade e Idade Média,
onde se viu o quanto pensadores como Platão, Aristóteles, Sêneca e Cícero contribuíram
para a compreensão da dimensão política da vida humana, e onde se discutiu a concepção
cristão medieval do poder, com destaque para as querelas entre o poder espiritual e o
temporal.
No módulo 14, foram vistas as teorias políticas modernas a partir do revolucionário
pensamento de Maquiavel, focando-se especialmente a teoria liberal e sua concepção
do Estado Civil, bem como o significado de revolução.
No módulo 15, voltou-se o olhar para as teorias socialistas, destacando-se o
pensamento de Karl Marx, tão revolucionário quanto o de Maquiavel, no seu tempo;
buscando-se compreender a questão do totalitarismo e da democracia, concluindo-se ao
considerar criticamente a experiência brasileira de democracia.
Por fim, no módulo 16, sob o título “Democracia, Direitos Humanos e meio
ambiente”, a partir da concepção de democracia como forma de vida social baseada
na criação e efetivação de direitos, buscou-se pensar o conceito de Direitos Humanos,
ressaltando-se a importância da educação em Direitos Humanos e fazendo-se um
balanço sobre os avanços havidos no Brasil nas últimas décadas, considerando-se a
efetivação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM. Ademais, pensou-se
sobre a questão ambiental, procurando evidenciar sua direta conexão com a democracia,
vez que o direito a um meio ambiente equilibrado é um direito fundamental que assiste
a todas as pessoas do presente e do futuro, gerando em contrapartida o dever de todos
em preservar os recursos ambientais e promover a vida no planeta, a partir de onde se
vive.
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