Post on 06-Feb-2018
A PESTE Joo do Rio1
E de sbito, um indizvel pavor prega-me ao banco. um dia brumosamente
invernal. O azul do cu parece tecido de filamentos de brumas. O sol como que
desabrocha, entre as brumas. O ar, um pouco mido e um pouco cortante, congela as
mos, tonifica a vegetao, e o mar, que se v distncia num recanto de lodo, tem
reflexos espelhentos de grandes escaras de chagas, de leo escorrido de feridas,
superfcie quase imvel. O cheiro de desinfeco e cido fnico, o movimento sinistro
das carrocinhas e dos automveis galopando e correndo pela rua de mau piso, aquela
sujeira requeimada e manchada das caladas, o ar sem pingo de sangue ou
supremamente indiferente dos empregados da higiene, a sinistra galeria de caras de
choro que os meus olhos vo vendo, pem-me no peito um apressado bater de
corao e na garganta como um lao de medo. A bexiga! A bexiga! verdade que h
uma epidemia... E eu vou para l, eu vou para o isolamento, eu!
Um ms antes ria dessa epidemia. Para que pensar em males cruis, nesses males
que deformam o fsico, roem para todo o sempre ou afogam a vida em sangue podre?
Para que pensar? E Francisco, o meu querido Francisco, a quem eu amava como a
melhor coisa do mundo, pensava todo o dia, lia os jornais, tomava informaes. "A
mdia de casos fatais de trinta por dia. Ela vem a, a vermelha", dizia. E j organizara
um regime, tomara quinino, tinha o quarto cheio de anti-spticos, os bolsos com
pedras das farmcias para afastar o vrus. Coitado! Era impressionante. Eu bem lhe
dizia:
- Mas criatura, no tenhas medo. Andamos todo o dia pelas ruas, vamos aos
teatros. Qual varola! V como toda gente ri e goza. Deixa de preocupaes.
De manh, porm, ns lamos juntos, ao almoo, os jornais. Para que mentir?
Havia, havia sim! A sinistra rebentava em purulncias toda a cidade. Um dia em que
1
RIO, Joo do. A peste. Digital source. Disponvel em:
. Acesso em: 24 nov. 2013.
passava por uma igreja, Francisco ouviu os sinos a badalar sinistramente. Teve a
curiosidade de saber por quem to tristes badalavam e perguntou a um velho.
- promessa, meu senhor, para que Santo Antnio no mate a todos ns de
bexiga.
Francisco ficou como desvairado. Ao jantar encontrou-se comigo.
- Ah!, filho, falta-me o apetite. Estamos perdidos. impossvel lutar. Ela est a.
- Acabas doido.
- Antes! - fez, no orgulho da sua beleza.
H uma semana, indo por uma rua de subrbio, encontrou com gritos e
imprecaes um bando de gente que arrastava ao sol um caixo. Era uma pobre
famlia levando igreja o cadver de uma criana em holocausto, para que Deus
tivesse piedade e misericrdia. A impresso prostrou-o. Chegou casa ainda mais
assustado.
- Sabes! Estamos perdidos. A polcia j deixa arrastarem os variolosos pela rua.
Dentro em pouco s lepra, a lepra de dentro encher as ruas. Cada dia aumenta mais,
cada dia aumenta. Quando chegar a nossa vez?
- Mas vai embora, homem, sobe a montanha, afasta-te...
E comecei eu tambm a indagar, a querer saber. Ento, continuava? Como era?
Como se morria de bexigas? As pessoas ficavam muito coradas, sentiam febre. Havia
vrias espcies. A pior a que matava sem rebentar, matava dentro, dentro da gente,
apodrecendo em horas! Palavra, no era para brincadeiras. O Francisco abalara para o
Corcovado, uma noite, sem me falar, sem me dar um abrao, e de repente naquela
manh, hoje, sabia por uma nota que ele estava no So Sebastio, com bexiga tambm,
talvez morto! Deu-me um grande mpeto! Covarde! Fora o medo. E agora? Era preciso
v-lo, no era possvel deixa-lo morrer sem um amigo ao lado. Nunca tive medo de
molstias, morre quem tem de morrer. Depois a cidade estava to alegre, to
movimentada, to descuidosa. Tomei o tramway quase tranqilo. Mas ali, tudo indica
a morte, a angstia, o horror, ali impossvel, e eu sentia um frio, um frio...
"- Estamos no ponto terminal; no salta?" diz-me o condutor, virando os bancos.
Fao um esforo, salto. E vou. Vou devagar, vou no querendo ir. A impresso de fim,
de extino violenta! Aquele recanto, aquele hospital com ar de cottage ingls aviltado
por usinas de porcelana, bem o grande forno da peste sangrenta. Como deve morrer
gente ali, como devem estar morrendo naquele instante. Deso a rua atordoado, com
um zumbido nos ouvidos. O mar um vasto coalho de putrefaes, de lodo que se
bronzeia e se esverdinha em gosmas reluzentes na praia morna. O cho est todo sujo,
e passam carroas da Assistncia, carroas que vm de l, que para l vo. Quase no
h rumor. como se os transeuntes trouxessem rama de algodo nos ps. S as
carroas fazem barulho. E quando param - como elas param! - o pavor de ver descer
um monstro varioloso, desfeito em pus, seguindo para a cova... Espero que no haja
nenhuma carroa porta, precipito-me pela alameda que sobe ao hospital. Vou quase
a correr, paro porta de uma sala que parece escritrio.
- O diretor?
- alguma coisa de urgente? - indaga um jovem.
- . e no .
- Vou preveni-lo. Sente-se. O senhor est plido.
Caio numa cadeira. Sinto as mos frias. As pernas tremem. Eu tenho medo, oh!
muito medo... E aquele trecho da secretaria no para acalmar o destrambelhamento
dos meus nervos. Tudo branco, limpo, asseado, com o ar indiferente nas paredes,
nos mveis sem uma poeira. Os empregados, porm, movem-se com a precipitao
triste a que a morte obriga os que ficam. Retintins de telefones repicam seguidamente
nos quatro cantos. Os dilogos cruzam-se, dilogos em que as vozes falam para dores
indizveis.
- Mais um doente?
- Ah! sim, ciente.
- Qual? No h mais lugar. O de nome Jos Bernardino? Vou ver.
E mais adiante:
- Olhe, 425? Morreu ontem noite. Se j seguiu? J.
Enquanto essas notcias so dadas s bocas dos fones, h mulheres plidas e
desgrenhadas que esperam novas dos seus doentes, h velhos, h homens de face
desfeita, uma srie de caras em que o mistrio da morte, l fora, entre as rvores,
incute um apavorado respeito e uma sinistra revolta. Quantas mes sem filhos!
Quantos pais espera da certeza da morte dos filhos! Quantos filhos ali, apenas para
tratar do enterro dos que lhe deram o ser. Ela no respeita idade, passa a foice
purulenta em tudo, est l reinando, fora, no jardim, entre as rvores, morro acima. Os
funcionrios tm uma delicadeza fria.
- Que deseja, minha senhora?
- Saber do meu filho. o 390.
- H quantos dias?
- H quatro. Ainda elas no tinham sado. Foi o mdico que disse. Ai! O meu
pequeno!
- Est decerto no pavilho de observao. Vou mandar ver.
- Meu senhor, a minha mulherinha, diga-me por Deus, diga-me.
- Espere, homem. Nada de barulho.
Os retintins telefnicos continuam. Algumas faces no dizem nada. Esto l
sentadas, esperando, esperando, esperando. E h marcados, marcados do terrvel mal,
que vo sair, no morreram, estaro dentro em pouco na rua com a fisionomia torcida,
roda, desfeita para todo o sempre. E ele? E Francisco? Ficar assim? Assim, horrvel,
horrvel... preciso v-lo! preciso!
O rapaz volta, faz-me um gesto, sigo-o, dou no gabinete do diretor, muito louro,
com a sua face inteligente vincada de tristeza.
- Ento, por c? No teve medo? Est com a mo fria. Ah! meu amigo, a apostar
que no acreditava na devastao do mal? Pois horrvel, inaudito. Tenho
presentemente no hospital setecentos e vinte doentes, desde varola hemorrgica,
que mata em horas, at a bexiga branca, que nem sempre mata. J no h lugares.
Nunca So Sebastio esteve assim. Mandei construir s pressas mais dois pavilhes.
Estou arrasado de trabalho e desolado. Afinal, por mais que se esteja habituado,
sempre se tem corao para sentir a dolorosa atmosfera de desgraa... Mas que
deseja? Diga.
- Eu desejava tomar uma informao. Est aqui no hospital um rapaz do norte,
Francisco Nogueira, estudante...
- Francisco? H tanta gente que entra e to pouca que sai. Em que dia entrou?
- Creio que anteontem.
- Vou mandar ver.
Tocou um tmpano. Apareceu um funcionrio. Falaram ambos.
O funcionrio saiu, e desde que saiu, um tremor apoderou-se do meu corpo.
Estaria morto? Estaria vivo? Aquela carne feita de ouro e de rosas j teria se
transformado numa chaga purulenta? E se estivesse morto? Uma criana to cheia de
esperanas, to entusistica, to pura, sem os pais aqui, sem ningum a no ser eu,
que tremia. Nossa Senhora! Que me viriam dizer? E ao mesmo tempo, o desejo de
encobrir tamanha emoo forava-me a fingir um sorriso, a dizer mundanamente
coisas frvolas ao homem bom cujos olhos tinham tanta piedade.
- o diabo. A epidemia tem impedido vrios prazeres da season. As grandes
estrelas mundiais, os teatros...
- Pouca gente.
- Menos do que se devia esperar. No freqenta?
- No tenho tempo.
- Ningum dir entretanto que a varola...
- Nas grandes cidades as pestes do uma impresso muito menos dolorosa do que
outrora...
- Na Idade Mdia, no, doutor?
Mas um n subitneo estrangula-me a frase. O funcionrio voltara, dava
informaes baixo ao diretor. O mdico ps-se de p e diante de mim.
- Est c. Entrou anteontem. Est vivo. O mdico da enfermaria diz que h
esperanas.
- Quero v-lo, doutor.
Houve uma pausa grave.
- vacinado?