Post on 09-Jan-2017
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAO E ARTES
ANDR LOPES MARTINS
A guitarra eltrica na msica experimental:
composio, improvisao e novas tecnologias
So Paulo
2015
ANDR LOPES MARTINS
A guitarra eltrica na msica experimental:
composio, improvisao e novas tecnologias
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Msica da Escola de
Comunicao e Artes da Universidade de
So Paulo, como exigncia parcial para
obteno do ttulo de Mestre em Msica.
rea de Concentrao: Processos de
Criao Musical.
Orientador: Prof. Dr. Rogrio Luiz Moraes
Costa.
Verso corrigida.
Verso original se encontra disponvel tanto na Biblioteca da ECA/USP quanto
na Biblioteca Digital de Teses e Dissertaes da USP (BDTD).
So Paulo
2015
Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Nome: MARTINS, Andr Lopes
Ttulo: A guitarra eltrica na msica experimental: composio, improvisao e
novas tecnologias
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Msica da Escola de
Comunicao e Artes da Universidade de So
Paulo, como exigncia parcial para obteno
do ttulo de Mestre em Msica.
Aprovado em: 02 de setembro de 2015.
Banca Examinadora
Prof. Dr. Fernando Henrique de Oliveira Iazzetta Instituio: USP
Julgamento: Aprovado Assinatura: _________________
Prof. Dr. Vitor Kisil Miskalo Instituio: UAM
Julgamento: Aprovado Assinatura: _________________
Prof. Dr. Rogrio Luiz Moraes Costa Instituio: USP
Julgamento: Aprovado Assinatura: _________________
Dedicado a Pedro Martins, que passou longe das palavras impressas mas escreveu todas as que
possam existir no corao.
AGRADECIMENTOS
A meus pais Edgard e Ivone, que, desde sempre, me incentivaram a caminhar meu prprio
caminho, no s na msica, mas na vida.
A meu irmo Dalton, que, por j ter passado por estas etapas acadmicas e saber como so suas
aladas, procurou ler este trabalho e fazer algumas observaes.
Ana Paula, por ser to especial em minha vida. E que carinhosamente cedeu de seu tempo
precioso para ler, opinar e revisar todo o trabalho, por vrias vezes.
A Rogrio Costa, pela orientao e pela oportunidade de trilhar esta primeira etapa da pesquisa
acadmica, me acolhendo com disponibilidade em compartilhar seu imenso conhecimento
musical e terico e pela sua pacincia igualmente imensa em ler e reler tudo, sempre. Suas
observaes, revises, sugestes e alteraes no trabalho foram, concomitantemente, muito
preciosas.
A Fernando Iazzetta, por todo o conhecimento compartilhado e a iniciativa do NuSOM, que
possibilita a mim e tantos outros colegas de pesquisa uma vivncia musical, terica, reflexiva
e interativa inigualvel.
Aos meus amigos de jornada na USP, na ECA, no departamento de Msica e no NuSOM:
Vitor Kisil, Missionrio Z, Kooi Kawazoe, Andr Bandeira, Denise Ogata, Manu Falleiros,
Mrio del Nunzio, Carlos Avezum, Lilian Campesato, Jonathas Andrade, Fabio Martinelli,
Antnio Goulart, Pedro Paulo Kohler, Marcelo Queiroz, Thilo Koch, Miguel D. Antar, Felipe
Merker e tantos outros que me acompanharam em ensaios, concertos, grupos de estudo,
seminrios e disciplinas durante o mestrado.
A David Borgo (UCSD) pelo apoio e incentivo antes e durante o perodo da pesquisa.
A meus alunos particulares, que continuaram acreditando em mim e me acompanharam nesta
etapa.
A Magno Caliman, Alexandre Porres, Paulo Dantas, Taku Sugimoto e outros compositores
que me responderam prontamente e com pacincia tantas indagaes sobre suas peas e
trabalhos.
FAPESP, pelo apoio e suporte atravs da bolsa concedida, fundamental ao desenvolvimento
da pesquisa.
Be not afeard
This isle is full of noises.
William Shakeaspeare (Tempest).
Un pome nest jamais fini, seulement abandonn.
Paul Valery, 1965
All the utopias of the nineteenth and twentieth centuries have, by realizing themselves, expelled the
reality out of reality and left us in a hyper-reality devoid of sense, since all final perspective has been
absorbed, leaving as a residue only a surface without depth. Could it be that technology is the only
force today that connects the sparse fragments of the real? But what has become of the constellation
of sense? And what about the constellation of the secret?
Jean Baudrillard, 1997
RESUMO
MARTINS, A. L. A guitarra eltrica na msica experimental:
composio, improvisao e novas tecnologias. 2015.
300 f. Dissertao (Mestrado em Msica) Escola de Comunicao e Artes,
Universidade de So Paulo, So Paulo, 2015.
O presente trabalho tem a inteno de, primeiramente, estudar a guitarra eltrica como
interface de composio e improvisao atravs da utilizao de novas tecnologias digitais na
msica experimental; em um segundo momento, prope uma composio musical utilizando
alguns aparatos tecnolgicos acoplados guitarra. Essas ferramentas foram escolhidas aps
um extensivo mapeamento individual e atravs de experimentaes de suas potencialidades
do processamento sonoro quando abordadas com o instrumento. O material composicional foi
posteriormente construdo a partir de observaes e reflexes do autor sobre o uso do
instrumento enquanto interface no dilogo com as novas tecnologias digitais presentes na
computao mvel. O trabalho traz tambm o registro autoetnogrfico do perodo de pesquisa
de algumas das ferramentas digitais selecionadas quando em uso com a guitarra eltrica e o
processo de composio e registro da pea proposta, alm de sua posterior anlise. Em sua
concluso, so apresentadas, portanto, as observaes e reflexes desta interao do
instrumento e suas novas formas de instrumenticidade quando acoplado ao computador.
Palavras-chave: Guitarra eltrica. Msica experimental. Composio musical. Improvisao.
Novas tecnologias.
ABSTRACT
MARTINS, A. L. The electric guitar on experimental music: composition,
improvisation and new technologies. 2015. 300 f. Dissertao (Mestrado em
Msica) Escola de Comunicao e Artes, Universidade de So Paulo, So
Paulo, 2015.
This work intends to, first, study the electric guitar as composition and improvisation interface
through the use of new technology in experimental music; in a second moment, proposes a
composition using some technological devices attached to the electric guitar. These tools were
chosen after an extensive mapping individual trial and through its sound processing
capabilities when addressed with the instrument. The compositional material was
subsequently constructed from observations and author's reflections on the use of the
instrument as an interface in dialogue with the new technologies available in mobile
computing. The work also brings an auto-ethnography record of the research period of a few
digital tools selected when in use with the electric guitar and the writing process and recording
of the piece proposed, and its subsequent analysis. In its conclusion, therefore presents the
observations and reflections from this interaction of the instrument and its new forms of
instrumentness when attached to the computer.
Keywords: Electric guitar. Experimental music. Composition. Improvisation. New
technologies.
A guitarra eltrica na msica experimental:
composio, improvisao e novas tecnologias
Aluno: Andr Lopes Martins
Orientador: Prof. Dr. Rogrio Luiz Moraes Costa
Ps-Graduao em Msica, Processos de Criao Musical
Escola de Comunicao e Artes
Universidade de So Paulo
Setembro, 2015
Sumrio
1 Introduo ................................................................................................ 17
1.1 Metodologia ................................................................................................ 27
2. A guitarra, sua natureza eltrica e a tecnologia musical ...................... 31
2.1 Breve descrio histrica ............................................................................ 36
2.1.1 Estgio #1: origem .............................................................. 38
2.1.2 Estgio #2: Feedback e a guitarra de corpo slido ............ 40
2.1.3 Estgio #3: distoro, fuzz e efeitos sonoros ....................... 41
2.1.4 Estgio #4: softwares e aplicativos ..................................... 42
2.2 Ambiguidades, fetiches e tecnologia .......................................................... 44
2.3 Amplificao do instrumento ...................................................................... 48
2.3.1 Diferenas entre amplificadores valvulados
e transistorizados ............................................................................. 49
a. Amplificadores Valvulados
b. Amplificadores Transistorizados
c. Amplificadores Hbridos
2.3.2 - Caractersticas da vlvula utilizada
em amplificadores de guitarra ......................................................... 52
a. Vlvulas de pr-amplificador
b. Vlvulas de potncia
2.3.3 - Classificao dos amplificadores ......................................... 53
a. Classe A
b. Classe B
c. Classe AB
d. Outras classes
2.4 O registro sonoro da guitarra eltrica sem o uso de aparatos das novas
tecnologias digitais ................................................................... 54
2.5 Sobre a sonoridade .................................................................... 56
2.6 Tecnologia musical ................................................................... 62
3. Ambiente de Experimentao .................................................................. 75
3.1 Msica experimental ........................................................... 75
3.2 Improvisao ....................................................................... 83
3.2.1 Improvisao Idiomtica ............................................ 84
3.2.2 Improvisao Livre .................................................... 87
3.3 Guitarra eltrica e experimentao ..................................... 93
3.4 Exemplos de um repertrio experimental
para guitarra eltrica ....................................................................... 95
3.5 Breve relato de casos ........................................................... 106
4. Composio: ambiente de criao ........................................................... 127
4.1 Plano da composio ........................................................... 127
4.2 Roteiro de partitura .............................................................. 129
4.2.1 Partitura verbal ........................................................ 131
4.3 Peas de referncia .............................................................. 136
4.3.1 David Tudor Phonemes ....................................... 136
4.3.2 Edgard Varse Hyperprysm ................................. 140
4.3.3 Edgard Varse Pome lectronique..................... 143
4.3.4 Gyrgy Ligeti Artikulation .................................. 146
4.4 Anlise de Cinq ................................................................... 148
4.4.1 Composio e notao ............................................. 149
4.4.2 A gravao ............................................................... 152
4.4.3 Anlise da composio registrada ........................... 155
4.5 Espectromorfologia ............................................................. 160
5 Autoetnografia .......................................................................................... 177
5.1 Dirio de bordo .................................................................. 179
5.1.1 ltima semana de 2014 ........................................... 179
5.1.2 Dias 2 a 5 de outubro de 2014 ................................. 179
5.1.3 Segunda semana de outubro de 2014 ...................... 180
5.1.4 Dia 1 de novembro de 2014 .................................... 181
5.1.5 Dias 3, 4 e 6 de novembro de 2014 ........................ 182
5.1.6 Dia 2 de dezembro de 2014 .................................... 184
5.1.7 Dias 8, 9, 11 e 12 de dezembro de 2014 ................. 185
5.1.8 Dia 15 de dezembro de 2014 .................................. 185
5.1.9 Dia 16 de dezembro de 2014 ................................... 186
5.1.10 Dia 17 de dezembro de 2014 ................................... 187
5.1.11 Dia 19 de dezembro de 2014 ................................... 188
5.2 Concluindo a gravao ....................................................... 189
5.3 Alguns aparatos analisados individualmente ...................... 190
6 Concluso ...................................................................................................204
7 Referncias bibliogrficas ........................................................................ 214
ANEXOS
Anexo 1: Mapeamento .................................................................................... 233
Anexo 2: DVD ................................................................................................ 297
Lista de faixas do DVD ................................................................... 298
Lista de Figuras:
Figura 1: imagem analogia onda sonora digitalizada e espectrograma______________________ p.108
Figura 2: espectrograma - Shenandoah, Bill Frisell__________________________________ p.109
Figura 3: duas partituras - Graphitti Composition, Christian Marclay____________________ p.110
Figura 4: espectrograma - Graphitti Composition part I, C. Marclay/V. Reid ____________ p.111
Figura 5: espectrograma - Strange Blesings, Vernon Reid_____________________________ p.112
Figura 6: espectrograma - Mirrors (Opposite), Taku Sugimoto_________________________ p.113
Figura 7: espectrograma - Variations of Wave Pressure, Adrian Belew__________________ p.114
Figura 8: espectrograma - Requim-Affirming, Robert Fripp__________________________ p.116
Figura 9: espectrograma - On Acceptance & Ont the Approach of Doubt, Robert Fripp_____ p.117
Figura 10: espectrograma - Only Sky, Davied Torn__________________________________ p.118
Figura 11: partitura - Having Never Written a Note for Percussion, J. Tenney/ Sonic Youth___ p.119
Figura 12: espectrograma Having Never Written a Note for Percussion, Sonic Youth______ p.119
Figura 13: espectrograma - Duna, Camel Heads____________________________________ p.120
Figura 14: espectrograma - Theres Something Dead in Here, Steve Vai__________________ p.121
Figura 15: espectrograma - Churblys, Alexandre Porres______________________________ p.123
Figura 16: espectrograma - mono.4, Paulo Dantas___________________________________ p.124
Figura 17: partitura melodia instrumento #3 de Cinq _______________________________ p.134
Figura 18: partituras (a) Dialects; (b) Bandoneon, David Tudor_____________________ p.138
Figura 19: espectrograma - Phonemes, David Tudor_________________________________ p.138
Figura 20: partitura trecho de Hyperprism, Edgard Varse___________________________ p.142
Figura 21: espectrograma - Hyperprism, Edgard Varse ______________________________ p.143
Figura 22: partitura trecho de Pome lectronique, Edgard Varse____________________ p.144
Figura 23: espectrograma Pome lectronique, Edgard Varse_______________________ p.145
Figura 24: partitura trecho de Artikulation, Gyrgy Ligeti____________________________ p.147
Figura 25: partitura trecho de Artikulation, Gyrgy Ligeti ___________________________ p.147
Figura 26: espectrograma Artikulation, Gyrgy Ligeti ______________________________ p.148
Figura 27: imagem captura de tela, software DAW da gravao de Cinq _______________ p.159
Figura 28: imagem captura de tela, software DAW, mixagem de Cinq __________________ p.160
Figura 29: imagem grfico: nota X rudo, Dennis Smalley______________________________ p.169
Figura 30: espectrograma Cinq ________________________________________________ p.171
Figura 31: visualizao ondas sonoras digitalizadas, estereo Cinq _____________________ p.172
Observao: a lista de figuras presentes no Anexos deste trabalho encontra-se separada, no
incio do mesmo, para facilitar a catalogao e sua visualizao para leitura e referncia.
Lista de Siglas:
ADAT Alesis digital audio tape
ADC Analog-to-Digital Converter
AES Audio Engineering Society
DAC Digital-to-Analog Converter
DAW Digital Audio Workstation
DI Direct-Box
DSP Digital Signal Processing
ECA Escola de Comunicao e Artes, Universidade de So Paulo
FFT Fast Fourie Transform
FM Frequncia Modulada
Hifi High Definition
IEEE - Institute of Electrical and Electronics Engineers
iOS sistema operacional da empresa Apple para aparelhos mveis
IRCAM Institut de Rcherche et Coordination Acoustique/Musique
LFO Low Frequency Oscillation
Low-Fi Low Definition
MAC OSX sistema operacional dos computadores Macintosh
MIDI Musical Instrument Digital Interface
NAMM National Association of Music Merchants
NuSOM Ncleo de Pesquisa em Sonologia, Universidade de So Paulo
Pd Pure Data
RTF - Radiodiffusion-Tlvision Franaise
SARC Sonic & Arts Research Centre, Universidade de Queens, Belsfast
WDR - Westdeutscher Rundfunk Kln
Wi-fi Wireless Fidelity
1. Introduo
17
Captulo 1
Introduo
...And what is the purpose of writing music? One is, of course, not dealing with
purposes but dealing with sounds.
John Cage, 1961
Electricity forces the performance to adapt.
Seth Kim-Cohen, 2009
Uma guitarra eltrica, sem nenhum cabo conectado, encontra-se solitariamente
encostada com seu corpo de madeira macia contra uma parede. Quando um garoto adentra ao
lugar, pega o instrumento com as duas mos e, segurando uma pequena palheta de celuloide
em uma delas, atinge suas cordas de ao, o que se ouve um som de pouqussimo volume,
quase inaudvel, sem sustentao; o som de diferentes tipos de madeiras cortadas em pedaos,
coladas, vibrando, ressoando. E nada mais.
***
Este trabalho tem o objetivo principal de apresentar uma composio ambientada na
msica experimental atravs da utilizao da guitarra eltrica como nico instrumento de
interpretao, em uso conjunto com alguns de seus aparatos digitais disponveis pelas novas
tecnologias encontradas na computao mvel. Isto inclui o uso de softwares e aplicativos em
diversos ambientes computacionais, escolhidos aps um extenso mapeamento individual
destes e atravs de experimentaes de suas potencialidades de expanso sonora. O material
composicional foi posteriormente construdo a partir das observaes e reflexes realizadas
durante este perodo de pesquisa, determinando sua seleo por caractersticas que incluram
potencialidades de expanso do som atravs do uso exclusivo da tecnologia digital,
manipulao do timbre em tempo real e capacidade de processamento digital.
um trabalho que se prope a pensar e utilizar a guitarra eltrica como instrumento
que tambm gerador de sonoridades pertinentes msica experimental. Este conceito ser
definido durante o texto, mostrando quais caractersticas experimentais - no que se refere ao
uso de novas tecnologias digitais - podem ser abarcadas pelo instrumento. Desenvolvida no
final da dcada de 40 do sculo passado e disponvel a partir do ano de 1950, a guitarra slida
e eletrificada divide historicamente particularidades intrnsecas com a msica experimental
18
desde de seu surgimento. Kim-Cohen (2009) mostra que, em 1948 - mesmo ano que Pierre
Schaeffer inicia em Paris os primeiros experimentos e tcnicas de colagens sonoras que viriam
a caracterizar a musique concrte e John Cage (des)constri alguns processos composicionais
atravs de peas importantes que resultariam na elaborao de sua primeira composio
silenciosa (433)1 - o cantor e guitarrista Muddy Waters realiza a primeira gravao em
estdio de uma guitarra prottipo eletrificada. Simultaneamente, Leo Fender realiza os ajustes
finais de sua futura Broadcaster, a primeira guitarra de corpo slido, totalmente eltrica, ainda
sob o nome de Esquire, que seria apresentada menos de dois anos depois. A gravao de I
Cant Be Satisfied, realizada por Muddy Waters em 1948, representa uma mudana de
paradigma no uso do instrumento: dentro de um estdio, um microfone individual no est
posicionado na direo da guitarra, captando o som acstico oriundo do instrumento, mas sim,
apontado para o centro de um amplificador, onde est localizado um alto-falante. As
consequncias atuais desta peculiar interseco, entre os anos de 1948-50, praticamente
simultnea, do nascimento da guitarra eltrica e o que viria a ser chamado de msica
experimental (o surgimento do musique concrte em Paris, da msica eletrnica em Colnia e
as novas formas vanguardistas de composio e improvisao nos Estados Unidos) podem
trazer mais do que uma curiosidade histrica, permitindo algumas reflexes tericas e prticas
importantes para o estgio atual que o instrumento vivencia, atravs de processos de
composio e improvisao, quando em contato com as novas tecnologias.
Como afirma Kim-Cohen (2009, p.24), o prprio Waters j havia registrado
anteriormente I Cant Be Satisfied, em 1941, atravs de um gravador simples, tocando uma
guitarra acstica e sem a presena de microfones especiais ou um ambiente acusticamente
preparado. O que faz a verso de 1948 diferente um fator tcnico: a eletricidade. Atravs do
uso de equipamentos eletrificados e a possibilidade da amplificao da guitarra, a performance
totalmente adaptada a estas novas caractersticas que moldam a sonoridade resultante final.
A presena do alto-falante e uma maior liberdade de controlar o volume captado atravs de um
microfone (apontado para seu cone central) trazem a possibilidade de sons e frequncias
1 433 foi apresentada formalmente em 1952, mas anos antes o compositor j experimentava em outros trabalhos dois procedimentos
importantes que viriam a caracterizar sua obra e uma grande parte da cena musical experimental de ento: o uso do silncio e as operaes de acaso. Avezum (2014, p.3) afirma que, entre 1948-50, Cage compe Sonatas and Interludes e String Quartet in Four Parts, que j trazem
os primeiros indcios de uma potica do silncio em sua tcnica composicional. Neste par de anos o compositor tambm finaliza Sixteen
Dances e Concert for Prepared Piano and Chamber Orchestra, que tambm incorporavam procedimentos de acaso em sua concepo e interpretao. 433 tornou-se uma pea icnica deste perodo da msica experimental, tal o grau de inquietao e inovao que se gerou em
torno dela, inclusive na forma como Cage a colocou em partitura. Ainda segundo Avezum (2014, p.6), tal forma de notao traria novas
consequncias para a arte experimental como, por exemplo, o enfraquecimento das fronteiras entre compositor e performer derivado da ambiguidade conceitual da partitura como notao verbal que ecoava certas atitudes reducionistas nas curtas instrues de performance.
19
gerados a partir da guitarra antes no caractersticos ao instrumento, atravs destas novas
ferramentas sonoras.
No nosso foco relacionar aqui teoricamente estes eventos como tampouco trazer
reflexes histricas deste perodo. No entanto, segundo Kim-Cohen (2009, p.260), Schaeffer,
Cage e Walters, cada um deles representam uma alternativa diferente sistematizao e
quantificao dos valores da msica2. Esta interseco entre o nascimento da guitarra eltrica,
o desenvolvimento da msica experimental e a quebra de paradigmas dos valores musicais
trazidos pelas possibilidades sonoras da conexo do instrumento com a tecnologia pode nos
colocar em um ponto de questionamento do uso do instrumento no que se refere ao processo
composicional na msica contempornea. Este tema ser abordado durante o trabalho sob o
vis das relaes que a guitarra pode ter com este ambiente experimental, atravs do uso de
ferramentas das novas tecnologias. Sua origem histrica e sua natureza eletroacstica
permitiram ao instrumento, desde seu nascimento, uma srie de possveis interlocues
experimentais, que algumas vezes podem ter sido acobertadas pela presena to proeminente
da guitarra na msica popular.
Sempre houve de minha parte - um fascnio pela tecnologia e, por ter escolhido
primariamente um instrumento que eletroacstico por natureza. Durante muitos anos busquei
uma forma de conectar musicalmente a organicidade interpretativa da guitarra (que similar
aos outros instrumentos de corda como o violino e o contrabaixo, por exemplo) com a
imensido de aparatos e ferramentas tecnolgicas, conexo esta que tentasse resultar em uma
sonoridade com caractersticas prprias, que soasse estendida e afastada de territrios j
estabelecidos. Passei por fases onde foi necessrio carregar e montar pesados equipamentos
para que houvesse a possibilidade de obter alguns timbres experimentais atravs da construo
de pedaleiras customizadas3, pedais em ligaes que utilizavam metros de cabos sonoros
conectados e rgidas interfaces. Os sistemas eram frgeis, de difcil locomoo e o custo, tanto
de compra como de manuteno, muito altos. Programar sons, timbres e patches4 era algo nada
intuitivo tambm, atravs de interfaces complexas e, muitas vezes, de demorada execuo.
2 Schaeffer, Cage and Waters each represent a different alternative to [...] the systematization and quantification of the values of music
(traduo nossa). 3 Customizao: ato de personalizao, adaptao. Neste caso, pedaleiras que foram montadas por e para mim, apresentando adequaes
individuais de escolha de efeitos, ligaes, posio dos pedais, etc., de acordo com necessidades especficas para obteno de sonoridades desejadas.
4 Patch: arquivos digitais que contm programaes realizadas e armazenadas pelo usurio para uso posterior, presentes em diversos softwares de processamento sonoro e tambm em hardwares como pedaleiras ou processadores em formato de racks.
20
Na ltima dcada ocorreu um desenvolvimento tecnolgico sem precedentes, atravs
de ferramentas computacionais interativas, reinventando o processo de construo sonora para
a guitarra eltrica. Afinal, a rapidez de conexo e interatividade entre o msico e o som
produzido em seu instrumento, quando em ambiente digital, passaram a acontecer em tempo
real, tornando possvel realizar uma srie de processos nicos que, absolutamente, no existiam
anteriormente. A msica pode ser considerada, desde suas origens, uma forma de arte
interativa, porm, as transformaes ocasionadas em funo destas novas tecnologias no que
se refere a este convvio mtuo entre o instrumentista e sua interface musical so exponenciais
em vrios aspectos. Junto a estes importantes fatores de inovao, a atual tecnologia digital
presente em computadores com sistemas como o Linux, Mac OSX, Windows e o iOS5, entre
outros, traz ao instrumentista possibilidades experimentais de manipulao sonora para
improvisao e composio a um custo muito menor do que era h poucos anos, alm de
proporcionar uma mobilidade extrema do equipamento de produo sonora, tornando possvel
realizar uma investigao analtica da relao destas transformaes com o instrumento.
A construo desta pesquisa, de sua composio musical proposta e a escrita final da
dissertao abarcam reflexes e questionamentos entre este relacionamento da guitarra eltrica
e suas novas - ferramentas de produo sonora, presentes na tecnologia digital
contempornea. Estas reflexes envolvem tambm o uso de processos composicionais e da
improvisao com o instrumento na chamada msica experimental. Como afirma Miskalo
(2009, p.1), a atividade composicional no uma cincia exata e envolve uma srie de
questes subjetivas, em que a formao profissional e pessoal do compositor so determinantes
para a obra que produz. Procuro aqui, portanto, uma forma de pensar e dimensionar
epistemologicamente a relao do instrumento no universo musical contemporneo, universo
este que, como afirma Costa (2003, p.12), apresenta esta vocao experimental, atravs de uma
composio alimentada por uma busca pessoal de sonoridades que ecoam esta vocao e que
se alimenta tambm da improvisao, utilizando exclusivamente a tecnologia disponvel em
aparatos digitais em sua construo sonora.
Este trabalho dividido, portanto, em trs partes. A primeira delas a dissertao
escrita, que traz uma exposio de elementos primordiais envolvidos na pesquisa, um
posicionamento histrico da guitarra eltrica, o desenvolvimento da tecnologia sob o vis da
produo sonora, uma reflexo sobre a possibilidade de definir o que msica experimental,
5 Linux um sistema operacional escrito em cdigo aberto e livre, desenvolvido originalmente pelo finlands Linus Torvalds, em 1991, e
atualmente disponvel em diferentes edies operacionais. Mac OSX e iOS so sistemas operacionais proprietrios dos computadores e aparelhos mveis da empresa Apple.
21
suas delimitaes no que tange este trabalho e seus ambientes de experimentao atravs do
instrumento, alocando um repertrio pertinente ao tema proposto. A dissertao tambm traz
elementos determinantes do processo composicional da pea proposta, seus procedimentos,
reflexes sobre os roteiros e sua partitura, o uso da improvisao, referncias e anlise, alm
de um relato em formato autoetnogrfico do perodo que engloba a pesquisa de criao e
manipulao sonora do instrumento e algumas ferramentas disponveis das novas tecnologias
digitais. A segunda parte a prpria composio proposta e alimentada pela pesquisa, que
traduz muitas das reflexes e paradigmas em sons, criados para tal propsito. O processo de
composio se desloca da reflexo terica para uma construo destas sonoridades atravs do
uso de ferramentas digitais, aps um perodo de escuta atenta de quatro peas contemporneas
que formaram uma linha referencial para a composio proposta, conforme descrito no captulo
4. Finalmente, a terceira parte deste trabalho representada pelo mapeamento realizado
durante o primeiro ano do mestrado, que inclui dezenas de softwares, aplicativos e hardwares
disponveis (e pertinentes) pensados aqui como ferramentas sonoras.
Se a terceira parte deste trabalho pode apresentar um carter de particularidade
perecvel, onde - em alguns anos - muitos dos aplicativos e softwares presentes no mapeamento
sero reescritos, recodificados, enquanto que outros tantos podem ser extintos e ainda muitos
surgiro, isso no atinge as duas primeiras partes da pesquisa. Tanto as reflexes propostas
durante este perodo de estudo quanto a prpria composio realizada denotam paradigmas
persistentes no campo das artes que se iniciaram por volta da segunda metade do sculo XX e,
possivelmente, estaro presentes em pocas vindouras. Abarcar possibilidades e interferncias
tecnolgicas no fazer musical pode levantar questionamentos importantes e cruciais,
independentemente da poca em questo. Os domnios especficos que a tecnologia traz
consigo mesma acabam sempre derrubados e dilatados em outras esferas, culturais e sociais.
Flusser (2007, p.37) mostra que, no momento em que a ferramenta entra em jogo, possvel
falar de uma nova forma de existncia humana. Esta ferramenta, enquanto um artefato
originalmente produzido para dar forma matria e ter uma (ou algumas) funes, se modela
ao longo de seu tempo de uso e transforma a sociedade e seu modo de produzir. Esta
ferramenta, que inclui exemplos como um machado de pedra pr-histrico, a lamparina a leo,
o tear eletromecnico, o motor a vapor, o telefone analgico, o computador pessoal ou um
smartphone6 de ltima gerao, entre tantos outros, traz consigo estgios de diferentes
6 Telefones inteligentes, em traduo livre. De acordo com o Manual de Comunicao da Secom, atravs do planejamento estratgico 2010-2018 de comunicao social do governo federal, a palavra smartphone um estrangeirismo j absorvido pela lngua e que, portanto, no
precisa estar em itlico. Doravante, utilizo a grafia da palavra desta forma. O mesmo ocorre com as palavras tablet e notebook, quando
22
evolues que se traduzem no somente em uma nova experincia de uso, mas, como Flusser
teoriza, em nova condio de existncia humana e seu relacionamento com o que vem da
natureza mecnica, eltrica e digital, a partir de um estgio maquinal.
Esta relao homem-ferramenta-tecnologia se faz presente nesta mquina que
chamamos j h algum tempo de computador. Para Iazzetta (1996, p.11),
O computador um sistema geral de processamento de smbolos que podem
representar qualquer outro tipo de signo: som, imagens, movimentos, mas tambm
palavras, ideias, processos. Essa mquina peculiar possui uma caracterstica que a
distingue da maioria das outras ferramentas criadas pelo homem: o computador,
apesar de sua grande utilidade, no possui uma funo a priori.
Uma vez inserida para dentro do computador, digitalizada, qualquer tipo de informao
passa a ter a possibilidade de tornar-se um novo tipo de ferramenta. Importante lembrar aqui
que, para esta pesquisa, por computador entende-se diferentes ferramentas digitais como
pedaleiras, tablets, smartphones, notebooks, computadores pessoais, controladores externos de
eventos digitais, entre outras variaes de hardwares que possam trabalhar e se alimentar de
informao digital.
Para no fugir do escopo deste trabalho, e tambm para manter a objetividade
pertinente a uma pesquisa acadmica, este texto no se aprofunda em questes semiticas ou
antropolgicas que podem permear o uso da tecnologia como ferramenta musical. Procuro
restringir o foco do trabalho no processo de composio e improvisao com a guitarra e as
novas tecnologias mveis, apresentando uma pea como um resultado artstico da pesquisa. A
magnitude da abrangncia de temas que envolvem esta pesquisa torna difcil, se no
impossvel, abraar todas suas vertentes tericas e propor reflexes condizentes; desta forma,
me propus a estudar o assunto abordado aqui trazendo apenas elementos que se referiam ao
tema proposto. Apesar do uso deste recorte ser uma caracterstica de todo trabalho dissertativo
no mbito da ps-graduao, seja ele de qual rea de atuao for, penso ter equilibrado este
fato com uma composio musical realizada integralmente durante o perodo da pesquisa e
atrelada ao escopo terico da mesma. Talvez em um futuro projeto de pesquisa seja possvel
alargar estes questionamentos e reflexes em outras e mais amplas - direes.
grafadas nesta dissertao. Ver: http://www12.senado.gov.br/manualdecomunicacao/redacao-e-estilo/estilo/estrangeirismos-grafados-sem-
italico - acesso em 15/5/2015.
http://www12.senado.gov.br/manualdecomunicacao/redacao-e-estilo/estilo/estrangeirismos-grafados-sem-italicohttp://www12.senado.gov.br/manualdecomunicacao/redacao-e-estilo/estilo/estrangeirismos-grafados-sem-italico
23
Vamos, portanto, uma sntese deste trabalho e suas divises organizacionais. Nesta
introduo, denominada Captulo 1, apresento um breve prefcio dos propsitos da pesquisa e
os interesses envolvidos no tema, mostrando as definies iniciais sobre o que foi proposto a
ser investigado e realizado durante o perodo de mestrado e procurando deixar o mais claro
possvel suas delimitaes tericas, alm de um resumo de todos os captulos que compem a
dissertao.
No Captulo 2, contextualizo a guitarra e sua natureza eltrica, abordando sua histria
desde a origem, o lugar do instrumento como um dos principais da msica popular do sculo
XX, e tambm procuro caracterizar o instrumento como capaz tambm de ser gerador de
sonoridades experimentais, atravs do uso das novas tecnologias. neste captulo que tambm
ressalto a importncia de especificar o uso reducionista do instrumento atravs de ferramentas
tecnolgicas contemporneas, como softwares ou aplicativos mveis, muitas vezes
posicionando a guitarra eltrica em uma situao de simulao sonora7. A partir deste
momento, estabeleo uma tentativa de construir uma reflexo terica sobre o uso da guitarra
eltrica e possveis formas de produo sonora atravs das tecnologias digitais relacionadas
com a pesquisa. Durante este captulo, constru uma proposta de diviso de estgios evolutivos
do instrumento, sendo:
a.) Estgio #1: origem
b.) Estgio #2: feedback e o surgimento da guitarra de corpo slido
c.) Estgio #3: distoro, fuzz e efeitos sonoros
d.) Estgio #4: momento atual; softwares e aplicativos mveis
Este captulo aborda tambm as caractersticas e evoluo da amplificao do
instrumento (vlvula e transistor), parte intrnseca manufatura do timbre da guitarra eltrica,
procurando fundamentar tais conceitos em relao ao timbre final produzido com o
instrumento atravs do alto-falante, elemento vital para a msica eletroacstica. O fechamento
do captulo se d com uma reflexo terica sobre a forma de se construir o timbre da guitarra
eltrica antes do uso de aparatos tecnolgicos e eletrnicos e suas expanses sonoras, abrindo
7 De acordo com o dicionrio Houaiss: Simulao: fazer parecer real (o que no ); fingir, aparentar; disfarce, cpia, tentativa de reproduzir algo fielmente, representar com semelhana. Atravs da pesquisa, o texto final da dissertao deixa claro e bem enfatizado este lado
reducionista e de certa forma, fetichizado - que a guitarra eltrica possui, atravs do uso das novas tecnologias para simular amplificadores
antigos, efeitos vintage, instrumentos clssicos de cordas, etc. Algo similar ocorreu durante as dcadas de 70 e 80 do sculo XX, em sintetizadores e teclados que procuravam simular fidedignamente diferentes instrumentos como pianos, contrabaixos, saxofones, marimbas e
percusso, dentre muitos outros, deixando o potencial tecnolgico de sntese sonora para a criao de sonoridades originais em segundo plano.
24
as portas paras as reflexes seguintes sobre os ambientes de criao e experimentao sonoras
com o instrumento e sua interao com as novas tecnologias digitais.
No Captulo 3, trato do ambiente de experimentao, questionando em qual
direo/aplicao pretendo expandir sonoramente a guitarra eltrica atravs de uma
composio proposta que abarca o uso exclusivo do instrumento e alguns softwares, aplicativos
e interfaces digitais. Abordo os critrios que definem o que msica experimental e quais sero
suas limitaes tericas em relao ao uso classificatrio do termo no presente trabalho,
construindo uma fundamentao terica deste conceito a partir de artigos, obras, teses e
dissertaes apontadas nas referncias bibliogrficas, alm de trazer uma tentativa de
convergncia entre a pesquisa acadmica e a criao artstica. Com isso, almejo um maior
embasamento referencial do pensamento experimental que acontece com o acoplamento da
guitarra a alguns aparatos tecnolgicos escolhidos aps o mapeamento realizado durante o
primeiro ano da pesquisa, referenciado e anexado de forma complementar a este texto.
Um aspecto importante deste captulo o momento em que procuro contextualizar o
experimento tecnolgico com a guitarra eltrica e os aparatos tecnolgicos selecionados,
eliminando da pesquisa o uso de expanses fsicas e extenses por objetos, que no so, a
priori, o foco da dissertao e da composio proposta. Portanto, experimentaes sonoras com
o instrumento atravs da extenso fsica com alterao no corpo do instrumento, como:
mudana de tipo de captadores, insero de materiais entre as cordas e a escala do instrumento,
afinaes exticas, uso de escalas e modos exticos, uso de artefatos no comuns para
produo de som no instrumento como pedaos de madeiras, pedaos de ferro ou metais,
panos, escovas, etc., no sero o foco de anlises e reflexes deste trabalho.
Parte intrnseca deste captulo, vital para o trabalho como um todo, o momento em
que abordo o conceito e uso da improvisao (livre e idiomtica) durante a pesquisa sonora e
o processo de composio. Finalizando o captulo, procuro realocar a guitarra para este
ambiente de experimentao, relacionando-a com um repertrio j existente. Exemplos de um
repertrio experimental para guitarra eltrica incluem compositores e instrumentistas de
diferentes pases e culturas, como: Keith Rowe, Otomo Yoshihide, David Torn, Taku
Sugimoto, Bill Frisell, Vernon Reid (com composies de Christian Marclay), Mario Del
Nunzio, Adrian Belew, Paulo Dantas, Magno Caliman, Alexandre Porres, Michal Dymny,
Filippo Giuffr, Pat Metheny, Anders Lindsj, Robert Fripp, Sonic Youth (interpretando uma
composio de James Tenney), Stefano Pilia, Yannis Fried, Camel Heads, Steve Vai, entre
alguns outros. Comento tambm a presena e uso do instrumento em duas composies de
Karlheinz Stockhausen.
25
O Captulo 4 dedicado inteiramente pea proposta e sua fundamentao terica,
apresentando os procedimentos adotados no processo de composio e tambm no uso da
improvisao durante o perodo de pesquisa. Uma observao importante ao longo deste
captulo o fato de a pea proposta ter um carter e natureza eletroacstica e ter sido composta
e registrada integralmente atravs de um instrumento musical, a guitarra eltrica, oferecendo
novas espcies de instrumenticidade em suas relaes com o computador. Este captulo
tambm apresenta as quatro peas que foram a referncia esttica e sonora para a composio
realizada: Phonemes, de David Tudor, Hyperprism e Pome lectronique, de Edgard Varse,
e Artikulation, de Gyrgy Ligeti. As peas foram analisadas com uso de espectrogramas, e
tambm foram esclarecidos os motivos pelos quais foram escolhidas para serem utilizadas
como referncias neste trabalho. Apresento os motivos pelos quais optei por um roteiro da
partitura verbal tanto quanto por uma partitura de registro da gravao da pea. Finalmente,
este captulo encerra-se com uma anlise musical da pea musical proposta por esta pesquisa,
chamada de Cinq, pea criada e registrada utilizando-se somente uma guitarra eltrica e
algumas ferramentas computacionais selecionadas. Atravs de uma fundamentao terica que
procura abarcar conceitos diversos tais como a relao entre o compositor, intrprete, partitura
e performance, procuro expor alguns dos resultados obtidos sob a tica das caractersticas da
sonoridade cristalizada de Varse. Esta anlise da pea abarca o uso de aspectos
espectromorfolgicos e suas variantes explicados neste mesmo captulo - para descrever o
material sonoro composto, entre outras reflexes.
Apresento no captulo seguinte um dos momentos mais importantes do perodo da
pesquisa: uma espcie de dirio de bordo das experimentaes sonoras realizadas utilizando o
instrumento acoplado s novas tecnologias, das maneiras como se conectam, interagem e
alimentam-se uns aos outros. Aqui, portanto, fao a proposta de uma leitura mais ntima dos
momentos que confeccionaram algumas das sonoridades de Cinq em um formato
autoetnogrfico, alimentado pela escuta e anlise de instrumentistas, peas e referncias citadas
ao longo deste trabalho, alm da explorao sonora de alguns dos softwares, hardwares e
aplicativos escolhidos aps o mapeamento. Este momento foi importante por ter criado a
possibilidade de alimentar um reservatrio de ideias sonoras, onde algumas foram escritas
previamente, pensando em processos sonoros especficos, como por exemplo o uso de eco
atravs de sntese granular ou um filtro de modulao com diferentes osciladores, e
posteriormente concebidas atravs de ferramentas digitais, enquanto que outras surgiram
buriladas em pleno trajeto investigativo, descobertas que aconteciam quando em conexes
sonoras imprevistas e articuladas no momento de tocar o instrumento juntamente com algum
26
aparato especfico. Esta mo dupla de criao sonora aconteceu durante todo o percurso da
pesquisa: ideias do primeiro tipo nasceram atravs de minha vontade de cri-las, partindo
inicialmente de esboos rabiscados (muitas vezes com caneta e papel, ligando objetos que
correspondiam aos efeitos ou procedimentos e/ou desenhando o caminho sonoro oriundo da
guitarra atravs dos estgios) e resultando, aps um trabalho de programao digital, ao som
almejado. J as ideias do segundo tipo nasceram quase que ao acaso, em um ambiente de
explorao de potencialidades sonoras destas ferramentas disponveis e que, quando
descobertas, foram ento submetidas uma compreenso de sua formao e capacidade. Estas
formas de controle e intencionalidade se relacionam em tempos que se alternaram durante o
processo composicional: o tempo diferido, da composio planificada e o seu oposto, que traz
a oportunidade da incorporao do acaso, do no-controle, que se deu atravs do tempo real,
o da improvisao8. Ambos os casos representam este perodo autoetnogrfico e se relacionam
com o uso experimental do som, sob o escopo deste trabalho, durante a criao e o resgistro da
pea proposta.
Por fim, no ltimo captulo, Concluso, descrevo de maneira breve todo o processo
terico e prtico realizado durante a pesquisa, dos procedimentos utilizados e sobre a
composio feita, relembrando suas delimitaes definidas no captulo 3 no que se refere
msica experimental. Construo tambm uma reflexo final no que se refere inteno
originalmente proposta de se almejar um resultado artstico com este mestrado, atravs da
composio de uma pea utilizando unicamente a guitarra eltrica e alguns aparatos
tecnolgicos contemporneos. Este momento tambm permitiu um aprofundamento reflexivo
sobre os resultados da pesquisa, do trabalho composicional e das conexes entre estas duas
dimenses (terica e prtica), possibilitando, portanto, alguns desdobramentos a serem
realizados em um futuro projeto de pesquisa.
O trabalho ainda apresenta, em anexo, o mapeamento realizado de mais de 50 aparatos,
entre softwares, aplicativos, hardwares e interfaces, alm do DVD contendo a composio
proposta, peas referenciais e alguns exemplos e experincias sonoras registradas e descritas
durante o momento autoetnogrfico.
Uma nota importante: aps pesquisa na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e
Dissertaes9, foram encontrados cerca de 23 trabalhos que retratam genericamente o campo
8 Para Costa (2013, p.35), percebe-se que o agenciamento da improvisao diferente do agenciamento da composio uma vez que estas
duas formas de pensamento e ao musical estabelecem relaes diferentes com as linhas do tempo. Na improvisao, que se d em tempo
real, o tempo e o espao se incorporam enquanto elementos fundamentais do ambiente e condicionam totalmente a performance. 9 Disponvel em http://bdtd.ibict.br/ - acesso mais recente em 25/2/2015.
http://bdtd.ibict.br/
27
de pesquisa com o assunto preenchido unicamente com a palavra guitarra e apenas 7 trabalhos
encontrados quando realizado com as palavras guitarra e eltrica. Ao pesquisar os termos
guitarra e tecnologia conjuntamente, aparece apenas um nico trabalho cientfico como
resultado. Estas pesquisas, em sua maioria, so teses e dissertaes com anlises e pesquisas
de estilo, interpretao e harmonia, sendo que apenas dois trabalhos apresentam enfoque na
expressividade da tecnologia, um em carter interpretativo na msica pop e o segundo, uma
anlise na rea de engenharia sobre a distoro musical do instrumento. Porm, no h
nenhuma tese ou dissertao na Biblioteca Digital Brasileira atualmente que mapeie e elabore
uma pesquisa dos aparatos tecnolgicos e suas resultantes na sonoridade e extenso criativa
acopladas guitarra eltrica. Ao ser pesquisado, no mesmo banco de dados, as palavras
conjuntas msica e tecnologia resultam em 143 trabalhos encontrados, que abrangem diversas
reas de estudo como: sonologia, composio, histria, educao, interpretao, improvisao,
msica popular, etnomusicologia, produo fonogrfica, comunicao, software livre,
computao, educao, entre muitas outras.
Percebo assim, no meio acadmico brasileiro, uma lacuna no que se refere uma
pesquisa com uma abordagem exclusiva do uso das novas tecnologias digitais com a guitarra
e seus artefatos e que seja voltada para o campo da composio e improvisao na msica
experimental. Espero que este trabalho possa contribuir trazendo uma reflexo importante na
pesquisa do instrumento e seu uso na msica contempornea.
1.1 Metodologia
A metodologia do trabalho baseou-se em pesquisas tericas, abordagens prticas do
processo de composio e improvisao na msica experimental, atravs do uso da guitarra
eltrica e ferramentas disponveis das novas tecnologias digitais, alm de anlise musical
posterior dos resultados alcanados com a pea proposta. Sua realizao foi dividida em cinco
momentos de referncia pertinentes a estes procedimentos metodolgicos, presentes em
momentos distintos durante o perodo de estudo:
a.) Reviso bibliogrfica: foi o momento inicial do trabalho, onde foram organizadas e
compiladas as pesquisas na rea de criao e sonoridade, tecnologia musical, msica
experimental, composio e improvisao. Aqui tambm foram realizadas pesquisas de
repertrio experimental do instrumento e a escolha de peas experimentais importantes que se
28
tornaram, posteriormente, referncias para o processo composicional. Este perodo abrange
tambm o estudo, leitura, seminrios e proposies das disciplinas cursadas durante os dois
primeiros anos do mestrado.
b.) Reviso da tecnologia: dedicado ao estudo e anlise da tecnologia disponvel nos
sistemas Linux, MAC OSX e no iOS e seus aparatos correlacionados, alm dos aplicativos e
unidades hardware de efeitos, como pedais e/ou pedaleiras. Aqui aconteceu a deciso pelo uso
de um computador mvel em ambiente Macintosh e um outro equipamento em iOS, dada a
abrangncia de possibilidades de desenvolvimento de softwares e aplicativos, tanto em cdigo-
aberto, de carter livre, quanto em verses comerciais, e tambm por uma extensa experincia
de uso pessoal com ambos os sistemas.
c.) Aplicao e manipulao sonora: momento que inclui o estudo da interao
homem-mquina em tempo real, sob a tica da manipulao sonora, com as relaes, uso e
performance em tempo real da guitarra eltrica com um computador MacBook, um iPad e suas
especficas interfaces digitais, descritas no mapeamento. Um formato de dirio de bordo foi
utilizado durante este processo, incluindo anotaes especficas do repertrio selecionado,
apontamentos de carter investigativo e experimentaes sonoras que incluram performance,
gravao e mudanas timbrsticas expandidas digitalmente atravs do uso dos aparatos
mapeados. Com isso, foi sendo criado e constantemente alimentado um reservatrio de ideias
que abarcou diferentes possibilidades de performance e criao sonora, alguns sendo utilizados
posteriormente na composio proposta. Algumas experimentaes sonoras nasceram para e
atravs dos ensaios e concertos realizados da srie Msica?10 e as reflexes que estes
eventos possibilitaram.
d.) Composio e registro: momento anterior concluso da pesquisa, onde foi
concluda a composio da pea e realizada a gravao desta composio em formato digital.
Este perodo incluiu a escolha do software multipista a ser utilizado, a execuo de
experimentos com reverberaes e posicionamentos de ambientao panormica com os
arquivos de udio j registrados de cada instrumento, e tambm incluiu a formatao do roteiro
10 Msica? uma srie de performances que vem sendo realizada desde 2005 em que produes sonoras e musicais so tomadas como
ponto de discusso e reflexo a respeito da produo musical atual. Experimentalismo, uso crtico de tecnologias de produo sonora,
interligao entre elementos visuais, gestuais e sonoros, emprego de tcnicas de improvisao e explorao dos espaos de performance so alguns dos elementos que norteiam as apresentaes do Msica?. Ver: http://www2.eca.usp.br/nusom/producoes-musica - acesso em
5/3/15.
http://www2.eca.usp.br/nusom/producoes-musica
29
de partitura que serviu como estrutura organizacional da execuo de cada uma das guitarras
da pea.
e.) Escrita da dissertao: perodo conclusivo do trabalho, j com muitas leituras
concretizadas de artigos, obras, papers, livros e manuais, um maior perodo de envolvimento
com o grupo de estudos do departamento de Sonologia e de Msica da USP, reunies diversas,
mapeamento e pesquisas sonoras dos aparatos individuais realizadas e muitos dos softwares e
aplicativos escolhidos j, razoavelmente, decupados e apreendidos em seu uso como
ferramentas de criao e modificao sonora. A organizao de todo este material tambm
inclui um levantamento do repertrio a ser referenciado na pesquisa e o envio de perguntas e
reflexes a alguns dos compositores citados no trabalho, e sua posterior compilao de
respostas.
***
30
2. A guitarra, sua natureza eltrica e a tecnologia musical
31
Captulo 2 A guitarra, sua natureza eltrica e a tecnologia musical
The evolution of the electric guitar is the evolution from a barely audible rhythm
instrument to a vessel, along with amplifiers and sound effects technology, through
which any imaginable sound might be produced.
Andr Millard, 2004
Lester William Polsfuss, tambm conhecido como Les Paul, criou a primeira guitarra
de corpo slido da histria, chamada The Log, em 1941, iniciando um impacto de grandes
propores na msica popular11. Trata-se de instrumento que nasceu pela e para a eletricidade,
sobreviveu aos desafetos acsticos tradicionalistas, foi identificado como smbolo da
modernidade cacofnica na cultura popular12 e ainda venceu as primeiras tentativas de
simulao de sua sonoridade atravs da utilizao de presets nos sintetizadores comerciais13,
dada a dificuldade desta simulao pela complexidade de sua interface. Mas na atualidade
que o instrumento vive um momento significativo no que diz respeito ao seu potencial de
manipulao e criao sonoras, com possibilidades inditas de interpretao e composio. Ao
incorporar sonoridades obtidas a partir do uso das novas tecnologias digitais, a guitarra eltrica
torna-se um reservatrio de possibilidades experimentais, tanto na fase de criao quanto em
11 Historicamente, h outros desenvolvedores que conseguiram amplificar uma guitarra slida e eltrica antes de Les Paul: em 1931, George
Beauchamp, diretor da empresa National Guitar Corporation, desenvolveu um prottipo de uma guitarra eltrica amplificada, mas sem muito sucesso. Porm, de Beauchamp a primeira patente assegurada nos EUA de uma guitarra eltrica, no incio de 1937. H tambm Lloyd
Loar, que j na dcada de 20 do sculo passado desenvolveu alguns prottipos ainda ineficientes eletricamente e primitivos como engenheiro
da fbrica da Gibson em Kalamazoo, Michigan, EUA. Lloyd iria fundar posteriormente, na dcada seguinte, a empresa Vivi-Tone em 1933, tendo tambm uma patente registrada nos EUA em 27 de janeiro de 1937 que especificava uma guitarra eltrica que poderia ser utilizada
tanto como fonte-geradora sonora quanto instrumento musical. O suo-americano Adolph Rickenbaker, que na mesma dcada de 30 produzia
alguns modelos de lap-steel (guitarra feita a partir de uma construo do corpo com lataria, que no incio do sculo XX tentava obter um volume maior de ressonncia; geralmente tocada em posio horizontal, com um slide de vidro ou metal deslizando pelas cordas) tambm
tentou construir alguns prottipos com corpo em madeira slida na poca, sem resultados significativos. Rickenbacker e Beauchamp iriam juntar-se mais tarde, em meados da dcada de 1930, para fundar a empresa Rickenbacker, que apresentaria alguns modelos de guitarras e
contrabaixos eltricos muito bem feitos e de grande sucesso comercial. Alguns destes modelos so cobiados at hoje por muitos
instrumentistas. (Ver: WHEELER, 1993). 12 Ao chegar ao Brasil com proeminncia, na dcada de 1960, a guitarra eltrica gerou calorosas discusses no meio artstico sobre seu uso
na msica popular. Em 17 de julho de 1967, com os brados de Defender O Que Nosso, aconteceu uma passeata na cidade de So Paulo, que ficou conhecida como a Passeata Contra a Guitarra Eltrica, saindo do Largo So Francisco e desembocando diretamente no Teatro
Paramount, na avenida Brigadeiro Lus Antnio, onde era gravado em emissora de TV um conhecido programa de msica popular brasileira
na poca. Esta manifestao foi liderada pela cantora Elis Regina, e contava com forte apoio e presenas de artistas populares como: Jair Rodrigues, Z Keti, Geraldo Vandr, Edu Lobo, o grupo MPB-4 e Gilberto Gil, entre outros. Em entrevista a Jlio Maria, para o jornal O
Estado de So Paulo, de 28 de janeiro de 2012, Gil comenta: Eu participava com Elis Regina daquela coisa cvica, em defesa da
brasilidade, tinha aquela mtica da guitarra, como invasora; eu no tinha isso com a guitarra, mas tinha com outras questes, da militncia, era o momento em que ns todos queramos atuar. Disponvel em: http://jornalggn.com.br/noticia/a-passeata-da-mpb-em-1967-contra-a-
guitarra-eletrica. Acesso: 21/10/14. Outro episdio que ficaria conhecido historicamente foi a apresentao do cantor/compositor popular
estadunidense Bob Dylan em 1965 no Festival Newport Folk, nos EUA. Dylan apareceu pela primeira vez utilizando uma guitarra eltrica e slida (uma Fender modelo Stratocaster sunburst) na cano, at ento indita, Like a Rolling Stone, sendo imensamente vaiado pelo pblico
presente, que considerou a presena da guitarra eltrica junto ao cantor como um desrespeito tradio das canes de ento. Disponvel
em: http://www.eyeneer.com/video/rock/bob-dylan/maggies-farmlike-a-rolling-stone e http://www.history.com/this-day-in-history/dylan-goes-electric-at-the-newport-folk-festival - acessos em 28/10/14.
13 At o final do sculo XX a simulao da sonoridade de uma guitarra eltrica, em um ambiente de msica popular, nunca obteve sucesso comercial em sintetizadores e samplers. (Ver: RUSS, Martin. Sound Synthesis and Sampling. London: CRC Press/Taylor & Francis
Publishers, 2012).
http://jornalggn.com.br/noticia/a-passeata-da-mpb-em-1967-contra-a-guitarra-eletricahttp://jornalggn.com.br/noticia/a-passeata-da-mpb-em-1967-contra-a-guitarra-eletricahttp://www.eyeneer.com/video/rock/bob-dylan/maggies-farmlike-a-rolling-stonehttp://www.history.com/this-day-in-history/dylan-goes-electric-at-the-newport-folk-festivalhttp://www.history.com/this-day-in-history/dylan-goes-electric-at-the-newport-folk-festival
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performance, com mudanas de timbre em tempo real. Esta pesquisa tem o objetivo de
apresentar uma contextualizao do instrumento como gerador destas sonoridades
experimentais atravs de oportunidades existentes em softwares e aplicativos que envolvem
criao, manipulao e extenso sonoras. Ao aliar uma fora de interpretao caracterstica aos
instrumentos de corda com uma natureza eltrica/amplificada e permitir a incurso de novas
ferramentas digitais em seu processamento sonoro, a guitarra possibilita que seu campo de
atuao seja amplificado, em tempo real, nas reas de composio e improvisao.
Se levarmos esta reflexo para o campo da msica eletroacstica e experimental, que a
partir do sculo XX possibilitou o alargamento de sonoridades no fazer musical, aliado ao
momento atual das potencialidades sonoras da guitarra, possvel encontrarmos alguns
caminhos que faam uso deste material sonoro que sejam pertinentes aos assuntos desta
pesquisa. Afinal, estas ferramentas digitais no so inditas tampouco foram concebidas
originalmente pensando em seu uso com a guitarra eltrica. Segundo Iazzetta (2009, p.155),
Nenhuma tecnologia totalmente nova, mas sim resultado de uma complexa teia de
conhecimentos, experimentaes e realizaes que ocorrem de forma sincrnica e
diacrnica [...]. H tambm um outro fator que, se no gerado pela tecnologia
musical, ao menos colocado em evidncia por ela: a expanso da ideia de
instrumento.
O uso destas novas tecnologias possibilita desalojar o instrumento de seu padro snico
original e permite uma expanso para outros territrios, atravs de uma abordagem exploratria
resultante das novas possibilidades estticas, sonoras e do uso de novos materiais criados a
partir da converso digital de seu sinal eltrico. O tocar da guitarra, seu fazer musical, passou
a contar com mais possibilidades de conexes que a permitem expandir suas possibilidades
tcnicas e sonoras tradicionais j enraizadas e absorvidas14, tanto em seu formato de
interpretao quanto ao que se pode esperar dela em processos composicionais. Estas
possibilidades digitais de troca e interao sonora entre o instrumento e suas ferramentas de
criao promovem tambm a experimentao de novos sons e suas conexes possveis,
oferecendo alternativas antes inexistentes em como conectar estes diversos materiais entre si15.
Algumas vezes, situaes imprevistas no momento de se conceber alguns destes sons e os
executar na guitarra momento este com carter laboratorial, de pesquisa e que objetiva a
maneira como a fisicalidade presente no instrumento se relaciona com a criao e interpretao
14 Em estilos musicais como o rock, o jazz, a chamada msica pop, o blues, a msica popular brasileira, entre outros.
15 Softwares como o Max e o Pd, citando dois exemplos que foram utilizados na composio proposta e analisados durante este trabalho, apresentam algumas destas novas possibilidades de conexo de materiais sonoros.
33
destas sonoridades - acabam dando origem a caminhos ainda inditos que, antes do uso destas
novas tecnologias digitais, seriam impraticveis. Neste laboratrio sonoro no qual as
ferramentas digitais permitem alocar, a transposio de territrios intrnsecos ao instrumento
e seus limites se beneficia, e muito, do imprevisvel. Os filsofos franceses Gilles Deleuze e
Flix Guattari (1995, p.45), escrevem no segundo volume da obra Mil Plats sobre elementos
isolados que, quando conjugados e conectados, tm resultados imprevisveis:
No utilizando uma lngua menor como dialeto, produzindo regionalismo ou gueto
que nos tornamos revolucionrios; utilizando muitos dos elementos da minoria,
conectando-os, conjugando-os, que inventamos um devir especfico, autnomo,
imprevisto...16
Atualmente, aps a digitalizao do seu sinal eltrico no computador, a guitarra pode
interagir com diferentes equipamentos e passar por uma srie de procedimentos para a
construo de um som especfico. Esta relao do instrumento com o computador no afeta
somente a construo sonora, mas tambm cria todo um ambiente que se relaciona com o tocar
do instrumento e seu fazer musical. O instrumentista passa a vivenciar um novo patamar de
dilogo com diversas camadas que proporcionado e, simultaneamente, ampliado
exponencialmente pelo processamento digital. Bertelsen, Breinbjer e Soren (2007, p.233),
escrevem analogamente sobre esta relao entre usurio e mquina, atravs da utilizao de
uma ferramenta digital de produo de texto,
Assim, o sucesso de um artefato computacional, por exemplo, um sistema de
processamento de texto, no apenas uma questo de utilidade e usabilidade na
resoluo de tarefas comuns de edio; tambm importante que o sistema d suporte
ttil ao escritor sobre o texto a ser produzido, e que o sistema sirva como um ambiente
para o desenvolvimento do autor enquanto um escritor e, finalmente, importante
que o sistema suporte a escrita como um processo criativo e que inspira e apoia
tambm o desenvolvimento da escrita em relao aos novos formatos interativos.17
Este novo dilogo passa a ocorrer, portanto, de forma muito ampliada com relao ao
que o instrumentista da guitarra possua anteriormente. No apenas o som objetivado em um
16 Para Deleuze e Guattari, no segundo volume de Mil Plats (p.45), as lnguas menores no so simplesmente sublnguas ou dialetos, mas
agentes potenciais para fazer entrar a lngua maior em um devir minoritrio de todas as suas dimenses, de todos os seus elementos [...] de
forma imprevisvel. Esta analogia serve ao trabalho de forma muito pertinente, pois ao conectar estes procedimentos menores e isolados na concepo sonora, atravs de diferentes ferramentas digitais, muitas vezes possvel chegar a resultados imprevisveis na sonoridade
concebida.
17 Thus, the success of a computer artefact, e.g. a text processing system, is not only a matter of utility and usability in solving standard
editing tasks. It is also important that the system supports the writers sense of the text being produced, and that the system serves as an
environment for the writers development as a writer, and finally it is important that the system supports writing as a creative process, and that it inspires and also supports the development of writing in relation to new interactive formats (traduo nossa).
34
software qualquer o resultado prtico desta relao. Como mostram Bertelsen, Breinbjer e
Soren acima, o artefato computacional, seja ele sonoro, grfico ou textual, passa a oferecer e
impor correlaes de usabilidade e tambm de ambientao criativa. Dada a riqueza destes
procedimentos, a evoluo tcnica dos processadores digitais disponveis e o uso intensificado
de abordagens digitais interativas18, esta relao instrumento-computador cria alternativas que
podem servir de alicerce para a msica experimental contempornea. exatamente aqui que
realizo uma importante delimitao do trabalho: apresentar uma reflexo sobre o uso e criao
sonora de um instrumento de corda eletrificado e posteriormente digitalizado, dentro do escopo
da msica experimental, que definirei no terceiro captulo, a partir de seu uso exclusivo com
as novas tecnologias presentes na computao mvel. Uma fundamentao importante o fato
de que, atravs do atual estgio de desenvolvimento tecnolgico, possvel criar, mudar e usar
os softwares e aplicativos em tempo real, permitindo que o uso da guitarra com estes aparatos
no seja reservado apenas aos processos composicionais, mas tambm se torne efetivo em
performances e improvisao.
Neste contexto, toda e qualquer comunicao entre humanos e mquinas
(computadores pessoais, pedais de efeitos individuais como delays, pitch-shifters e
moduladores, pedalboards com sistema de memria avanado, unidades de loop em tempo
real, processadores de sinais independentes, aplicativos para aparelhos mobile e softwares de
sntese sonora, sequenciadores de inteligncia artificial, simuladores e samplers, entre dezenas
de outros) passa a ter um maior uso de carter interativo19. Surge uma espcie de msico digital,
que incorpora no apenas a tecnologia disponvel em seu ambiente de criao, mas tambm
procedimentos, processos, estruturas e pensamentos correlacionados neste universo. Para
Hugill (2008, p.XV), msicos digitais no somente utilizam nica e exclusivamente
equipamentos tecnolgicos no fazer musical, mas tambm so produto de toda uma cultura
digital20. A ideia de uso do experimento, da tentativa de obteno de algo que ainda no foi
18 Esta interao entre homem-mquina pode ocorrer de diversas formas atualmente, dentre elas: pedais acionadores de controle de expresso,
telas sensveis ao toque, sensores de posio GPS, sensores infravermelhos, controladores sem fio via rede wi-fi ou bluetooth, dentre outros.
Veja tambm a nota de rodap seguinte, de nmero 19. 19 A comunicao entre o instrumentista e seus aparatos (a comear pela prpria fisicalidade do instrumento) passa, no caso da guitarra eltrica,
por unidades de efeito, softwares e aplicativos que produzem a sonoridade final obtida. Ao acionar uma unidade de delay, que tem a repetio sincronizada com o andamento de uma msica, o instrumentista passa a executar de forma a agregar o sinal compartilhado pelo eco do efeito.
Ou escolhendo usar o pedal de wah-wah, a estruturao rtmica da execuo possivelmente ir mudar (se a proposta for incorporar o efeito
per se), alm da prpria movimentao fsica de acionamento do pedal, que chega a fazer parte da performance. Assim se d com praticamente cada patch ou efeito acrescentado, programado, acionado. At mesmo um simples knob de tone (circuito eletrnico que usa filtros entre 250K
ohms e 500K ohms, presente no prprio corpo do instrumento; quanto maior o valor da frequncia, maior a reduo corte na zona de
frequncia aguda o knob ir efetuar), ou a escolha de quais captadores usar, ir alterar, somar ou subtrair, interagindo com o timbre final almejado pelo instrumentista.
20 The digital musician, therefore, is not one who uses only those technologies on composing and making music, but is rather a product of the whole digital culture (traduo nossa).
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criado possibilita, atravs da utilizao dos recursos digitais na guitarra eltrica, definir um
novo momento para o instrumento. O termo uso, aqui, refere-se a um procedimento, a um
processo de pesquisa, de experincia. No captulo 3, farei uma breve referncia do uso de
procedimentos na msica experimental e da importncia destes como ferramentas de
composio. Citando Hugill (2008, p.3):
[...] Msicos digitais no so, portanto, definidos pelo uso da tecnologia por si s.
O recital de um pianista em um piano digital no realmente uma execuo de um
msico digital, como tambm no ser um msico digital aquele compositor usando
um software de notao para escrever um quarteto de cordas. Estes so msicos que
usam uma ferramenta digital para facilitar um resultado que no concebido em
termos digitais. No entanto, se o pianista ou compositor ficar intrigado com alguma
possibilidade disponvel pela tecnologia que eles esto usando, e assim comearem
a mudar a maneira de pensar sobre o que eles esto fazendo, neste ponto eles
"podem" comear a se mover para tornarem-se msicos digitais [...] assim, um
msico digital aquele que tem abraado as possibilidades oferecidas pelas novas
tecnologias, em particular, o potencial do computador para a explorao,
armazenamento, manipulao e processamento de som, bem como o
desenvolvimento de inmeras outras ferramentas digitais e dispositivos que
permitem a inveno musical e criativa... um msico digital, portanto, tem uma certa
curiosidade, um compromisso de questionamento e crtica que se passa nestes
territrios...21
A guitarra eltrica atualmente um instrumento que possui esta opo natural de
abraar as possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias, resultando em uma infinidade de
exploraes e processamentos sonoros que podem ir alm da curiosidade e encantamento
momentneos. Esta pesquisa tem este objetivo ao levantar algumas reflexes sobre estas novas
possibilidades do instrumento e propor uma pea musical como resultante artstica.
2.1 Breve descrio histrica
A tecnologia de simulao e sntese sonora encontrada em grande parte dos aparatos
tecnolgicos para a guitarra eltrica parte do princpio de que possvel reproduzir as mesmas
caractersticas sonoras de vrios equipamentos j conhecidos e utilizados em larga escala no
processo de gravao desde a dcada de 1950. Geralmente, estes equipamentos so
21 Digital musicians are, therefore, not defined by their use of technology alone. A classical pianist giving a recital on a digital piano is not really a digital musician, nor is a composer using a notation software package to write a string quartet. These are musicians using digital
tool to facilitate an outcome that is not conceived in digital terms. However, if that pianist or composer were to become intrigued by some
possibility made available by technology they are using, so much so that it starts to change the way they think about what they are doing, at that point they might start to move towards a digital musician... so, a digital musician is one who has embraced the possibilities opened up
by new technologies, in particular the potential of the computer for exploring, storing, manipulating and processing sound, and the
development of numerous other digital tools and devices which enable musical invention and discovery... a digital musician, therefore, has a certain curiosity, a questioning and critical engagement that goes with the territory- (traduo nossa).
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considerados vintage22, antigos e j fora de produo, e possuem um preo carssimo no
mercado de instrumentos e aparelhos usados. H um certo fetiche pelo que antigo; muitos
msicos parecem crer que, somente pelo fato de um equipamento ter sido produzido em
dcadas passadas, ele possa gerar sonoridades ou caractersticas de timbre mais orgnicas, e
que seu uso ir agregar um padro superior de qualidade sonora. Adorno (1999, p.76) cunhou
a expresso indstria cultural, definindo as variveis ideolgicas que permeiam o discurso
miditico:
Fica evidente o estado de xtase que se d diante do belssimo som
convenientemente anunciado em uma propaganda do Stradivarius ou de um Amati;
no entanto, s podem ser distinguidos de um violino moderno razoavelmente bom
ouvidos especializados, no se esquecendo de prestar ateno devida execuo e
composio.... Quanto mais progride a moderna tcnica de fabricao de violinos,
tanto maior o valor que se atribui aos instrumentos antigos.
Este sentimento de xtase pelo que antigo e vintage no exclusividade da guitarra e
j foi abraado pela tecnologia comercial, que tenta promover a possibilidade de o
instrumentista obter sons de equipamentos bastante difundidos em gravaes histricas que
podem ser recriados digitalmente em um computador pessoal, atravs do uso de softwares
simuladores especficos. Chamo este padro de uso da tecnologia de reducionista por
representar um sistema que almeja meramente replicar sons j largamente utilizados
anteriormente atravs de uma simulao digital que procura analisar, atravs de softwares, suas
caractersticas de formao de espectros, alturas, massas e densidades. A reproduo
virtualizada destes sons vintages passa a ser meramente uma iluso acstica, pois o som de um
determinado amplificador ou instrumento antigo no existe por si s, mas sim formado por
diversos outros fatores como: as caractersticas dos microfones utilizados em gravaes
referenciais, as salas de projeo sonora, os pr-amplificadores utilizados no sistema de
captao e mixagem, as qualidades dos alto-falantes utilizados especificamente nestas
gravaes, alm de inmeras outras possibilidades de interveno sonora. O que se faz aqui
colocar toda uma situao de potencial tecnolgico que possibilita o desenvolvimento de novas
sonoridades em favor da recriao de outras tantas sonoridades j estabelecidas em alguns
territrios como o jazz, rock ou fusion. Esta procura reducionista por sons antigos e largamente
utilizados de amplificadores e pedais de efeitos, entre outros, construdos em dcadas passadas
no apresenta para este trabalho uma qualidade de abordagem experimental na construo
22 Equipamentos vintage: geralmente, instrumentos e acessrios mais antigos, que j possuem um valor agregado de manufatura, origem, tipo de construo manual e que oferecem um apelo clssico", de maturidade sonora. Qualidade de instrumento ou equipamento nico.
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sonora e no faz parte do processo investigativo por fugirem do objetivo da pesquisa. Esta
caracterstica experimental e algumas de suas nuances e definies sero abordadas durante o
prximo captulo.
Desde o seu nascimento, a guitarra eltrica recebeu algumas mudanas no formato do
instrumento e inovaes na escolha de materiais em sua construo, mas que no alteraram sua
construo de forma radical. Ainda hoje os modelos mais utilizados em escala mundial so
praticamente os mesmos desenvolvidos na dcada de 50 do sculo passado, como a Gibson
Les Paul23 ou a prpria Fender Telecaster, com pouqussimas atualizaes mais de carter
visual, como tipos de acabamento em verniz ou escolha de madeiras certificadas.
Implementaes tcnicas como incluso de alavancas com travas para as cordas e regulagem
de microafinao24, construo do corpo e brao do instrumento em outros materiais como
grafite ou carbono25, captadores ativos alimentados por uma bateria interna de energia26,
tarraxas com sistema automatizado de afinao-padro27, sintetizadores e controladores MIDI
embutidos, entre alguns outros, esto j disponveis h vrios anos e adicionaram
possibilidades de interpretao no instrumento e sua performance, mas que no alteram
drasticamente seu projeto original tampouco a maneira como os msicos utilizam a guitarra.
O mesmo pode-se dizer dos amplificadores para o instrumento, que nasceram utilizando a
23 Modelo desenvolvido por Les Paul e Ted McCarty em 1952, pela empresa estadunidense Gibson Guitar Corporation. Ver: EVANS, Tom;
EVAN, Mary Anne. Guitars: Music, History, Construction and Players from the Renaissance to Rock. New York: Paddington Press, 1977
e WHELLER, Tom. The Electric Guitar. San Francisco: Chronicle Books, 1993. 24 O sistema de vibrato, alavanca, travas nas cordas individuais de afinao e regulagens precisas conhecido como Floyd Rose foi criado em
1977 e patenteada dois anos depois pelo engenheiro mecnico estadunidense Floyd D. Rose, possibilitava os instrumentistas utilizarem o vibrato mecnico da alavanca de forma mais proeminente e manter a afinao padro da guitarra. Antes desta tecnologia, a quase totalidade
dos modelos de guitarra eltrica que contavam com uma alavanca de vibrato desafinavam aps um uso moderado. A Floyd Rose permitiu,
pela primeira vez, que instrumentistas desenvolvessem uma nova linguagem com a utilizao de alterao mecnica de frequncias e explorao de harmnicos ao longo do brao do instrumento mantendo a afinao desejada.
25 O engenheiro estadunidense Ned Steinberger desenvolveu, em 1979 um modelo de contrabaixo, conhecido como L2, slido e eltrico
totalmente construdo com uma mistura de materiais em grafite e fibra de carbono, apresentando um corpo fino, pequeno, quadrangulado e
sem a presena do headstock, a rea extrema onde so presas as cordas do instrumento, partindo do princpio que o instrumento sendo totalmente eltrico no havia necessidade de madeiras ou grandes quantidades de rea construda. A primeira guitarra eltrica slida construda
por Steinberger com estas mesmas caractersticas e materiais surgiria em 1981. Anos mais tarde, algumas outras empresas utilizariam
diferentes materiais e designs alternativos na construo de guitarras eltricas slidas, entre elas: Parker Guitars, com modelos ultraleves feitos de resina e fibra de carbono, desenvolvidas pelo engenheiro Ken Parker na dcada de 90 do sculo XX; os instrumentos construdos
por Steve Klein, com diferentes designs de corpo e braos mais retos e finos, apresentando uma grande variedade de materiais utilizados na
construo, alm de madeiras levssimas; a japonesa Yamaha G10, lanada em 1988, com corpo reto em plsticos e carbono, com capacidade de controlar parmetros MIDI em mdulos externos atravs de um decodificador hexafnico e tambm ser utilizada como uma
guitarra eltrica tradicional, com captadores magnticos; a Variax, da empresa estadunidense Line-6, que apresenta um software de emulao
e virtualizao digital embutido e controlado no prprio corpo do instrumento (ver o captulo Anexos deste trabalho para especificidades deste aparato); a guitarra alem FrameWorks, criada por Frank e Verena Krocker, totalmente sem corpo e com suporte removveis, feita apenas em
um nico pedao de madeira que contm o brao e sua parte eletrnica construda, entre outros.
26 Captadores alimentados por uma bateria de energia acondicionada no corpo da guitarra eltrica, de 9V, desenvolvidos pela empresa EMG
e introduzidos em 1976-77 nos EUA. Estes captadores possibilitaram, atravs da alimentao ativa pela bateria 9V, uma sada de altssimo
ganho em decibis, a eliminao de interferncias comumente encontradas em captadores magnticos tradicionais e uma sustentao prolongada das notas captadas.
27 Sistema de auto afinao automatizada introduzido pela empresa Gibson, no modelo Les Paul Robot, em 2007, onde as tarraxas mecanicamente se alinham atravs de regulagens de afinao das alturas pr-estabelecidas pelo instrumentista.
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tecnologia de vlvulas, passaram a ser construdos com transistores eletrnicos e, desde a
dcada de 90 do sculo XX, possuem modelos hbridos, que misturam tecnologias com uso de
vvulas, transistores e tambm fazem uso de processamento digital de efeitos diversos.
Construo adiante, neste mesmo captulo, uma reflexo sobre os tipos de amplificao
disponveis para o instrumento, dada a importncia que os amplificadores e seus alto-falantes
possuem para a construo do som da guitarra eltrica.
Proponho a seguir uma diviso em quatro estgios no que se refere ao desenvolvimento
do instrumento e sua relao com a tecnologia. Desde sua origem, a guitarra eltrica atravessou
trs grandes fases de desenvolvimento, chegando atualmente em sua quarta etapa evolutiva,
etapa esta que permite ao instrumento a insero de ferramentas digitais em tempo real nos
processos da construo de suas sonoridades.
2.1.1 - Estgio # 1: origem
A guitarra oriunda do violo acstico. Carfoot (2006, p.36) afirma que, se narrada
em uma direta linha organolgica28, a histria da guitarra traa uma rota entre os sculos XV
e XVI que passa por Espanha, Itlia e Frana e tem uma origem na vihuela portuguesa. Entre
o final da dcada de 20 e o comeo da dcada de 30 do sculo passado, comea a ser utilizada
em formaes de Big-Bands e msicas mais populares danantes. Com a guitarra acstica,
havia um problema relevante na performance do instrumento, quando no tocado de maneira
solo: a questo do volume, pois em uma banda a guitarra acstica dificilmente se faz ouvir
junto aos sopros, bateria, percusso e piano. Com a vinda da eletricidade, um primeiro passo
tecnolgico absorvido, resolvendo o problema da amplificao do volume natural do
instrumento tradicional, atravs de captadores magnticos e amplificadores. Com a tecnologia
emprestada do telefone, do rdio e do gramofone, baseada em princpios de magnetismo e
eletricidade, temos o surgimento de um instrumento, que aparece primeiro no formato de lap
steel29, por causa da grande popularidade da msica vinda do Hawaii nos EUA na dcada de
20.
28 Organologia: disciplina que trata da descrio e da classificao de qualquer instrumento musical, tendo em conta a tipologia do material empregado, a forma, a qualidade do som produzido, o timbre resultante, o modo de execuo, etc. A organologia tambm procura classificar
os instrumentos de acordo com suas semelhanas de forma fsica, articulao do som e timbre em famlias instrumentais. Fonte: Associao
de Instrumentos Musicais de Portugal, Congresso de Organologia, 2014, disponvel em https://sites.google.com/site/animusicpt/httpsitesgooglecomsiteanimusicptintroduo - acesso em 26/11/14.
29 Uma guitarra tipo lap-steel (ao-no-colo) foi muito difundida nos EUA no comeo do sculo XX, em canes folclricas do Hawaii, e
logo absorvida por msicos country, folk e pop. uma guitarra menor, montada em cima de uma base (de lata ou madeira), e geralmente
https://sites.google.com/site/animusicpt/httpsitesgooglecomsiteanimusicptintroduo
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Mas a necessidade que faz surgir a guitarra eltrica o aparecimento das bandas e
grupos, onde necessrio um instrumento de maior volume do que o modelo acstico, para
um melhor equilbrio na mixagem de todos os instrumentos. As Big Bands de jazz, com o
grande expoente na figura do msico Charlie Christian (que usava uma Gibson modelo ES-
150, praticamente um violo de cordas de ao com um captador magntico acoplado em 1939,
tentando amplificar o volume do instrumento para acompanhar os volumes dos saxofones e
trombones presentes na orquestra liderada pelo clarinetista Benny Goodman, da qual fazia
parte)30, so o principal motivo da popularidade precoce da guitarra eltrica. Vale lembrar que
a interface do instrumento muda, pois podemos agora controlar a quantidade de volume final,
alm das bandas grave e agudo, reguladas pelo knob de tone (boto de filtro de grave/agudo
presente no circuito eltrico) da guitarra, grande responsvel pelo som aveludado de muitas
guitarras de jazz,