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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN SETOR DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
LEANDRO DORVAL CARDOSO
A VEZ DO VERSO: ESTUDO E TRADUO DO AMPHITRUO, DE PLAUTO
CURITIBA 2012
LEANDRO DORVAL CARDOSO
A VEZ DO VERSO:
ESTUDO E TRADUO DO AMPHITRUO, DE PLAUTO
Dissertao apresentada como requisito parcial obteno de grau de Mestre em Letras (Estu-dos Literrios) no curso de Ps-Graduao em Letras, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paran. Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Tadeu Gonalves
CURITIBA 2012
ii
iii
iv
Aos meus pais, Jos e Terezinha.
Sempre.
v
Antes de qualquer coisa, nada disso seria possvel sem o apoio, o incentivo, o
reconhecimento (a pacincia) e o exemplo dos meus pais (Jos e Terezinha) e ir-
mos (Josiane e Giovani). Obrigado para sempre.
Agradeo ao Prof. Dr. Rodrigo Tadeu Gonalves por ter acreditado e investido
neste projeto durante mais de dois anos sem contar o tempo da graduao. Cer-
tamente esta dissertao no teria tido a mesma sorte sem o seu empenho e dedi-
cao nas leituras, nas conversas e nos versos. Obrigado pela empolgao, pelo
empenho e (muito! e principalmente) pelo incentivo, pela ajuda (pela pacincia) e
pelas (muitas) cervejas. E pela amizade. E por tudo isso novamente.
Agradeo tambm ao professores membros da banca examinadora: Prof. Dr.
Joo ngelo Oliva Neto, pelo acompanhamento desde o estabelecimento do nosso
projeto at a defesa; pelas leituras, pelo incentivo e pelas extraordinrias considera-
es feitas ao longo do percurso. Ao Prof. Dr. Mauricio Mendona Cardozo, o orien-
tador de outrora, pelo acompanhamento e pela orientao desde o princpio da gra-
duao; pelas consideraes e pela disposio em ler este trabalho (e pelas cerve-
jas). Ao Prof. Dr. Alessando Rolim de Moura, magister, pela confiana, pela leitura e
pela disposio em fazer parte deste momento.
Agradeo tambm ao Prof. Dr. Brunno V. G. Vieira e ao Prof. Me. Guilherme
Gontijo Flores pelas conversas (e novamente pelas cervejas), pelo acolhimento e
pelas contribuies diretas e indiretas na traduo que ora apresentamos. J que o
assunto esse, um agradecimento mais que especial aos companheiros de emprei-
tada (e de cervejas) Luiza Souza, Vinicius Ferreira Barth (a la traduccin,
compaeros!) e Adriano Scandolara. Agradeo tambm a todos os colegas e amigos
que estiveram presentes durante o perodo em que me dediquei a este trabalho.
Agradeo Thayse Letcia, minha L, por cada um dos nossos minutos e por
cada um dos nossos passos; pela compreenso, pela pacincia, pelo incentivo, pelo
apoio, pelo carinho e pelo amor, pelos sorrisos e pelos seus olhos. Por nunca deixar
de acreditar. Nunca. Por tudo. Sempre.
Por fim, agradeo tambm CAPES (e ao projeto REUNI), ao CNPq e a to-
dos os brasileiros que honram seus compromissos financeiros com a Receita Fede-
ral pelos dois anos em que fomentaram este projeto.
vi
No haber cado,
como otros de mi sangre,
en la batalla.
Ser en la vana noche
el que cuenta las slabas.
(Jorge Luis Borges - Tankas)
vii
Resumo
No presente trabalho, partindo da constatao da importncia que as estruturas m-
tricas a saber, diuerbia e cantica e, dentro desses, os recitativos e as canes
tm para a comoedia palliata, incorremos em uma anlise das estruturas mtricas da
pea Amphitruo, de Tito Mcio Plauto, com vistas a: i) realizar um estudo da questo
em se tratando do texto plautino e ii) fundamentar um projeto de traduo para a pe-
a. A partir desse estudo, portanto, apresentamos um projeto de traduo com o in-
tuito de desenvolver, em portugus, versos que possam recriar as estruturas mtri-
cas encontradas no Amphitruo. Ao final, apresentamos a traduo total da pea.
Palavras-chave: Plauto; Anfitrio; Polimetria; Traduo Potica; Mtrica.
viii
Abstract
In this work, through the assumption of the importance of metrical structures (i.e.
diuerbia and cantica, both recitative and song) for the comoedia palliata, we propose
an analysis of the metrical structure of the play Amphitruo by Titus Maccius Plautus,
with a view to (i) put forth a study of this question regarding the plautine text and (ii)
sustain a translation project for the play. Departing from this study, we present a
translation project aiming at developing verses in Portuguese which attempt to recre-
ate the metrical structures found in the Amphitruo. At the end of this study, we pre-
sent a full translation of the play according to this project.
Keywords: Plautus; Amphitryon; Polymetry; Poetic Translation; Metrics.
ix
Lista de Abreviaturas
Ad.: Adelphoe (Os Adelfos), Terncio;
An.: Andria (A Moa que veio de Andros), Terncio;
As.: Asinaria (A Comdia dos Asnos), Plauto;
Bac.: Bacchides (As Bquides), Plauto;
Capt.: Captiui (Os Cativos), Plauto;
Cas.: Casina (Csina), Plauto;
Cur.: Curculio (O Gorgulho), Plauto;
Dysc. Dyscolos (O Misantropo), Menandro;
Ep.: Epistulae (Epstolas), Sneca;
Gl.: Noctes Atticae (Noites ticas), Aulo Glio;
Liv.: Ab Urbe Condicta Libri (Histria de Roma), Tito Lvio;
Men.: Menaechmi (Os Menecmos), Plauto;
Mer.: Mercator (O Mercador), Plauto;
Mis.: Misoumenos (O Odiado), Menandro;
Od.: Odussia (Odisseia), Lvio Andronico;
Peiriceir.: Peiriceiromene (A Moa de Cabelos Cortados), Menandro;
Per.: Persa (Os Persas), Plauto;
Poen.: Poenulus (O Pequeno Cartagins), Plauto;
Rud.: Rudens (O Cabo), Plauto;
Trin.: Trinummus (A Comdia das Trs Moedas), Plauto.
x
Sumrio
Resumo .................................................................................................. vii
Abstract .................................................................................................. viii
Lista de Abreviaturas ............................................................................... ix
Sumrio ................................................................................................... x
Introduo ................................................................................................ 1
Nota do Tradutor .................................................................................... 11
I Traduzir a poesia........................................................................... 11
II O discurso da poesia .................................................................... 26
III A potica da palliata .................................................................... 43
III.1 O incio da tradio .................................................................. 43
III.2 Da relao entre a palliata e a .......................................... 54
III.3 A mtrica na palliata ................................................................ 81
IV A mtrica no Amphitruo .............................................................. 91
V A mtrica no Anfitrio .................................................................. 122
Anfitrio, de Tito Mcio Plauto ......................................................... 134
Referncias .......................................................................................... 172
Obras consultadas ........................................................................... 172
Edies do Anfitrio ......................................................................... 174
Bibliografia ....................................................................................... 175
Apndices ............................................................................................ 177
xi
Apndice A Tabela dos metros no Amphitruo ............................... 177
Apndice B Tabela comparativa entre os arcos e os atos do
Amphitruo ................................................................................... 180
Apndice C Tabela comparativa das principais edies do
Amphitruo .................................................................................... 181
Anexo A T. MACCI PLAUTI AMPHITRUO ........................................ 185
Introduo 1
Introduo
Ela a tese, embora, como traduo, no se ofe-rea como definitiva. Poder aperfeioar-se, se ao autor no faltarem tempo e engenho; poder supe-rar-se por outras, que a releguem para o jazigo das estantes e o manuseio indiferente de algum erudito em frias. (FIGUEIREDO, 1980)
O trabalho que ora apresentamos de traduo. No deixa de ser tambm
sobre traduo na medida em que qualquer traduo traz em si aquilo que seu tra-
dutor entende sobre o traduzir sobre o que , por consequncia, a Traduo. Uma
pergunta que pode surgir de nossa proposta e que se nos apresenta no contexto em
que a desenvolvemos : que relevncia cientfico-acadmica pode e deve ter uma
traduo como objetivo geral de uma dissertao de mestrado? O que faremos aqui
tentar respond-la ou ao menos encaminhar a resposta que ser dada, acredita-
mos, no decorrer do nosso trabalho.
As tradues so, sem dvida, o principal agente responsvel pela divulgao
das literaturas de lngua estrangeira, e no h dvidas tambm de que essa divulga-
o traz as marcas de diferentes instncias que influem diretamente no processo de
traduo e no seu resultado. Lawrence Venuti1, por exemplo, demonstra uma preo-
cupao especial com o ensino da literatura via traduo, detendo-se sobre a condi-
o da traduo e da literatura no processo por ele chamado de pedagogia da litera-
tura traduzida e concentrando-se especialmente em questes ticas e polticas que
influenciariam diretamente na traduo, condicionando o processo e determinando o
resultado.
De maneira anloga, Andr Lefevere detm-se sobre o que considera o as-
pecto manipulativo da traduo, ou, mais especificamente, dos processos de reescri-
ta, discutindo a influncia que uma ideologia e uma potica podem exercer determi-
nando a imagem do texto original criada pela reescrita:
1 VENUTI, 1998, p. 88-105.
Introduo 2
Produzindo tradues, histrias da literatura ou suas prprias compilaes mais compactas, obras de referncia, antologias, crticas ou edies, rees-critores adaptam, manipulam at um certo ponto os originais com os quais eles trabalham, normalmente para adequ-los corrente, ou a uma das cor-
rentes ideolgica ou poetolgica dominante de sua poca.2
Ou ainda, de maneira mais detalhada:
Dois fatores determinam basicamente a imagem de uma obra literria tal como ela projetada por uma traduo. Esses dois fatores so, na ordem de importncia, a ideologia do tradutor (aceita livremente ou imposta como uma restrio por alguma forma de mecenato) e a potica dominante na lite-ratura recebedora no momento em que a traduo feita. A ideologia dita a estratgica bsica que o tradutor usar e, portanto, tambm as solues de problemas relacionados tanto ao universo do discurso expresso no original (objetos, preocupaes, hbitos pertencentes ao mundo que era familiar ao escritor do original) e lngua em que o prprio original expresso.
3
Partindo disso, Lefevere explica, por exemplo, expurgos realizados em pas-
sagens consideradas moralmente inadequadas e mudanas estruturais, como a a-
dequao de um poema a um verso cannico da tradio literria que recebe a obra
traduzida. Mais importante que pensarmos aqui quais as influncias de uma potica
ou de uma ideologia durante o processo de traduo perceber que, para o autor, a
traduo possui um carter manipulativo que acaba determinando algumas diferen-
as entre o original e a traduo.4
Em resumo, dentre a variedade de fatores que influenciam uma traduo, a
postura de um tradutor frente a uma determinada potica, ideologia, a uma tradio
de recepo ou mesmo de traduo pode fazer com que se obtenham diferentes
resultados com o texto traduzido, que pode estar condicionado, ainda, a um projeto
de traduo. Como essa noo nos ser cara durante esta introduo sendo, por-
tanto, importante para a concepo deste trabalho , preciso que a apresentemos
2 LEFEVERE, 2007, p. 23.
3 Ibidem, p. 73.
4 Ambas as refloxes ora evocadas, como no poderia deixar de ser, possuem diversas implicaes
tanto para a concepo da natureza da traduo e do texto traduzido como para a concepo do prprio ato de traduzir. Dados os objetivos do nosso trabalho e, principalmente, os objetivos pelos quais as evocamos aqui noticiar duas das diferentes formas pelas quais as instncias atuantes na atividade do tradutor podem ser determinadas e analasidas , no vamos nos ater sobre suas impli-caes nem sobre seus pressupostos ou especificidades.
Introduo 3
tal qual a consideramos: a partir das noes de traduo e de projeto de traduo
defendidas por Antoine Berman em seu Pour Critique des Traductions: John Donne5.
Nesse livro, o crtico e terico francs busca propor uma forma de anlise de
tradues para a crtica6 que no deixe de lado as principais caractersticas do texto
traduzido; que seja, pois, especfica traduo. Para chegarmos a essa especifici-
dade, importante levarmos em conta que, para Berman, a atividade crtica e a tra-
duo partilham uma natureza crtica, elas so estruturalmente similares.7 Sendo
assim, se a traduo tambm um processo crtico, a crtica de traduo , ento,
a crtica de um texto que, por si mesmo, resulta de um trabalho de ordem crtica8.
H, na execuo do processo tradutrio, um movimento crtico constituinte desse
processo, realizado pelo tradutor. A crtica de traduo no poderia, ento, deixar
escapar sua anlise esse movimento crtico.
Para propor essa crtica especfica, Berman acaba filiando-se quilo que
chama de crtica moderna, levada a cabo por diversos nomes importantes da filoso-
fia e da crtica e teoria literrias aps os trabalhos do seu pai fundador, Friedrich
Schlegel9. De acordo com Mauricio Cardozo, ao partir da natureza crtica do proces-
so tradutrio e ao filiar-se crtica moderna, Berman quer filiar-se a uma tradio a
partir da qual seja possvel diferenciar sua proposta de uma crtica que seja sim-
plesmente judiciativa:
[...] ao reconhecer a natureza crtica da prtica tradutria, Berman aponta para a necessidade de transcenderem-se os limites do simples cotejo e da crtica meramente impressionista e meramente judiciativa. Desse modo, o terico francs estabelece um novo espao de ao para a crtica de tradu-o, entendendo essa prtica no sentido schlegeliano de uma crtica produ-
5 BERMAN, 1995.
6 De acordo com Berman: por forma de anlise de traduo, eu entendo uma estrutura discursiva sui
generis, adequada sua finalidade (a comparao de um original com sua traduo ou suas tradu-es), suficientemente individual para que se distinga de outros gneros de anlise. Entendo tambm como uma forma que se reflete, que tematiza sua especificidade e, portando, produz a sua metodolo-gia; uma forma que no s produz sua metodologia, mas que procura fundament-la em uma teoria explcita da linguagem, do texto e da traduo (BERMAN, 1995, p. 45).
7 ibid., p. 40.
8 ibid., p. 41. Todas as tradues, exceto as indicadas nas referncias, so de nossa autoria.
9 ibid., p. 13. Dentre os nomes listados por Berman, encontram-se: Ezra Pound, Maurice Blanchot,
Roland Barthes, Grard Genette, Octavio Paz, Jorge Luis Borges, Hans Robert Jauss, Jakobson e Ungaretti.
Introduo 4
tiva, mais preocupada em discutir o significado dos movimentos crticos im-plicados na traduo e, com isso, por exemplo, apontar possveis cami-nhos crticos ainda inexplorados pelas tradues, realimentando a prpria dinmica de produo de futuras tradues , do que restringir-se mera-mente ao jogo de flagrar diferenas pontuais entre traduo e original.
10
Levar em conta o aspecto crtico da traduo no somente possibilita a prti-
ca crtica em um novo espao, mas tambm e mesmo por isso conduz a uma
nova proposta crtica. O esforo de Berman, portanto, ser justamente o de desen-
volver uma forma de anlise que inclua, em seu escopo, uma das caractersticas
mais marcantes do processo de traduo. Para o autor:
[...] crtica quer dizer anlise rigorosa de uma traduo, de seus traos fun-damentais, do projeto do qual ela nasceu, do horizonte de onde ela surgiu, da posio do tradutor.
11
Nessa anlise rigorosa, projeto, horizonte e posio do tradutor so os ele-
mentos que determinam o aspecto crtico inerente ao traduzir. Quando pensa em
projeto de traduo, porm, Berman no tem em mente um conjunto de preceitos
anteriores ao traduzir que sirvam como manual para a prtica da traduo, ou, nas
palavras de Cardozo, no tem em mente [...] uma relao linear e ideal, de causa e
efeito, entre uma etapa anterior de projeto e sua consequente realizao, a tradu-
o.12 Um projeto de traduo , antes e fundamentalmente, uma diretriz crtica13:
O projeto define a maneira pela qual, por um lado, o tradutor vai realizar a traduo literria e, por outro lado, assumir a prpria traduo, escolher um modo de traduo, uma maneira de traduzir.
14
essa, pois, a noo de projeto de traduo que Berman emprega em sua
proposta crtica e, no seria exagero dizer, em torno da qual a estrutura. Pensar
uma traduo a partir do seu projeto , ento, pens-la a partir de sua natureza crti-
ca e com vistas a essa crtica sua anlise e, principalmente, anlise daquilo
que ela constri. Essas no so, pois, as nicas noes que nos chamam a ateno
10
CARDOZO, 2009, p. 105.
11 BERMAN, 1995, p. 13.
12 CARDOZO, op. cit.. p. 108.
13 ibid., p. 108.
14 BERMAN, 1995, p. 76.
Introduo 5
em Berman. Alm dessas, podemos considerar ainda a questo da produtividade de
sua crtica.
A ideia de crtica produtiva na qual Berman se embasa e que parece definir
um sentido tico para a sua proposta15 emprestada de Friedrich Schlegel e defini-
da em A Prova do Estrangeiro16 como sendo:
Uma crtica que no seria tanto o comentrio de uma literatura j existente, acabada e murcha, mas o rganon de uma literatura ainda a ser terminada, formada e at mesmo comeada. Um rganon da literatura, portanto uma crtica que no seria somente explicativa e conservadora, mas que seria ela mesma produtiva, pelo menos indiretamente.
17
Assim como na literatura, a crtica produtiva aplicada traduo tem por obje-
tivo ser o rganon de uma produo por vir: Enquanto possibilidade de crtica liter-
ria, a crtica produtiva tem em vista a fomentao da literatura futura; enquanto pos-
sibilidade de crtica de traduo, tem em vista o estabelecimento de um espao pos-
svel para a prtica tradutria.18 De maneira mais especfica, podemos dizer que,
para Berman, a crtica produtiva aplicada traduo tem em vista a concesso e a
articulao de princpios para a retraduo das obras e, como consequncia, para o
estabelecimento de novos projetos de traduo de novas diretrizes crticas.
justamente a partir das noes de projeto de traduo e de crtica produtiva
presentes em Berman que vamos organizar a apresentao de nossa proposta de
traduo. No podemos dizer, porm, que estamos tomando as reflexes bermania-
nas como princpio fundamental para o desenvolvimento do exerccio crtico que a-
qui realizaremos. Mais do que uma aplicao exata e escrupulosa da proposta, o
que levaremos a cabo aqui um movimento crtico de inspirao bermaniana, posto
que nossa traduo surge e se justifica a partir da constatao de uma certa tradio
de traduo da Comdia Latina no Brasil. necessrio dizer, pois, que nosso traba-
lho especfico tratamos aqui de um dos textos da Comdia Latina. Nossa contri-
buio diz respeito especificamente ao Amphitruo plautino, mas, com isso, e princi-
15
CARDOZO, 2004, p.90.
16 BERMAN, 2002.
17 SCHLEGEL apud BERMAN, 2002, p. 219.
18 BERMAN, 1995, p. 97.
Introduo 6
palmente por meio da forma pela qual a desenvolvemos e a ela chegamos, diz res-
peito Comdia Latina e forma pela qual ela vem sendo apresentada aos leitores
brasileiros via traduo. Diz respeito a essa tradio na medida em que parte dela
pra se estabelecer e na medida em que, ao se estabelecer, a ela reage. uma al-
ternativa.
Nossa proposta de traduo, pioneira, surgiu em um lance de oportunismo,
com o intuito de, no mnimo, chamar a ateno para um espao muito parcamente
explorado, ao menos no Brasil, ao menos contemporaneamente. Ainda que uma
proposta indita, no quer, como se poderia supor, preencher, contenta-se em apon-
tar; no quer ser paradigma, apenas iniciar. Incitar. Buscamos chamar a ateno e
comprovar a possibilidade de tradues polimtricas da comdia latina para o portu-
gus. Da forma pela qual nos guiamos, podemos dizer que a proposta , ainda, uma
resposta que surge de uma no pergunta, da aparente falta da questo ou ao menos
da sua no enunciao.
De todas as tradues da Comdia Latina publicadas em portugus das quais
tivemos notcia19, cinco delas foram feitas em verso: a traduo em decasslabos da
Aulularia de Plauto realizada pelo Baro de Paranapiacaba (Cardoso de Menezes) e
publicada em 188820, e as tradues de quatro peas de Terncio (Andria, Eunuco,
Heautontimorumenom e Adelfos)21, tambm em decasslabos, realizadas por Leonel
da Costa Lusitano (1570 1647) e publicadas no sc. XVIII. Embora a importncia
que a mtrica possui tanto para a caracterizao do texto plautino como para a ca-
racterizao da prpria tradio da Comdia em Roma seja ponto j destacado pela
crtica, esse trao composicional no foi ainda, no Brasil, trabalhado pelas tradues
19
Em seu Repertrio de Lngua e Literatura Latina (TUFFANI, 2006, p. 180-181, 199), Eduardo Tuffani lista as tradues de Plauto e de Terncio publicadas no Brasil entre os anos de 1830 e 1996: so 18 as tradues de Plauto, abarcando 10 de suas 21 peas, e 7 as de Terncio, abarcando 5 de suas 6 peas. Merecem destaque tambm as tradues desses autores efetuadas nos ltimos anos dentro das Universidades brasileiras como partes integrantes de Dissertaes e Teses, como o Estico, em traduo de Isabella Tardin Cardoso (CARDOSO, 2006) publicada pela editora da UNICAMP , o Anfitrio, em traduo de Llian Nunes da Costa (COSTA, 2010), o Mercador, em traduo de Damares Barbosa Correia (CORREIA, 2007), o Eunuco, de Terncio, em traduo de Nahim Santos Carvalho Silva (CARVALHO SILVA, 2009), e a Casina, em traduo de Carol Martins da Rocha (ROCHA, 2010), entre outras.
20 PLAUTO, 1888.
21 TERNCIO, 1945.
Introduo 7
o que comumente encontramos, muitas vezes em notas, so algumas referncias
e explicaes sobre os tipos de metro em que diferentes passagens do texto original
foram compostas.
Se considerarmos que as tradues da Comdia levadas a cabo nas Acade-
mias brasileiras geralmente tm como justificativa e objetivos a divulgao da obra
traduzida e a manuteno dos seus traos caractersticos o que no deixamos de
partilhar com elas , podemos concluir que, se h caractersticas relevantes para o
texto original e para a tradio literria qual ele pertence ainda no trabalhadas por
suas tradues, h a uma possibilidade de explorao. No nosso caso, essa possi-
bilidade de explorao, uma espcie de demanda latente, surge, importante que
se ressalte, de um contraste entre a importncia conferida mtrica pela recepo
crtica da Comdia Latina o que retomaremos no correr deste trabalho e certo,
pode-se dizer, descaso22 de nossa tradio de traduo desses textos.23
Mesmo uma traduo como a realizada pelo Baro de Paranapiacaba, que
mantm, tal como o original latino, a caracterstica de ser escrita em versos e que
pode ser potica em diferentes nveis e de diferentes formas , acaba limitando a
possibilidade de experincia do funcionamento da mtrica tal como ela pode ser ex-
perienciada por meio do texto latino. Porque reduz toda a complexidade da estrutura
22
No queremos, com isso, em hiptese alguma, imputar qualquer falta de qualidade s tradues brasileiras da Comdia Latina. Para qualquer julgamento desse tipo, seria necessrio um movimento crtico criterioso e extenso, o que no prevemos nesta dissertao. A ideia aqui simplesmente chamar a ateno para a demanda latente criada por meio desse contraste e, entendendo que essa demanda se constitui como um espao de atuao para um movimento de traduo diferente daquele no qual a tradio vem trabalhando, a partir dela desenvolver nossa proposta.
23 Ao contrrio da Comdia Latina, que ainda no possui uma tradio de tradues poticas em
portugus, a Tragdia e a pica tanto grega como latina tiveram uma sorte diferente, contando com uma gama razovel de tradues para o portugus pautadas por questes poticas. Vale a pena, ento, enumerarmos alguns dos tradutores que se empenharam nessa tarefa, como: Trajano Vieira, com suas tradues de Sfocles Filoctetes (2009) e Medeia (2010); J. A. A. Torrano e suas tradues de squilo Prometeu Prisioneiro (1985), Agammnon, Coforas e Eumnides (2004) e de Eurpedes Medeia (1997) e Bacas, o mito de Dionsio (1995); Fernando Brando, com sua Filoctetes de Sfocles (2008); Jos Eduardo Lohner, com seu Agammnon, de Sneca (2009); sem esquecer das tradues de tragdias e comdias de Mrio da Gama Kury e das diferentes tradues da pica Clssica que temos disponveis em nossa lngua: a Odisseia, em tradues de Trajano Vieira (2011), Odorico Mendes (publicada em 1928) e Carlos Alberto Nunes (segunda metade do sc. XX); a Ilada, em tradues de Odorico Mendes (tambm publicada postumamente, em 1874), Carlos Alberto Nunes (1962) e de Haroldo de Campos (2003); a Eneida, em traduo de Odorico Mendes (1854), Carlos Alberto Nunes (1981) e Mrcio Thamos (apenas o canto I, publicada em 2012); a Farslia, de Lucano, em traduo de Brunno V. G. Vieira (cantos I V, publicada em 2011); e a tra-duo da Argonutica, de Apolnio de Rodes, de Vinicius Ferreira Barth (em desenvolvimento).
Introduo 8
mtrica utilizada por Plauto a um nico tipo de verso, uma traduo nesse molde
acaba reduzindo a possibilidade de conhecer a polimetria plautina e sua ntima rela-
o com a estrutura do texto salvo com a mediao de um aparato crtico, por e-
xemplo. Embora no possamos dizer quais eram os objetivos de sua traduo, nem
quais eram seus pressupostos24, o fato que, enquanto proposta potica para a pal-
liata25, a traduo de Cardozo de Menezes reduz uma das principais caractersticas
do gnero o que no significa, porm, que possa ser previamente considerada de
maneira negativa.
No acreditamos, pois, que uma traduo em versos possa ser suficiente pa-
ra chamar a ateno para essa caracterstica dos textos de Plauto e mesmo da
Comdia Latina como um todo. O objetivo que aqui traamos levar a cabo uma
traduo potica da pea de Plauto, no uma traduo em versos. Confundir tradu-
o potica com traduo em versos no deixa de ser confundir poesia com verso.
Conforme nos alerta Henri Meschonnic26, traduzir versos em versos certamente sig-
nifica fazer versos, mas no significa necessariamente fazer poesia; muito distante
de garantirem o potico, os versos so apenas uma das possveis formas de cri-lo.
O que os torna poesia no uma estrutura mtrica fixa, regular ou livre; versos tor-
nam-se poesia quando so valor de discurso, quando fazem parte da potica de um
texto, quando integram seu ritmo conforme veremos acontecer nos textos da co-
moedia palliata. Sendo assim, o que fazemos aqui uma proposta de traduo que,
embora no se reduza a isso, seja capaz de demonstrar e possibilitar, ao leitor, a
experincia do funcionamento da mtrica no ritmo do texto de maneira mais prxima
possvel quela que pode ser experienciada pela leitura do texto latino.
Nossa traduo, o objetivo geral deste trabalho, vir precedida por uma refle-
xo e um estudo que nada mais so que um projeto de traduo como j disse-
24
Nosso acesso do texto foi limitado a reprodues fotogrficas de algumas partes da pea.
25 Embora o termo Comdia Latina seja comumente utilizado em referncia a Plauto e seus
contemporneos, as peas por eles escritas so um tipo especfico de comdia, conhecida como comoedia palliata. Escrita a partir da traduo de comdias gregas, a palliata (referncia ao plio, a veste tpica dos gregos) recebeu esse nome por manter a caracterizao, a ambientao, as referncias geogrficas, sociais, culturais e histricas gregas. No correr do trabalho (III.2, especificamente), abordaremos as questes genricas da palliata e sua relao com a Comdia Grega de maneira mais detalhada.
26 MESCHONNIC, 2010, p. 125.
Introduo 9
mos, de inspirao bermaniana. As pginas que antecedem a traduo compem,
assim, uma grande Nota do Tradutor em que explicaremos os pontos que nos leva-
ram a considerar a traduo para o Amphitruo. Essa Nota foi separada em sees
organizadas de uma maneira a encadear as reflexes a partir da potica do traduzir
do francs Henri Meschonnic at, por fim, o projeto a partir do qual levamos a cabo
nosso Anfitrio. Organizada dessa forma, a Nota apresentar primeiro a potica do
traduzir de Meschonnic. Em seguida, vamos considerar algumas reflexes sobre a
poesia e o potico, pois, se nos propomos a uma traduo baseados em uma visada
da palliata como poesia, devemos deixar claro aquilo que queremos dizer com isso.
Nas duas sees sequentes, vamos nos ocupar da potica do texto latino,
considerando a palliata desde seu surgimento at seu estabelecimento para, depois,
pensarmos o Amphitruo dentro desse gnero, tratando-o como uma manifestao
particular de traos gerais, buscando levantar, especificamente, como a mtrica atua
dentro da sua potica. Encerraremos a Nota com uma seo especfica na qual a
proposta que desenvolvemos ser apresentada de modo que as escolhas fiquem
claras e que possam ser justificadas ante todo o repertrio crtico pelo qual teremos
passado nas sees precedentes. Por fim, a traduo figurar em seo separada,
servindo no necessariamente como concluso, mas, talvez, como corolrio. Nos
anexos, constar a edio a partir da qual trabalhamos.
O estudo que apresentaremos e no qual fundamentamos a traduo no se
constitui, isso fato, como uma investigao de algum trao da comoedia palliata
com vistas a esclarec-lo ou critic-lo, ou como uma busca por alguma caracterstica
nova do gnero ou do texto especfico. Como veremos, no h novidades sobre a
Comdia Latina propostas neste trabalho. O apanhado crtico que realizamos diz
respeito, antes, a uma reviso da crtica com o objetivo de relacionar os principais
pontos por ela destacados de forma a explicitar a importncia rtmica que a mtrica
possui na palliata. Ao se pensar no texto especfico, porm, pode-se dizer que va-
mos apresentar algo novo, visto que, at hoje e at onde pudemos observar, as es-
truturas mtricas do Amphitruo ainda no foram consideradas a partir do seu papel
na potica do texto.
Podemos dizer ento que, em linhas gerais, buscamos desenvolver e realizar
um projeto de traduo para o texto plautino fundamentando-o em um estudo no
qual se destaquem tanto o aspecto composicional que a mtrica assume quando a
Introduo 10
Comdia Grega traduzida ao latim como o funcionamento dessas estruturas dentro
do Amphitruo, partindo da hiptese de que nessa pea, tal como em outras aponta-
das pela crtica27, tais estruturas podem ser vistas como ferramentas dramticas uti-
lizadas por Plauto.
Isso dito, passemos ento Nota do Tradutor.
27
Cf. especialmente MOORE, 1998a; MARSHALL, 2006.
Traduzir a Poesia 11
Nota do Tradutor
I Traduzir a poesia
A proposta de traduo aqui apresentada para a pea plautina , conforme j
dissemos, a de uma traduo potica. Em que sentido, porm, estamos consideran-
do o adjetivo potico quando o empregamos junto traduo? Em se tratando
disso, dada a relevncia que as consideraes de Haroldo de Campos possuem no
cenrio literrio nacional, e mesmo no que diz respeito aos Estudos da Traduo em
nosso pas, consider-las aqui se impe como um imperativo. Assim sendo, comea-
remos nossa exposio por aquilo que o poeta e tradutor nos revela sobre a nature-
za do texto potico e sobre a natureza da sua traduo.28
Naquele que talvez seja o seu principal ensaio sobre o assunto, o famoso Da
traduo como criao e como crtica29, H. de Campos nos fornece as bases do seu
pensamento. Partindo de Max Bense e de sua distino entre informao documen-
tria, informao semntica e informao esttica distino apresentada pelo pr-
prio autor , H. de Campos entende que o texto criativo termo que utiliza para fugir
das complicaes causadas pela categorizao poesia e prosa o tipo de produ-
o textual em que prevalece a informao esttica. Enquanto a informao docu-
mentria algo que reproduz um fato observvel, um dado emprico, e a informao
semntica se resume, por exemplo, veracidade ou falsidade da informao docu-
mental, a informao esttica est relacionada configurao que um artista atribui
28
preciso ressaltarmos aqui que o pensamento haroldiano sobre a traduo, sobre a poesia e sobre a traduo de poesia constri-se como um sistema complexo durante os mais de 50 anos de sua atuao crtica, terica e prtica. Nossa abordagem, dada a proposta com a qual feita, se restringe a apenas dois textos seus: Da traduo como criao e como crtica originalmente concebido em 1962 para ser apresentado durante o III Congresso Brasileiro de Crtica e Histria Literria e publicado pela primeira vez em 1963 e Traduo e reconfigurao do imaginrio: o tradutor como transfingidor publicado em 1987 com o ttulo Da traduo transfixionalidade e em 1989 com o ttulo Reflexes sobre a potica da traduo. Nesse sentido, o que concluirmos a respeito desses dois textos no deve ser generalizado ao pensamento de H. de Campos, processo que demandaria um trabalho crtico de muito mais flego do que o que realizamos aqui.
29 CAMPOS, 2011a.
Traduzir a Poesia 12
a um sistema de signos.30 Condicionada por essa configurao especfica, ela seria,
ento, extremamente frgil do ponto de vista de sua unidade:
Enquanto a informao documentria e tambm a semntica admitem di-versas codificaes, podem ser transmitidas de vrias maneiras [...] a infor-mao esttica no pode ser codificada seno pela forma em que foi trans-mitida pelo artista (Bense fala aqui da impossibilidade de uma codificao esttica; seria talvez mais exato dizer que a informao esttica igual sua codificao original).
31
Se o texto criativo caracterizado por essa informao esttica nica, idntica
codificao original, a traduo de um texto criativo, que altera em diferentes n-
veis aquela codificao original, pode ento ser vista como uma tarefa impossvel.
Para o autor, porm:
Admitida a tese da impossibilidade em princpio da traduo de textos criati-vos, parece-nos que esta engendra o corolrio da possibilidade, tambm em princpio, da recriao desses textos. Teremos, como quer Bense, em outra lngua, uma outra informao esttica, autnoma, mas ambas estaro liga-das entre si por uma relao de isomorfia: sero diferentes enquanto lin-guagem, mas, como corpos isomorfos, cristalizar-se-o dentro de um mes-mo sistema.
32
A traduo de textos criativos se d, portanto, de acordo com uma lgica da
recriao da forma; o que garante a traduo potica no a repetio da informa-
o esttica original, fato a princpio impossvel, mas a recriao de uma forma, de
uma linguagem dentro de um sistema o texto criativo. Se a informao esttica
resultado de um processo de criao realizado pelo artista, de uma forma, uma lin-
guagem, ento a sua traduo a recriao desse processo de criao:
A traduo de poesia (ou prosa que a ela equivalha em problematicidade) antes de tudo uma vivncia interior do mundo e da tcnica do traduzido. Como que se desmonta e se remonta a mquina da criao, aquela fragli-ma beleza aparentemente intangvel que nos oferece o produto acabado numa lngua estranha. E que, no entanto, se revela suscetvel de uma vivis-seco implacvel, que lhe revolve as entranhas, para traz-la novamente luz num corpo lingustico diverso.
33
30
ibid., p. 32.
31 ibid., p. 32.
32 ibid., p. 32.
33 ibid., p. 42.
Traduzir a Poesia 13
Traduzir a poesia , portanto, recriar a poesia, sua tcnica. traduzir a sua
configurao, sua esttica, [...] um tipo de metalinguagem cujo valor real s se po-
de aferir em relao linguagem-objeto (o poema, o texto criativo enfim) sobre o
qual discorre34; traduzir o signo: numa traduo dessa natureza, no se traduz
apenas o significado, traduz-se o prprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materi-
alidade mesma35. Da a tarefa de recriao, ou de criao paralela e simultnea,
que H. de Campos atribui traduo de poesia e de textos criativos em geral.
Muito daquilo que Haroldo de Campos diz sobre a traduo est condicionado
s reflexes de Walter Benjamin e de Roman Jakobson, como o prprio autor deixa
claro em outro de seus ensaios posteriores sobre o tema36. Segundo ele, a articula-
o entre as ideias de Benjamin apresentadas em seu A Tarefa do Tradutor37 e
aquelas de Roman Jakobson apresentadas em seu Aspectos Lingusticos da Tra-
duo38 teve sempre o objetivo de encontrar uma fsica para a metafsica benjami-
niana da traduo. Utilizando-se do conceito jakobsoniano de funo potica, [...]
aquela funo que promove a autorreferencialidade, a palpabilidade, a materiali-
dade dos signos lingusticos39, H. de Campos acaba aprofundando suas noes
sobre traduo apresentadas no ensaio anterior, aproximando-as cada vez mais dos
preceitos do estruturalismo lingustico. Nesse movimento, se, na ontoteologia caba-
lstica benjaminiana, a arte consiste em liber-la da linguagem e reconduzi-la con-
dio pr-admica, ela opera justamente por meio da autorreferencialidade que a
linguagem assume mediante a predominncia da funo potica.
Pensar nessa autonomia da linguagem na arte faz com que H. de Campos
aprofunde ainda mais a noo de configurao sgnica que caracteriza a informao
potica a que se referia no ensaio anterior. Se no texto criativo a linguagem signo
concreto, significante e significado, ento deve-se pensar o texto criativo a partir
das formas significantes que existem no intracdigo que a linguagem a configura. O
34
ibid., p. 45.
35 ibid., p. 34.
36 id., 2011b.
37 BENJAMIN in HEIDERMANN (org.), op. cit., p. 203 229.
38 JAKOBSON, 2007, p. 63 72.
39 CAMPOS, 2011b, p. 48.
Traduzir a Poesia 14
mais relevante, portanto, no sua referencialidade ao emprico nem o status dessa
referencialidade, mas sim o cdigo no qual ela se transforma e as formas significan-
tes desse cdigo. E ser justamente sobre esse intracdigo e essas formas signifi-
cantes que a traduo vai trabalhar:
A traduo opera, portanto, graas a uma deslocao reconfiguradora, a projetada reconvergncia das divergncias, ao extraditar o intracdigo de uma para outra lngua, como se na perseguio harmonizadora de um mesmo telos.
40
A traduo potica de H. de Campos diz respeito, ento, a uma recriao do
intracdigo de um texto, identificao de suas formas significantes caractersticas
e sua extradio para outra lngua. Conforme veremos, embora com terminologia
diferente, essas reflexes em muito se assemelham s de Henri Meschonnic, que
ora elegemos para levar adiante nossa proposta de traduo.41 Se, porm, podemos
identificar um padro comum entre as duas, justamente por sua diferena termino-
lgica que escolhemos a potica do traduzir de Meschonnic, ou, melhor ainda, a es-
colhemos pela diferena entre os pressupostos tericos que condicionam suas ter-
minologias.
Por mais que H. de Campos pense a traduo a partir de uma noo de texto
criativo que o toma a partir de suas caractersticas estticas, a partir da configurao
da linguagem, o que caracteriza o seu aspecto criativo literrio, poderamos pensar
, o fato de seu pensamento ser condicionado por uma lingustica fundamentada na
noo dualista de signo acaba trazendo algumas consequncias para o pensamento
da traduo que, conforme acreditamos, podem ser prejudiciais para o seu entendi-
40
ibid., p. 48.
41 Neste trabalho, vamos considerar as reflexes de Meschonnic sobre a potica do traduzir tal como
elas se encontram em seu Potica do Traduzir (MESCHONNIC, 2010). Esse livro , pode-se dizer, uma espcie de compilao e desenvolvimento de ideias e conceitos presentes em toda a obra sobre a traduo e o traduzir realizada por Meschonnic. O prprio autor, na introduo, alerta para esse fato, remetendo o leitor para as obras de prtica de traduo Os cinco rolos (1970) e Jonas e o significado errante (1981) a partir das quais suas reflexes sobre o tema comearam a ser desen-volvidas especialemente as encontradas em Para a potica II (1973) e Para a potica V (1978). Nesse sentido, ainda de acordo com Meschonnic, este livro s pode ser pensado como um trabalho de conjunto, que vai de Para a potica Crtica do ritmo [1982], Poltica do ritmo, poltica do su-jeito [1995] e Da lngua francesa [1997] (2010, p. xviii). Por se tratar, portanto, da retomada, do desenvolvimento e do aprofundamento de muitas das suas ideias e de seus conceitos, utilizamos, em diferentes momentos e sempre no intuito de auxiliar nossa compreenso, outros textos tanto do autor como de sua recepo crtica.
Traduzir a Poesia 15
mento. Por mais que o texto criativo seja signo e no significante, por mais que o
que se traduz seja o signo e no o significado, ele ainda o resultado da soma de
duas partes distintas, um significante e um significado. Pensar um texto como signo
no exclui, por exemplo, que uma traduo possa ser julgada a partir da sua preci-
so lexical42 a essa palavra em lngua estrangeira deve corresponder essa palavra
na lngua da traduo ou a partir da no traduo de um contedo semntico no
essencial ao texto criativo, ou mesmo da alterao de um contedo semntico. Pen-
sar a traduo de textos criativos dessa forma seria, de acordo com Meschonnic,
pensar como lngua a traduo do que , na verdade, discurso. Para que a traduo
de um texto literrio possa ento ser pensada a partir da natureza discursiva do tex-
to, Meschonnic prope a sua potica do traduzir.43
A defesa de uma potica por Meschonnic surge, segundo o prprio autor44,
por trs razes: em primeiro lugar, potica implica diretamente a literatura. Em vez
de isolar a literatura de seu objeto de estudo, como o fazem as teorias lingusticas
tradicionais, a potica a inclui em seu escopo. Em segundo lugar, ela permite que se
distinga aquilo que problema filolgico (da lngua) daquilo que problema potico
(do discurso), e no inclui apenas a literatura em seu escopo, mas inclui tambm a
traduo. Por fim, por se configurar como uma teoria crtica, a potica provoca uma
mudana epistemolgica: ela crtica das teorias lingusticas modernas, contrria ao
cientificismo estruturalista-semitico da teoria do signo e do seu paradigma dualista
no somente lingustico, mas tambm filosfico, social, poltico e teolgico.45 crti-
ca porque se ope s dualidades e s dicotomias estruturalistas pautando-se por
uma teoria da linguagem que inclui a histria, o sujeito e a sociedade, a literatura e a
traduo.46
42
O interessante que o prprio H. de Campos cai nessa armadilha ao ratificar a opinio de que Pound, s vezes, [...] trai a letra do original (id., 2011a, p. 36).
43 Neste momento, a tese de doutorado de Mrcia Aguiar (2010) Traduzir muito perigoso. As
duas verses francesas de Grande Sero: veredas historicidade e ritmo e o artigo "Signo, Sujeito e Traduo", de Mrcia Pietroluongo (2009), nos sero de grande valia.
44 MESCHONNIC, op. cit., p. 03 04.
45 ibid., p. 04 05.
46 De acordo com Mrcia Pietroluongo (2009, p. 04): Ao tomar de emprstimo a Saussure a
expresso teoria da linguagem, Meschonnic insiste sobre a necessidade de uma reflexo sempre em movimento sobre as concepes e prticas da linguagem nas diversas prticas sociais. Contra o
Traduzir a Poesia 16
A grande questo para Meschonnic em relao s teorias lingusticas tradi-
cionais est no tipo de abordagem que elas propem quando se dedicam a tratar do
texto, da literatura ou da traduo do discurso, de um modo geral. Em vez de inclu-
-las como manifestaes empricas da linguagem, essas teorias lingusticas as iso-
lam do seu saber, e, quando a elas se dedicam, so incapazes de reconhecer sua
natureza mltipla, lanando sobre elas o olhar dualista da teoria do signo, tratando-
as, portanto, como lngua. Para Meschonnic, porm, texto, literatura e traduo
pem a linguagem em jogo no como lngua, mas como discurso, e somente uma
potica liberta da dualidade do signo capaz de trat-las como tal. Para dar conta
dessa multiplicidade, ento, a potica no pode se apoiar em uma teoria do signo,
lanando mo, para isso, de uma teoria do discurso.
Conforme destaca Aguiar, do ponto de vista filolgico aquele da lngua , o
discurso uma realizao secundria, visto que a lngua pr-existe a ele e ao sujeito
que o constri, esse um mero arranjador de signos. Dessa concepo, por exemplo,
deriva a estilstica, que toma como estilo de um autor a maneira pela qual ele dispe
os elementos da lngua:
Na teoria do signo, a lngua primeira, e o discurso, segundo. No pode ser diferente. O discurso , nela, um uso dos signos, uma escolha, uma srie de escolhas no sistema dos signos pr-existente. Com relao lngua, o su-jeito falante no pode ser mais que uma definio gramatical: a que forne-cida por essa escolha. Da o estilo e a estilstica.
47
Para a teoria do discurso, porm, a lngua inexiste sem ele, pois no discurso
que ela se forma atravs da ao do sujeito que o cria. Nas palavras de Meschonnic:
o discurso no o emprego de signos, mas a atividade dos sujeitos no interior e
contra uma histria, uma cultura, uma lngua.48 Resultado da inscrio do sujeito na
linguagem, ento, o discurso supe o sujeito, inscrito prosdica e ritmicamente na
linguagem, sua oralidade, sua fsica.49 Uma das consequncias que surgem disso
sentido das palavras, fundado na representao dominante do signo, e pelo sentido da linguagem, expresso que Meschonnic desta vez retoma de Humboldt, o linguista pe em evidncia as relaes entre lngua e discurso, lngua e literatura, entre lngua e pensamento, lngua e sociedade, entre a lngua e a tica, a potica e a poltica.
47 id., 1982, p. 70 apud AGUIAR, 2010, p. 120.
48 MESCHONNIC, 1982, p. 71 apud AGUIAR, 2010, p. 120.
49 MESCHONNIC, 2010, p. 16.
Traduzir a Poesia 17
diz respeito ao funcionamento do sentido no interior do discurso. De acordo com A-
guiar:
Na teoria do discurso, a lngua no uma entidade anterior e exterior ao su-jeito e ao seu discurso; ao contrrio, o sujeito que, ao produzir o discurso, gera sentido e cria, simultaneamente, a lngua. O sentido, ao ser gerado por um sujeito, no pode mais ser separado do mundo especfico que foi en-gendrado. Rompe-se, assim, a ideia de dois nveis distintos, contedo e forma, significante e significado, sujeito e coisa; o sentido a atividade do sujeito na linguagem.
50
O sentido no mais a organizao de um escopo de palavras e possibilida-
des sintticas, semnticas e morfolgicas pr-existentes ao discurso, ele constru-
do junto com o discurso, o resultado da ao do sujeito sobre a linguagem, sua
prpria atividade no interior da linguagem. a subjetivao do sujeito na linguagem:
Se o discurso a atividade, como dizia Humboldt, de um homem em vias de falar [...] implicando, como Benveniste foi o primeiro a reconhecer e anali-sar, a inscrio gramatical daquele que diz eu em seu discurso, esta enun-ciao no saberia se limitar a ser lgica ou ideolgica. Ela carrega consigo uma atividade do sujeito que, de sujeito da enunciao, pode tornar-se uma subjetivao do contnuo no contnuo do discurso, rtmico e prosdico.
O sentido do discurso o resultado do sujeito na linguagem. O sujeito no or-
ganiza o sentido, ele o constri ao transformar, no discurso, a linguagem em lngua.
O sentido uma questo de oralidade. Assim como nas teorias da lngua a oralidade
pode ser entendida como a forma dada lngua pelo sujeito que fala, na teoria do
discurso de Meschonnic, a oralidade tambm diz respeito a essa forma: atravs
dela que o discurso se concretiza. Para Meschonnic:
A oposio entre o oral e o escrito confunde o oral com o falado. Passar da dualidade oral/escrito para uma partio tripla entre o escrito, o falado e o oral permite reconhecer o oral como um primado do ritmo e da prosdia, com sua semntica prpria, organizao subjetiva e cultural de um discurso, que pode se realizar tanto no escrito como no falado. H oralidade em Ra-belais e em Joyce. A entonao um modo da oralidade do falado. A imita-o do falado no escrito distinta do oral. A historicidade da pontuao dos textos uma questo da oralidade.
51
Assim sendo:
50
AGUIAR, 2010, p. 120.
51 MESCHONNIC, 2006, p. 08.
Traduzir a Poesia 18
Torna-se, ento, no somente possvel, mas necessrio, conceber a orali-dade no mais como a ausncia de escrita e a nica passagem da boca orelha, outrora inferiorizada, hoje valorizada-psicanalisada por alguns como a pulso libertadora, que permanece no dualismo como a blasfmia perma-nece na religio. No, mas como uma organizao do discurso regida pelo ritmo. A manifestao de um gestual, de uma corporeidade e de uma subje-tividade na linguagem. Com os recursos do falado no falado. Com os recur-sos do escrito no escrito.
52
Por meio da oralidade, ou seja, da sua inscrio transformadora na lingua-
gem, o sujeito dota o discurso de um ritmo, que no deve aqui ser entendido como a
alternncia recorrente de padres diferentes, mas sim como organizao, ou me-
lhor, como configurao 53. Nas palavras de Meschonnic:
Eu no considero mais o ritmo uma alternncia formal do mesmo e do dife-rente, dos tempos fortes e dos tempos fracos [...] entendo o ritmo como a organizao e a prpria operao do sentido no discurso.
54
Esse ritmo, por ser o resultado da inscrio do sujeito na linguagem, acaba
sendo o prprio sujeito do discurso no discurso a sua manifestao fsica. O que
determina o sentido no discurso , ento, uma sua subjetivao que acaba fazendo
com que tudo surja com ele, e o seu sentido passa a ser isso que para Meschonnic
o seu ritmo, ou seja, aquilo que resultou da manipulao da linguagem operada
pelo sujeito. O ritmo a organizao e o prprio funcionamento do sentido dentro do
discurso.
O importante agora perceber que, entre oralidade e ritmo, h uma forte liga-
o: ao se inscrever na linguagem, o sujeito a transforma em lngua por meio da sua
52
ibid., p. 18.
53 Conforme explicitado pelo prprio autor (MESCHONNIC, 2010, p. 61), a noo de ritmo por ele
empregada foi tomada de emprstimo a Benveniste (1976, p. 361 370), que, em uma leitura que
mistura elementos de filologia, etimologia e hermenutica, recupera o significado que o grego
(de , fluir, correr) possua em sua aplicao nos texto da antiguidade grega. Segundo o autor,
em Demcrito que alado a termo tcnico, significando (forma). Para Demcrito, as
coisas se diferenciavam pela forma que seus elementos constituintes assumiam, como a gua se
diferenciaria do ar por causa da forma pela qual os tomos se arranjam. Assim sendo, seria
[...] a forma distintiva, o arranjo caracterstico das partes de um todo (ibid., p. 364). A forma qual
se remete, porm, no a forma fixa qual a palavra se remete, mas a forma que
algo mvel, fluido, assume no momento da sua fixao: Pode-se compreender ento que [...]
tenha sido o termo mais prprio para descrever disposies ou configuraes sem fixidez nem necessidade natural, resultantes de um arranjo sempre sujeito mudana (ibid., p. 368).
54 MESCHONNIC, 2010, p. 43.
Traduzir a Poesia 19
oralidade, que, no discurso, manifestar-se- como ritmo. A partir disso, na potica de
Meschonnic, a literatura ocupar lugar de destaque, pois, para ele, o lugar emble-
mtico em que o ritmo se realiza plenamente como sentido, pois, [...] se alguma coi-
sa mostra que h oral no escrito, e que o oral no o falado, exatamente a litera-
tura55:
[...] se o ritmo no mais o que era, se a organizao do movimento da palavra, no sentido que Saussure atribua palavra, uma organizao que a especificidade, a subjetividade, a historicidade de um discurso, e sua sis-tematicidade, ento a oralidade o primado do ritmo no modo de significar. No falado como na escrita. a literatura que a realiza, emblematicamente. mesmo nisso e por isso que ela literatura.
56
A literatura no apenas o lugar em que o ritmo atinge sua plenitude como
modo de significar como sentido, conforme definido nos moldes da potica. O ser
literatura da literatura est condicionado justamente a essa plenitude do ritmo: [...]
diferena do que no literrio, [a literatura] constri e inclui o seu referente, e, in-
tegrando o referente, a situao e, sobretudo, o sujeito no discurso, ela faz da lin-
guagem um significante generalizado. O signo extravazou.57
A forma pela qual o sujeito se inscreve e modifica a linguagem para que o seu
discurso resultante seja literatura pressupe que ele no apenas se inscreva nela,
mas que crie e que inscreva nela tambm o seu referente e o seu contexto, sua situ-
ao. Ela no mais significado, mas somente significante: a literatura surge quan-
do o signo deixa de ser a soma de significante e significado e passa a ser somente
significante, quando nele se faz transbordar o que ele tem de linguagem. , pois,
atravs de um pensamento potico que o sujeito transforma a linguagem em literatu-
ra:
O pensamento potico a maneira particular pela qual um sujeito transfor-ma, inventando-se, os modos de significar, de sentir, de pensar, de compre-ender, de ler, de ver enfim, de viver na linguagem. um modo de ao sobre a linguagem. O pensamento potico aquilo que transforma a poesia. Como o pensamento matemtico transforma as matemticas.
58
55
id., 2006, p. 18.
56 id., 2010, p. XXXVI.
57 ibid., p. 27.
58 ibid., p. XXXVII.
Traduzir a Poesia 20
Tratar a literatura a partir da lngua exclui dela justamente o que a torna litera-
tura, conduzindo a anlise estilstica, no potica. Como vimos, na potica, o
discurso no mais o simples resultado do uso da lngua, mas a sua criao: resul-
tado do trabalho do sujeito na linguagem e da subjetivao do discurso, ele escrita,
[...] a organizao de uma tal subjetivao no discurso que [...] transforma os valo-
res da lngua em valores de discurso, e, assim sendo, no se pode mais continuar
a pens-los [os discursos] nos termos costumeiros do signo.59 No discurso, no im-
portam mais a palavra, a frase ou o fonema, mas a sua configurao, a forma pela
qual eles deixam de ser valores de lngua e passam a ser constituintes do seu modo
de significar, do seu ritmo valores de discurso. A potica seria, segundo o autor,
uma educao para o ritmo:
No se trata aqui de opor a significncia (esta produo de sentido rtmico e prosdico por todos os sentidos a compreendidos ultrapassando o signo) significao e ao sentido como a teoria tradicional ope a forma ao sentido e a letra ao esprito. Trata-se de mostrar que o discurso no se pensa com os conceitos da lngua. A traduo de um texto como discurso (e no ln-gua) deve, em consequncia, aceitar outros riscos e no mais se limitar a respeitar as autoridades da lngua e do saber que so ao mesmo tempo a ignorncia da potica. A ignorncia do ritmo.
60
Porque parte de uma teoria da linguagem em que a literatura ocupa um papel
fundamental, e em que a traduo um prolongamento da literatura61, a potica
provocar mudanas tambm na forma pela qual a traduo entendida: para a
potica, a traduo no nem uma cincia, nem uma arte, mas uma atividade que
coloca em curso um pensamento da linguagem.62 Do ponto de vista da lngua, a
traduo acometida pelos mesmos males que os outros discursos: comandada
pela teoria do signo, a traduo fica presa s dualidades e dicotomias tradicionais
forma e contedo, significante e significado, esprito e letra. Vista pelo ngulo da ln-
gua, ela vai ser sempre falta disto ou daquilo, num momento ou no outro. A noo
clssica de fidelidade talvez seja o maior exemplo dessa visada do traduzir e da tra-
duo, pois, ao se considerar que a unidade da lngua a palavra, a frase, o fone-
59
ibid., p. XX.
60 ibid., p. 05 06.
61 ibid., p. 26.
62 ibid., p. XXVI.
Traduzir a Poesia 21
ma, o sentido ou o significado, a traduo, tanto na prtica como na crtica, acaba
sendo pautada por esses elementos por valores de lngua, portanto.
Para a potica, porm, [...] a unidade da linguagem no a palavra, e no
pode, pois, ser o sentido, seu sentido [...] a unidade o discurso. O sistema do dis-
curso.63 Sendo assim, por ser um ato de linguagem64, a traduo s pode ter por
unidade o discurso e o seu sistema. Na potica, ento, a traduo e o traduzir no
so considerados a partir dos valores de lngua, mas a partir dos valores de discur-
so: o objetivo da traduo no mais o sentido, mas bem mais amplo que o senti-
do, e que o inclui: o modo de significar65 ou, em outras palavras, o ritmo, a potica
do texto.
Considerar a potica um princpio epistemolgico no significa, contudo, que
ela seja princpio crtico ou paradigma que pr-exista leitura ou ao ato de traduzir.
Olhar para o texto do ponto de vista da potica , antes, olhar para a potica do tex-
to, buscar, nele, sua oralidade, seu ritmo; flagrar o seu modo de significar. A e-
pisteme da potica a potica dos textos. Buscar a potica de um poema66 buscar
o seu pensamento potico, sua oralidade, seu ritmo que o que sobra para tradu-
zir:
Traduzir a potica no mais difcil. somente uma relao com a lingua-gem que no se limita filologia, lngua. Ela no se ope ao saber. Ela impe um outro saber. Ela mostra que no basta o saber da lngua.
67
A traduo acaba, assim, se revelando uma potica experimental, no sentido
de que constri uma potica para a potica que traduz de maneira a possibilitar a
sua experincia ao mesmo tempo em que a demonstra. uma potica para uma
potica, no do sentido pelo sentido nem de uma palavra pela palavra, mas o que
faz de um ato de linguagem um ato de literatura.68 Traduzir a literatura traduzir o
63
ibid., p. XXXI.
64 ibid., p. XXVI.
65 ibid., p. 43.
66 Para Meschonnic (ibid., p. XVIII), poema toda a literatura.
67 ibid., p. 47.
68 ibid., p. LXIV.
Traduzir a Poesia 22
pensamento potico que deu origem ao discurso o que o torna literatura , e so-
mente a potica capaz de dar conta dessa tarefa:
[...] se traduzir a literatura uma relao com a literatura, o que dificilmente negaramos, embora os empiristas que s querem conhecer a lngua o igno-rem, s a potica da traduo pode pensar, e realizar uma traduo-literatura da literatura.
69
O pressuposto de que traduzir criar uma potica para outra potica , po-
rm, menos dogmtico do que parece: criar uma potica para uma potica no im-
plica que elas devam ser iguais, que elas devam ser a mesma, mas sim que a tradu-
o deve oferecer uma potica que no prive a literatura da literatura, do seu pen-
samento potico, j que a primeira e ltima traio que a traduo pode cometer
contra a literatura a de lhe roubar aquilo que a faz literatura sua escritura70. A
boa traduo ser, ento, aquela que:
[...] em relao potica do texto inventa sua prpria potica, e que substi-tui as solues da lngua por problemas do discurso, at inventar um pro-blema novo, como a obra o inventa.
71
Para Meschonnic, assim como para H. de Campos, a traduo uma questo
que vai alm da palavra e, mesmo, da lngua: uma questo de discurso de leitura
e de escritura. Traduzir identificar aquilo que faz do texto a ser traduzido um texto
especfico o seu ritmo, a sua oralidade, para Meschonnic; a sua forma significante,
o seu intracdigo, para H. de Campos e, a partir disso, propor outra potica,
(re)criar, trans- criar, fingir, ficcionalizar. Porm, se H. de Campos pensa a traduo
a partir de categorias da lingustica estruturalista, Meschonnic prefere pens-la a
partir de uma teoria do discurso que , na verdade, parte de uma teoria da lingua-
gem; que uma teoria atravs da qual literatura e traduo, e ao discurso de um
modo geral, corresponde um modo especfico de significar que no nem signo,
nem significado, nem sentido: uma organizao especfica da linguagem, que cria
o seu prprio sentido. informao esttica bensoniana evocada por H. de Campos,
uma configurao especfica de signos, contrape-se aqui a criao de modos de
69
ibid., p. 69.
70 ibid., p. 30.
71 ibid., p. 75.
Traduzir a Poesia 23
significar, organizados de acordo com um ritmo, que, por sua vez, o resultado de
uma oralidade na concepo de Meschonnic.
Se, nos textos nos quais nos baseamos, H. de Campos, ao pensar o texto
como um signo, no evita que as dicotomias e dualidades da lingustica estruturalis-
ta possam invadir o pensamento da traduo com todas as suas consequncias, ao
mudar o ponto de partida do pensamento da traduo da lngua para o discurso,
Meschonnic faz com que as instncias relevantes respondam a outro princpio, faz
com que elas sejam vistas a partir de outro ponto de vista e, principalmente, faz com
que sejam outras, o que podemos perceber nas leituras que o autor faz de algumas
obras. Em sua abordagem do ritmo do Hamlet shakespeariano, o autor aponta um
caso interessante, em que percebe certo padro sonoro no entorno imediato do no-
me de Oflia o trecho longo, mas o caso relevante:
Lendo e relendo Hamlet, notei que cada vez que aparecia o nome de Oflia, vinte vezes ao todo, em toda a pea, nos dilogos, havia no entorno imedia-to do nome (quando se pronuncia em ingls naturalmente) certos elementos consonnticos ou voclicos, mas sobretudo consonnticos, do nome. Uma espcie de efeito de vasos comunicantes, difuso das consoantes de seu nome nas palavras que se avizinham ou, para dizer sem metfora antecipa-da, certas palavras comportariam as mesmas consoantes, as mesmas vo-gais daquelas de seu nome, e estas palavras colocadas nas extremidades, do comeo ao fim da pea, no constituem uma lista aleatria, mas um a-companhamento cheio de sentido: o sentido deste nome nesta pea. Estas palavras apelam para o que caracteriza Oflia e para aquilo que constri o seu destino.
72
Seria o caso, por exemplo, do alerta do irmo de Oflia quanto s investiduras
do prncipe (I, 3, 33 34): Fear it, Ophelia, fear it, my dear sister / and keep you in
the rear of your affection.73 A questo do sentido, porm, no diz respeito ao senti-
do do nome Ophelia, atribudo filolgica ou cabalisticamente. A questo, como dis-
se o prprio Meschonnic, diz respeito a uma aura em torno da personagem, que a
caracteriza e que sela o seu destino. O fato que, aqui, a sonoridade no diz respei-
to somente a uma caracterstica da lngua: a passagem importante para a potica
do texto no porque, em ingls, seja possvel encontrar semelhanas sonoras entre
fear, Ophelia, dear, rear, keep e affection, mas porque essa semelhana
72
MESCHONNIC, p. 111.
73 Os negritos indicam as semelhanas consideradas por Meschonnic.
Traduzir a Poesia 24
sonora une palavras que expressam caractersticas da personagem e que adiantam
o tom do seu destino. Aproveitando a ocasio, podemos dizer que h, entre eles,
uma relao fonolgica, e no simplesmente fontica, se considerado o sistema da
lngua nesse discurso so valores de discurso, no mais somente valores de ln-
gua.
Outro exemplo apresentado por Meschonnic que podemos evocar aqui diz
respeito seguinte passagem da Ilada (VIII, 64-65):
/ , 74, que apre-
senta a seguinte estrutura mtrica: _ u u | _ _ | _ // u u | _ _ | _ u u | _ _ / _ _ | _ //
u u | _ u u | _ // u u | _ u u | _ u. A questo aqui diz respeito s palavras e
, ambas compostas por trs slabas longas. Slabas longas e slabas breves
so caractersticas da lngua grega e de sua prosdia natural, mas so tambm os
traos distintivos mediante os quais a mtrica grega classifica os seus ps. Se lon-
gas e breves j podem ser consideradas mais que valores de lngua simplesmente
pelo fato de comporem o princpio bsico da metrificao grega, no exemplo citado
no s elas assumem o carter definitivo de valor de discurso, como tambm a pr-
pria estrutura mtrica tem o seu modo de significar ressaltado: e ,
opostas por seus significados (dos que matam e dos que so mortos, respectiva-
mente), seriam valorizadas da mesma maneira por conta de sua estrutura mtrica;
para Meschonnic, ento, por conta de sua estrutura mtrica, e
equivalem.75
At aqui, porm, a equivalncia simplesmente sonora, da lngua, e, se so-
mente assim considerada, ela no se caracteriza como uma questo potica. Po-
rm, ao ser vista no discurso em que ocorre, essa equivalncia d outro sentido s
palavras, independente de seus significados opostos; ela cria um efeito segundo,
incoativo, nem lxico nem contextual, que iguala os gritos dos assassinos e dos mor-
74
Na traduo de Carlos Alberto Nunes: Dos vencedores os gritos de jbilo se ouvem e as queixas / dos que tombavam vencidos; de sangue se encharca o cho duro.
75 ibid., p. 53.
Traduzir a Poesia 25
tos, iguala os assassinos e os mortos a um nvel metaguerreiro, alm da visada ime-
diata do combate.76 Atravs da incorporao da mtrica como um princpio de signi-
ficncia do texto, o [...] verso de Homero no diz, ele mostra77 a igualdade entre
assassinos e assassinados.
dessa forma, pois, que a visada potica proposta por Meschonnic possibilita
um olhar para o texto que o toma como um discurso, preocupando-se principalmente
com a identificao de quais so e de como funcionam os valores que caracterizam
o seu ritmo. Se levarmos em conta apenas isso, podemos definir a visada potica de
Meschonnic com os termos que apresentamos como tpicos reflexo de H. de
Campos sem que se alterem muito as suas caractersticas. As diferenas a que an-
teriormente nos referimos, porm, no dizem respeito necessariamente ao que os
dois autores fazem em suas reflexes, mas quilo que suas reflexes possibilitam.
E, nesse sentido, definir o traduzir a partir da potica nos parece mais condizente
com os valores que vemos em um discurso literrio, ou, em outras palavras, com
aquilo que entendemos como poesia.
Por conta disso, ocupar-nos-emos, na seo seguinte, da poesia conforme
considerada pela crtica literria, destacando principalmente o seu funcionamento
como discurso e a forma pela qual ela acontece. Assim sendo, acreditamos, ser
mais fcil acompanhar no s nossa leitura da palliata como produo potica co-
mo poesia, portanto , seno tambm a definio do nosso projeto de traduo a
partir da potica do traduzir de Meschonnic.
76
ibid., p. 54.
77 ibid. p. 54 55.
O Discurso da Poesia 26
II O discurso da poesia
Quando aqui pensamos na natureza potica do discurso, estamos pensando
em um tipo manifestao da linguagem que suficientemente singular a ponto de
caracteriz-la como especfica como poesia. Durante esta seo, empreendere-
mos uma busca por uma forma de entender o discurso potico que leve em conta o
seu ritmo sua oralidade, sua historicidade. Para isso, levaremos em conta as refle-
xes de Octavio Paz78 e de Alfredo Bosi79 e, atravs delas, buscaremos vincular a
relao entre a poesia e a linguagem e entre elas e o mundo, consequentemente
ideia de transcendncia, de um ir alm sem deixar de ser.
Octavio Paz ir trabalhar a relao poesia-linguagem-mundo dimensionando
duas relaes em especial, linguagem e histria e linguagem e mundo. importante
destacar que, na abordagem de Paz, entre cada uma dessas relaes, a poesia de-
sempenha o papel de mediadora: atravs dela que se do as relaes entre lin-
guagem e mundo e linguagem e histria. Para comearmos nossa abordagem, no
que diz respeito ao seu conceito de linguagem, um sistema dado de significaes
histricas80, podemos dizer que, para Octavio Paz, linguagem eminentemente
significado, sentido:
A linguagem significado: sentido de isto ou aquilo. As plumas so leves; as pedras, pesadas. O leve leve em relao ao pesado, o escuro diante do luminoso, etc. Todos os sistemas de comunicao vivem no mundo das referncias e dos significados relativos.
81
78
Para isso, vamos nos fundamentar em quatro de seus ensaios, publicados originalmente em 1956 na primeira edio de El Arco y la Lira (PAZ, 1967): El lenguage (1967a), Poesia y poema (1967b) e as tradues para o portugus (PAZ, 1996) de A consagrao do instante (1996a) e A imagem (1996b). A escolha por esses ensaios deu-se baseada no fato de que El Arco y la Lira contitui-se como obra central dentre a produo ensastica e mesmo potica de Octavio Paz, visto que, nela, esto inseridas, mesmo que embrionariamente, as principais questes sobre a poesia que o poeta retomar e desenvolver com diferentes intuitos durante o resto de sua obra. As tradues citadas de El Arco y la Lira e referenciadas como se fossem da edio de 1967 so de Olga Savary (PAZ, 1982). Porm, como no tivemos acesso edio impressa do texto de Savary, a paginao indicada nas nossas referncias segue a edio em espanhol do texto de Paz.
79 BOSI, 2000.
80 PAZ, 1967b, p. 23.
81 id., 1996b, p. 44.
O Discurso da Poesia 27
Todas as nossas verses do real silogismos, descries, frmulas cientfi-cas, comentrios de ordem prtica, etc. [os usos da linguagem, portanto] no recriam aquilo que pretendem exprimir. Limitam-se a representa-lo ou descrev-lo.
82
Meio pelo qual o homem descreve o mundo, a linguagem, mediadora, se in-
terpe na relao entre homem e mundo. O acesso ao real e a sua consequente
descrio s podem se dar, ento, por meio e atravs da linguagem, pois, alm de
ferramenta, a linguagem o caminho que o homem deve percorrer para se aproxi-
mar do real, para dar sentido a ele, para unific-lo. Para Paz:
Quando percebemos um objeto qualquer esse objeto se nos apresenta co-mo uma pluralidade de qualidades, sensaes e significados. Esta plurali-dade se unifica, instantaneamente, no momento da percepo. O elemento unificador de todo esse conjunto de formas o sentido [...] o sentido no s o fundamento da linguagem como tambm de toda a apreenso da reali-dade. Nossa experincia da pluralidade e da ambiguidade do real parece que se redime no sentido [...] Se vemos uma cadeira, por exemplo, perce-bemos instantaneamente sua cor, sua forma, os materiais com que foi cons-truda, etc. A apreenso de todas essas notas dispersas no obstculo para que, no mesmo ato, nos seja dado o significado da cadeira: o de ser um mvel, um utenslio.
83
Porm, se as coisas se mostram na sua totalidade no timo de tempo em que
percebemos algo no mundo, quando queremos a elas retornar e, por meio da lin-
guagem, nos referimos ao real que percebemos, acabamos dividindo aquela plurali-
dade em partes separadas do todo. Para falarmos da cadeira que vimos, vamos
descrever o material com o qual ela foi feito, a sua cor e suas formas em uma se-
quncia discursiva, no num timo, num relmpago. Percepo e descrio do real
tm, portanto, implicaes diferentes: enquanto uma apreende o objeto em sua tota-
lidade, a outra s pode oferec-lo em sequncia.
O sentido tambm ser construdo de modo diferente na descrio: se, na
percepo, a unificao da pluralidade do objeto percebido simultnea apreen-
so, se damos sentido s coisas do mundo to logo as percebemos, o sentido pela
linguagem s ser dado aps percorrido o caminho pelo qual ela nos leva ao objeto.
Para Paz: [...] a linguagem sentido disto ou daquilo [e] o sentido o nexo entre o
82
ibid., p. 46.
83 ibid., p. 46.
O Discurso da Poesia 28
nome e aquilo que nomeamos84. Portanto, se nexo, ligao, unio, vnculo,
coerncia, conexo acaba, pois, implicando distncia entre nome e nomeado. As-
sim sendo:
Ao enunciarmos certa classe de proposio (o telefone comer. Maria um tringulo, etc.) produz-se um sem sentido porque a distncia entre a pa-lavra e a coisa, o signo e o objeto, torna-se insalvvel: a ponte, o sentido, rompeu-se.
85
Para fazer sentido, portanto, a linguagem deve operar dentro de uma lgica
indexada ao real, deve sanar a distncia entre nome e objeto, e no torn-la cada
vez maior. H, porm, uma diferena entre o que ocorre no emprego da linguagem
para a pura descrio em nossas verses do real e no seu emprego no poema
entendido no como uma forma literria, mas como [...] organismo verbal que con-
tm, suscita ou emite poesia86. De acordo com Octavio Paz:
[...] quando a poesia acontece como uma condensao do acaso ou uma cristalizao de poderes e circunstncias alheios vontade criadora do poe-ta, estamos diante do potico. Quando passivo ou ativo, acordado ou so-nmbulo o poeta o fio condutor e transformador da corrente potica, es-tamos na presena de algo radicalmente distinto: uma obra. Um poema uma obra. A poesia se polariza, se congrega e se isola num produto huma-no: quadro, cano, tragdia. O potico poesia em estado amorfo; o poe-ma criao, poesia que se ergue. S no poema a poesia se recolhe e se revela plenamente.
87
Organismo verbal, o poema , portanto, poesia erigida com e na linguagem.
obra, resultado da criao do homem, corrente potica transformada pelo trabalho
do poeta. Nesse sentido, a grande diferena que, devido sua natureza de ser
sentido, a linguagem opera, nas nossas verses do real, segundo a lgica da descri-
o; no poema, porm, ela sofre uma transformao:
Qualquer que seja sua atividade e profisso, artista ou arteso, o homem transforma a matria-prima: cores, pedras, metais, palavras. A operao transmutadora consiste no seguinte: os materiais abandonam o mundo cego da natureza para ingressar no das obras, isto , no mundo das significa-es. O que ocorre ento com a matria pedra empregada pelo homem pa-ra esculpir uma esttua e construir uma escada? Ainda que a pedra da est-
84
ibid., p. 49.
85 ibid., p. 49.
86 id., 1967b, p. 14.
87 ibid., p. 14.
O Discurso da Poesia 29
tua no seja diferente da pedra da escada, e ambas sejam referentes a um mesmo sistema de significaes (por exemplo: as duas fazem parte de uma igreja medieval), a transformao que a pedra sofreu na escultura de na-tureza diversa da que a converteu em escada. O destino da linguagem nas mos de prosadores e poetas nos faz vislumbrar o sentido dessa diferen-a.
88
Para Paz, a busca do prosador identificar a palavra a um dos seus significa-
dos e sentidos possveis ao po, po; e ao vinho, vinho89 , uma busca que s
pode ser exercida com violncia, pois caminha na contramo da natureza da pala-
vra. Se a palavra [...] possui vrios significados latentes, tem uma certa potenciali-
dade de direes e sentidos90, ento a operao prosaica sobre a linguagem mu-
tiladora: com um cinzel, no o poeta quem desbasta a palavra, mas o prosador,
que a submete fora da sua ferramenta. Por outro lado, na operao potica, o
trabalho do poeta com a linguagem caminha no sentido contrrio: ao invs de apro-
ximar nomes e nomeados, o poeta liberta a linguagem da sua natureza de ser senti-
do, de intermediar a relao entre signo e objeto. Nas palavras de Octavio Paz:
A operao potica de signo contrrio manipulao tcnica. Graas primeira, a matria reconquista sua natureza: a cor mais cor, o som ple-namente som. Na criao potica no h vitria sobre a matria ou sobre os instrumentos, como quer uma v esttica de artesos, mas um colocar em liberdade a matria. Palavras, sons, cores e outros materiais sofrem uma transmutao mal ingressam no crculo da poesia.
91
O poeta no acorrenta a palavra a um significado, ele a liberta fazendo com
que ela retorne sua pluralidade natural a pedra triunfa na escultura, humilha-se
na escada.92 Em Paz, o poeta revela uma natureza da linguagem anterior quela de
ser sentido, [...] antes de ser submetida mutilao da prosa ou da conversao93.
A matria no crculo da poesia vai ser, ento, a matria na sua totalidade original.
Contudo, e esse um trao importante, ela tambm ser, sempre, matria fora do
crculo da poesia. A linguagem nunca deixar de ser linguagem do mundo, sentido
de isto e daquilo. Segundo Paz:
88
ibid., p. 21.
89 ibid., p. 21.
90 ibid., p. 21.
91 ibid., p. 22.
92 ibid., p. 22.
93 id., 1996b, p. 48.
O Discurso da Poesia 30
Tocados pela mo do homem, [as matrias som, cores, palavras, etc.] mudam de natureza e penetram no mundo das obras. E todas as obras de-sembocam na significao; aquilo que o homem toca se tinge de intenciona-lidade: um ir em direo a... O mundo do homem o mundo do sentido. Tolera a ambiguidade, a contradio, a loucura ou a confuso, no a carn-cia de sentido.
94
Tocadas pela mo do homem, linguagem, palavras, pedras, cores e sons ad-
quirem um sentido, significam algo, tornam-se obras, criaes como o poema. A
linguagem , ento, sempre significado. Trabalhando com ela, o poeta no a liberta
totalmente de ser linguagem de referncia; o que ele faz possibilitar que ela seja
para alm disso, que ela transcenda a sua natureza de ser sentido e seja tambm
linguagem potica. Para faz-la transcender, a operao potica transforma a lin-
guagem em imagem, e assim redimensiona tanto a sua natureza descritiva como
sua natureza de ser sentido. Pela imagem, o poeta no mais descreve, ele apresen-
ta objetos nossa percepo ele nos oferece uma imagem:
No poema a cadeira uma presena instantnea e total, que fere de um golpe a nossa ateno. O poeta no descreve a cadeira: coloca-a diante de ns. Como no momento da percepo, a cadeira nos dada com todas as suas qualidades contrrias e, no pice, o significado.
95
No fim das contas, ento, o que a imagem faz com a linguagem possibilitar
que a percebamos tal como percebemos a realidade. Porm, porque no pode ser
expressa seno pela palavra96, a imagem no pode deixar de ser tambm social,
histrica, intersubjetiva linguagem de sentido disto e daquilo. Paz faz questo de
marcar que as imagens criadas pelo poeta so autnticas, [...] o poeta as viu ou
ouviu, so produto genuno da sua viso e experincia do mundo, e por isso aca-
bam nos reconduzindo ao mundo real aquele no qual andamos, conversamos e
defendemos nossas dissertaes de mestrado; leva-nos, portanto, s nossas pr-
prias experincias:
Assim, a imagem reproduz o momento da percepo e fora o leitor a susci-tar dentro de si o objeto um dia percebido. O verso, a frase-ritmo, evoca,
94
id., 1967b, p. 19.
95 id., 1996b, p. 46.
96 ibid., p. 48.
O Discurso da Poesia 31
ressuscita, desperta, recria [...] no representa, mas apresenta. Recria, revi-ve nossa experincia do real.
97
Mas, porque potica, fruto do trabalho do poeta, ela tambm criao, a-
presentao. No poema, a cadeira est l. Quando o poeta revela a imagem em to-
da a sua pluralidade, ele faz com que a linguagem se apresente no poema tal como
os objetos se apresentam no mundo. O que temos disponvel percepo no poema
, ento, outra realidade, plural como aquela do mundo:
[...] o poeta faz algo mais do que dizer a verdade; cria realidades que pos-suem uma verdade: a de sua prpria existncia. As imagens poticas tm a sua prpria lgica e ningum se escandaliza de que o poeta diga que a -gua cristal ou que El pir es primo del sauce (Carlos Pellicer). Mas esta verdade esttica da imagem s vale dentro de seu prprio universo.
98
As imagens do poeta, resultado da sua experincia do mundo, so, pois, o-
bras, constituem uma realidade objetiva que valida por si mesma.99 Eis, ento,
uma das caractersticas ambguas que definem o conceito de imagem em Octavio
Paz: no poema, esse organismo verbal composto por imagens100, o poeta recria o
momento da percepo, e a nossa percepo enquanto leitores no , ento, uma
percepo do real, mas uma percepo da imagem; porm, como s pode ser pala-
vra, a imagem no deixa de suscitar em ns o real que conhecemos. Mas a imagem
vai mais alm: no transforma a linguagem somente porque ultrapassa a simples
descrio e passa a ser tambm criao; no poema, a linguagem transcende o pr-
prio sentido:
Na prosa, a unidade da frase conseguida atravs do sentido, que algo como uma flecha que obriga todas as palavras a apontarem para um mes-mo objeto ou para uma mesma direo. Ora, a imagem uma frase em que a pluralidade de significados no desaparece. A imagem recolhe e exalta todos os valores das palavras, sem excluir os significados primrios ou se-cundrios. Como pode a imagem, encerrando dois ou mais sentidos, ser uma e resistir tenso de tantas foras contrrias, sem converter-se em um mero disparate?
101
97
ibid., p. 46.
98 ibid., p. 45.
99 ibid., p. 45.
100 [...] toda forma verbal, frase ou conjunto de frases que o poeta diz e que unidas compem o
poema (ibid., p. 37).
101 ibid., p. 45.
O Discurso da Poesia 32
Isso possvel porque no por sua relao com o mundo que a imagem
adquire sentido: ela prpria seu sentido. Nas reflexes de Paz, a relao entre lin-
guagem e mundo, via imagem, no como aquela da prosa, em que o sentido est
indexado lgica do mundo real; no poema, o sentido est vinculado percepo
da imagem, visto que, nele, a noo de sentido como nexo se perdeu:
Um poema no tem mais sentido que suas imagens. Ao ver a cadeira, a-preendemos instantaneamente o seu sentido: sem necessidade de recorrer palavra, sentamo-nos. O mesmo ocorre com o poema: suas imagens no nos levam a outra coisa, como ocorre com a prosa, mas nos colocam diante de uma realidade concreta [...] O poeta no quer dizer: diz. Oraes e fra-ses so meios. A imagem no meio; sustentada em si mesma, ela seu sentido. Nela acaba e nela comea. O sentido do poema o prprio poe-ma.
102
Paz atribui essa outra caracterstica da imagem perda da mobilidade e da
permutabilidade dos signos, o que confere prosa a possibilidade de dizer uma
mesma coisa de maneiras diferentes. Para o autor, na prosa, dizer de desnuda que
est brilla la estrella ou la estrella brilla porque est desnuda resulta em uma
mesma coisa, pois, em ambas as formas, o que h uma explicao para o brilho
da estrela. Elas significam a mesma coisa, tem o mesmo sentido: independente da
forma de descrever, o que se descreveu permanece igual. Para a poesia, porm,
passar da afirmao de desnuda que est brilla la estrella para a explicao la
estrella brilla porque est desnuda incorre uma mudana naquilo que se descreveu,
uma degradao de sentido.103 Se essa mudana altera no somente o modo de
dizer, mas tambm o sentido, porque o sentido parece ser, em Paz, semelhante ao
que em Meschonnic: uma questo de ritmo, o resultado do sujeito (-poeta) trans-
formando a linguagem.
Atravs das imagens, o poema pode afirmar os contrrios e aproximar os dis-
tantes. Pode, pois, dizer que Maria um tringulo ou que o telefone comer sem
gerar um sem sentido. Ao poema, permitido dizer o indizvel, visto que, em vez de
buscar estabelecer uma aproximao possvel entre esses termos to distantes, ele
anula essa distncia. Se o sentido da imagem a prpria imagem, ento o sentido
como nexo entre nome e nomeado no existe mais j no h nada mais que a-
102
ibid., p. 47-48.
103 ibid., p. 48.
O Discurso da Poesia 33
preender, que assinalar104. Se o indizvel inaceitvel para linguagem, se no pode
ser explicado por ela, ento a linguagem impotente diante dele, no capaz de
dar-lhe sentido, de signific-lo. , pois, por esse motivo que, para Paz, a imag