Post on 08-Feb-2018
1
Brasileiros na Frana: o discurso da comunidade de informaes sobre o exlio (1964-
1968)
Paulo Csar Gomes1
No perodo do regime militar, partir para o exlio no significou sair da esfera de
controle do aparato repressivo brasileiro. O CIEX recolhia informaes estratgicas
relacionadas poltica, economia e s questes militares de pases que interessavam ao
Brasil. Tambm era usual que acompanhasse a imprensa estrangeira e as publicaes dos
prprios exilados. No entanto, a produo de informaes dedicadas espionagem poltica de
brasileiros vivendo no exterior, principalmente os que buscavam denunciar a tortura e as
demais prticas repressivas, sempre foi mais numerosa e significativa. Nesse sentido, a
importncia das observaes do CIEX sobre determinado pas era diretamente proporcional
presena de brasileiros naquela localidade. Isso se evidencia, por exemplo, no aumento da
produo de informaes sobre pases europeus medida que os brasileiros chegavam ao
continente, principalmente aps o golpe no Chile.2
O Sistema Nacional de Informaes (SISNI) comeou a ser montado em 1964 com a
criao do Servio Nacional de Informaes (SNI). O rgo, estruturado a partir de um
projeto de Golbery do Couto e Silva, surgiu para atender necessidade de consolidar o novo
regime. O Servio dispunha de fartos recursos e no sofria nenhum tipo de controle externo,
alm de que todos os seus atos poderiam ser feitos sem a necessidade de publicao, ao
contrrio do que ocorria com os outros rgos do poder pblico.3
Nos anos seguintes, o SNI comeou a se ramificar, inserindo-se em todas as reas da
administrao pblica. Dentro dessa lgica, o CIEX foi criado em 1966. O rgo, que no
constava no organograma oficial do Ministrio das Relaes Exteriores, estava vinculado a
1 * Doutorando do Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS/UFRJ). Bolsista CAPES. 2 Sobre o CIEX, ver PENNA FILHO, Pio. O Itamaraty e a represso alm-fronteiras: o Centro de Informaes do Exterior CIEX (1966-1986). In: FICO, C. (Org.). 1964-2004: 40 anos do golpe: ditadura militar e resistncia no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. p. 163-172. 3 Sobre a estrutura e o funcionamento do sistema de informaes do regime militar brasileiro ver FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrneos da ditadura militar: espionagem e polcia poltica. Rio de Janeiro: Record, 2001.
2
este ministrio, mas era subordinado ao SNI. Tinha a funo especializada de produzir
informaes sobre assuntos estrangeiros e seus funcionrios eram diplomatas de vrios
escales radicados em diversos pases. Afora alguns poucos e importantes trabalhos, o CIEX
ainda no foi objeto de estudos mais aprofundados. O mistrio e a desinformao em torno do
rgo so ainda bastante grandes que, em publicaes e mesmo em trabalhos acadmicos, a
sigla erroneamente identificada como Centro de Informaes do Exrcito, que vem a ser o
CIE.
Sob o comando do presidente Mdici, o SNI passou a ser no apenas um rgo voltado
para busca e anlise de informaes, mas, do mesmo modo, tinha a incumbncia de estudar os
problemas do pas nas reas poltica, econmica e social. No tardou para que o Servio se
convertesse em uma referncia para o presidente em quase todos os assuntos. Uma
caracterstica do SISNI foi que, alm de invadir a vida privada de supostos subversivos no
Brasil e, muitas vezes, no exterior, manteve ntimas relaes com outras instncias da
represso, como o caso da polcia poltica e da censura.
Nota-se que, paulatinamente, o CIEX foi desenvolvendo um sofisticado aparelho de
coleta, anlise e distribuio de informaes referentes a atividades polticas, intimidades e
relaes pessoais de exilados (PENNA FILHO, 2004, p. 166). Os estrangeiros que se
empenhavam em atividades de oposio ao regime no exterior e no territrio nacional tambm
foram vigiados e uma das formas de controle utilizadas pelo Itamaraty com relao a eles
observada em uma rgida poltica de concesso de vistos (SETEMY, 2013, p. 120).
Contudo, mesmo antes da criao do CIEX, o Itamaraty e os diplomatas j tinham um
tradicional e consolidado envolvimento com a produo de informaes para monitorar
brasileiros que viviam no exterior. A partir da dcada de 1930, j se observava o esforo do
Poder Executivo brasileiro, em conjunto com outros governos sul-americanos, em criar um
servio de informaes que ultrapassasse as fronteiras do pas. E, desde ento, a diplomacia
brasileira comeou a servir como mediadora dessas trocas de informaes.4 Esta viso se
4 O tema tratado na tese de doutorado SETEMY, Adrianna Lopes. Sentinelas das fronteiras: o Itamaraty e a diplomacia brasileira na produo de informaes para o combate ao inimigo comunista (1935-1966). 2013. 341 p. Tese (Doutorado em Histria Social) Programa de Ps-Graduao em Histria Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
3
contrape perspectiva de que o Itamaraty servia apenas a interesses atemporais e
suprapartidrios e que no teria colaborado com o lado mais obscuro do regime militar.5
Na ditadura, as trocas de informaes diplomticas, por meio de telegramas,
despachos e ofcios, passaram a servir como um instrumento do aparato repressivo em seu
objetivo de combate ao comunismo internacional. Os diplomatas colaboravam com o sistema
exercendo atividades rotineiras, como a redao de informes sigilosos sobre o dia-a-dia de
brasileiros exilados no exterior. Alm disso, advogavam em foros internacionais a
necessidade de aes repressivas conjuntas contra o suposto perigo comunista. O Itamaraty
passou a atuar como um agente de informaes do Estado. Portanto, um dos propsitos deste
texto averiguar como funcionava este rgo de informaes ligado ao MRE e em que
medida suas atividades contriburam para a represso naquele momento. Partimos da
perspectiva de que o funcionamento das instituies no est, necessariamente, submetido
mesma periodizao dos regimes polticos. E a historiografia brasileira ainda bastante
incipiente no que se refere a estudos nuanados sobre instituies civis atuantes no regime
militar. No caso do Itamaraty, ainda prevalecem as leituras enaltecedoras de seu pretenso
carter inabalavelmente democrtico e imune s ideologias e aos interesses especficos dos
sucessivos governos.
Quando se iniciou o processo gradual de abertura poltica, no governo de Ernesto
Geisel, embora os rgos da estrutura repressiva tenham sido paulatinamente desarticulados,
as atividades do CIEX no foram afetadas e ele continuou funcionando sem interrupo e se
reportando diretamente aos outros componentes da comunidade de informaes. O rgo
atuava com muita autonomia dentro do Itamaraty e mesmo sendo o seu quadro composto por
servidores do MRE, ele era subordinado ao SNI.
A manuteno de um servio de informaes vigoroso era vista como indispensvel
por grande parte do governo. Uma das primeiras medidas de Geisel foi nomear o ex-chefe do
Gabinete Militar de Mdici, Joo Figueiredo, para dirigir o SNI. Este conhecia como poucos
os meandros da represso e, mesmo que sua tarefa fosse controlar o servio secreto na
abertura, ele atuou continuamente para preservar e valorizar a comunidade de informaes.
5 Ver BARRETO, Fernando de Mello. Os sucessores do baro (1912-1964). So Paulo: Editora Paz e Terra, 2001, volume I; Id.. Os sucessores do baro (1964-1985). So Paulo: Editora Paz e Terra, 2006, volume II.
4
Ao se ler os documentos produzidos pelos espies, torna-se claro o seu empenho em
multiplicar os perigos que estariam ameaando a segurana do Brasil. Esforavam-se para
estimular o aumento da represso e tambm para legitimar a sua prpria permanncia. Nesse
sentido, o SNI atingiu o pice de seu funcionamento durante o governo de Figueiredo, sendo
considerado um quarto poder naquele perodo. No entanto, o discurso radical da comunidade
de informaes j estava bastante desacreditado. Ainda assim, o CIEX foi extinto apenas em
1985 e o SNI, cinco anos depois, pelo ento presidente Fernando Collor de Melo.
Os documentos do CIEX fruto do trabalho de profissionais especializados tinham
carter sigiloso e so, em sua maioria, relatrios sintticos e analticos, sem autoria definida.
Por meio da leitura desses papis, possvel observar o resultado de uma prtica realmente
metdica de indivduos que faziam funcionar um complexo sistema cuja funo era no
apenas recolher informaes, mas tambm produzir convices que justificassem a
perseguio aos seus adversrios.
O tema do exlio na Frana no era muito frequente no momento da criao do rgo,
em 1966, at aproximadamente 1968, ano da decretao do AI-5, com um aumento
significativo aps 1973. Daquele ano em diante, veem-se proliferar informaes sobre o
cotidiano dos exilados no territrio francs. Isso se deve maneira como se deu o fluxo de
exilados em direo Europa, o que ser discutido adiante.
Os relatrios, em sua maior parte, iniciam-se com um cabealho padro do qual
constam o grau de sigilo, a data, o assunto, os rgos para onde seriam distribudos e, ainda, a
avaliao do grau de confiabilidade das informaes ali veiculadas. Com relao ao sigilo, os
documentos eram classificados em reservados, confidenciais, secretos e ultrassecretos e, no
que se r