Post on 11-Nov-2018
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Crônicas do Desassossego / Sergio Almeida. -1. ed. Rio de Janeiro: 2014. 104p. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7976-039-6
1. Poesia brasileira. I. Título.11-4451. CDD: 869.98 CDU: 821.134.3(81)-8 18.07.1125.07.11028174
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Diários do Desassossego retrata a condição da alma humana
através das confissões expostas em cada um de seus poemas. Em
cada verso sobressaem reflexões e uma sensibilidade que vai
aflorando a cada página. Sintetiza angústias, sonhos, incertezas
sem descanso.
O desassossego é parte do contexto humano. Mais que simples
angústia, é a intuição da existência em toda a sua complexidade
amorfa. Não existe trégua para o poeta, seu espírito apenas
apreende o universo em seu vazio e o descreve conforme às
próprias vistas, coisas reconhecidamente íntimas. A transformação
que lhe sussurra às entranhas lhe empurra o mundo goela abaixo
A vida, um enigma a ser decifrado, não poupa a ninguém da dor. A
perplexidade diante dela, que não oferece sossego aos que
buscam respostas, deixa apenas o refúgio das sensações que estão
atrás dos sentidos, constatações em preto e branco. Uma
revelação às avessas, descobrindo a razão de todas as coisas no
nada e na ausência. O desejo não tem outro papel que não o de se
mover neste limbo.
A palavra desassossego refere-se a uma perturbação existencial
presente na inquietação e incerteza inerentes a tudo o que é
narrado. O livro assume dimensões inesperadas tal como uma
bíblia sem deus, numa eterna brevidade contínua. O poeta repleto
de dúvidas e hesitações parece estar sempre à procura de algo,
mas não sabe exatamente o quê. Um balanço sobre a vida, a
solidão, o amor, a saudade. Um livro vivo, intrigante, envolvente,
interminável. Definitivamente perturbador.
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vivo recolhendo coisas pelas ruas,
reunindo minhas humanas incertezas
abortadas de meu coração vazio
que não entende coisa alguma de nada.
na alma toca um blues
por aqueles que se foram
em infelizes destinos excomungados
nas encruzilhadas do tempo.
vejo a festa e o contentamento
que fugazes escaparam de minhas mãos
e se esvaneceram em olhares confusos,
em alegrias provisórias.
procuro o significado de estar vivo
somente para encontrar
absolutas verdades ocultas
em antros de mentiras declaradas.
nesta busca insana
encontro realidades concretas
que abstratas me sentenciam,
me deserdam.
de que me servem as certezas
paridas de em algum momento de lucidez?
sou apenas um peregrino mendigando
o alívio de retóricos venenos.
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madrugada em frente
à estação do metrô cinelândia.
cartazes, protesto,
palavras de ordem,
vodka e maconha,
a alegria de estarmos juntos
não nos bastava para estancarmos
nosso ódio por tudo.
havia rancor em seus olhos vermelhos.
o azul bêbado deu lugar à noite
que folheamos
como as páginas de um livro velho.
o suave odor da chuva
traz seus sabores:
o que já se foi, o amanhã,
o instagram, o orgasmo,
a piada, as tarefas, o sismo.
invadem nossos corpos como alimento.
somos feitos de papel, música
e cicatrizes, devotos da lua.
o mundo nos ignora,
passamos o dia escravizados
na acidez de nossos empregos.
melhor se tivéssemos
nosso tempo para nos amarmos.
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escura bruma que a noite produz,
o vazio neste bar perdido
em uma rua perdida.
minhas lembranças mais secretas
são estrelas caídas
de um céu sem piedade.
querendo ou não
sou parte deste drama
que a vida usa para dar
um sentido mais trágico
ao cotidiano.
como quem aguarda
os passos intermináveis das horas,
destilo silêncios, respiro surpresas,
fantasiando meus impossíveis
e recolhendo meus absurdos.
não há mais motivo ou propósito,
estou sobre um campo minado
à deriva pelas esquinas
dos meus próprios desvarios.
sílabas mortas, frases rotas,
monólogos
que pronuncio ou mesmo que calo
envoltos nas pétalas aveludadas
das flores da ilusão.
abro meus olhos cansados com esforço
e sinto um peso no ar, nas chamas
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das minhas fomes.
desassossegos, abandonos indiferentes
aos mendigos que comem lixo nas praças.
tristeza com hálito de ribaltas antigas
de um teatro em ruínas,
abandonado a segredos densos,
alcovas gélidas onde perambulam
anjos deserdados.
alimento dragões
nestas noites de junho,
subverto a pauta do desejo,
bebo a doce violência
que escorre pelas ruas.
sou como o silêncio que habita a cidade,
desato nós, silencio desordens,
ouço os rios, dobro o riso, as blusas
como se dobrasse o tempo.
surpreendo os vazios, escuto gemidos,
recorto os versos
de qualquer santidade.
despertenço, desinvento a palavra amor.
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assisto o amanhecer como se fosse
o nascimento das minhas catástrofes.
o dia é feito de sombras, de sobras,
sons de alguém que parte,
estilhaços de vozes, lembranças
do que se foi com o soprar de ventos
e envolvem as marcas do meu corpo.
um demônio cospe seu ódio
e desprezo no meu rosto.
estou longe demais dos sonhos
e próximo do abismo.
sufoquei o choro, engoli as lágrimas,
nada vai mudar a trajetória
das minhas andanças
no vale úmido da indiferença,
no pântano da apatia.
a cada passo, os impulsos calados.
a cada gesto, os espaços reduzidos.
a cada abraço, os pulsos cortados.
assistido por um coro de dementes.
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o indulto das descobertas
e o deslumbramento da contemplação
me trazem, na eternidade de um segundo,
milhares de pedaços de sonhos
que não foram feitos para o meu sonhar,
tão efêmeros como uma promessa.
meus infinitos duram o instante
do sorriso de um suicida que rasga
os véus da esperança em sua despedida
sem nome e sem endereço
ou de um inocente no corredor da morte.
carrego o fardo das consequências
e recebo o toque frio do arrependimento
com seus estilhaços que penetram
cada membro do meu corpo.
desenterro o que o tempo sepultou
num ritual de infinitas exumações,
revivo prazeres, consumo
compulsivamente as mentiras sussurradas
pelo discurso seco dos abandonados,
pela paixão dos desiludidos.
na penumbra dos meus pontos de interrogação
entre os porquês, há apenas um abismo infinito
e a queda livre rumo a um solo
que nunca chega,
devaneios molhados
repletos de ilusões perdidas,
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de uma realidade cheia de inverdades
não evitadas a vida inteira,
recolho fragmentos de saudades.
sobrevivi ao cataclismo
de incontáveis frustrações
e de infindáveis arrependimentos.
respiro a fé morta dos desesperados,
a vergonha de mim mesmo,
os pensamentos que nunca calam,
as dores que nunca dormem,
a piedade dos que me ouvem.
observo com descrença os vestígios da noite
que serão levados ao reino do esquecimento.
as cinzas da madrugada suja
entram em meus olhos.
o nascimento do presente
é o último suspiro do ontem.
visto os farrapos de apatia
e carrego pela casa momentos perdidos,
tecidos rotos e sujos
de um agora que há muito se arrasta.
minhas roupas tem cheiro
de pesar, angústia, inquietação.
mora uma urgência dentro de mim,
promessas que me fiz em um idioma
que não existe e que nunca cumpri.
há retalhos de indiferença pelo chão,
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objetos contidos no cenário
imutável de mim mesmo.
na contemplação dos abismos
ouço a paz que não há,
contrariedade viva das vontades mortas.
contemplo o desfile lento das horas,
o desmanchar dos instantes,
vácuos que dão vida aos meus absurdos.
abro todas as portas e janelas
e enxergo o vazio infinito
que cerca a minha alma.
o vento sopra imagens confusas,
sinto no rosto seu toque,
o tempo perdido na praça dos loucos,
no jardim dos inconformados.
a personificação dos meus erros,
o avesso das virtudes.
guardo um discurso oco
repleto de verdades estranhas ao universo,
resquícios de acontecimentos
que ficaram presos no mundo
dos meus devaneios noturnos
pendurado em algum cabide
nos armários do passado.
um soluço engolido às pressas
desenterra o ontem esquecido
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no cemitério que carrego dentro de mim,
terra infecunda dos zelos meus.
o esquecimento quebra, esmaga,
amassa e destrói,
corta o fio do sossego que já não há,
enterrado com os restos
do que poderia ter sido,
enterrado nas profundezas
de mim mesmo.
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levo comigo minha dorpor onde quer que eu passe.levo os cacos dos fracassos,guardo toda espécie de farrapo,malas, lâmpadas, jornais,brinquedos quebrados.navios fantasmas guardo.
guardo as cores de todos andrajos,de todas as roupas usadas,capacetes arrancados em batalhas,bússolas, guitarras, mapas.
os desejos falidos debaixo da chuva rala, sorrisos aprisionados dentro do porta-retratos.
levo o que foi atropelado, deformado, abnegado,frente ao mar bravoconheço toda a sorte de naufrágio.
agarro qualquer coisa,momentos inúteisque não deixaram traços,algum resto, algum destroço,qualquer coisa quebrada,ficou o brilho de perdidos anéis,
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1.
sons de violinos quebrados vinham das montanhas,
uivos de lobos noturnos,
varriam as imagens das imaculadas ninfas
enquanto se ouviam as vozes dos náufragos.
o príncipe das trevas desceu disfarçado de clown,
bailava num festim de sorrisos e sussurros.
a nuvem envolvia a cidade com seus círculos febris,
se dissolvia nas ruas em reflexos penetrantes,
coisa alguma nos rios, nada no ar e sua fúria
era como a de um deus rancoroso e vingativo.
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a morte com seus remendos, oxítona e afiada,
distribuía cadáveres, penetrava nos ossos, na pele,
nos músculos, qualquer coisa amorfa,
alegoria da inutilidade das horas.
agora este é o reino de hades
os que um dia nasceram e sabiam que iam morrer
vislumbravam o brilho estéril do caos que agora
acontecia através del siglo, de la perpetuidad,
debaixo deste sol que desbota.
o tempo escorre pelos escombros,
o tempo escoa pelos entulhos de chernobyl.
2.
meu olhar percorre as ruas,
meus passos varrem a noite, ouço passos,
há um cheiro de sepultura sobre a terra úmida,
um beijo frio em cada boca, um riso
estéril mostrando os dentes brancos da morte.
não foram necessários fuzis ou metralhadoras.
mas ainda há pássaros
que sobrevoam as flores pútridas.
aqueles que ainda não nasceram são santos,
são anjos ao saudar a vida diante da desolação
sob este céu deus ex machna.
aos que creem no futuro
restaram sombras, arcanos, desejos furtados,
resta fugir.
uma nuvem de medo, ansiedade e incerteza
paira sobre o sarcófago de aço e concreto da usina.
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asa silente marcando o tempo
que já não possuímos.
pripyat, natureza morta, vista através das janelas
de vidro dos edifícios abandonados
sob um sol pálido, ecos do que fomos
e do que iremos ser.
pripyat, ponto cego, cidade fantasma,
os bombeiros e suas luvas de borracha e botas
de couro como relojoeiros entre engrenagens
naquela manhã de abril, os corvos
seguem em contraponto seu caminho de cinzas
sob o céu de plutônio de chernobyl.
3.
e se abriram os sete selos e surgiram
os sete chifres da besta,
satélites vasculham este ponto à deriva, seu nome
não será esquecido, queimando em silêncio.
os quatro cavaleiros do apocalipse e seus cavalos
com suas patas de urânio anunciam
o inferno atômico semeando câncer
ou leucemia aos filhos do silêncio.
os cães de guerra ladram no canil
mostrando seus dentes enfileirados, feras famintas,
quimeras mostrando suas garras afiadas,
como aves de rapina, voando alto,
lambendo o horizonte, conquistando o infinito.
eis um mundo malfadado povoado por dragões,
a humanidade está presa numa corrente sem elo,
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sem cadeado, enferrujada e consumida pela radiação.
vidas feitas de retalhos levadas pelo vento
como se fossem pó, soltas em um mundo descalço.
vidas errantes, como a luz que se perde no horizonte,
deixam rastros andantes, vidas cobertas de andrajos,
grotescas, vidas famintas e desgastadas,
que dormem
ao relento nas calçadas e que amanhecem úmidas
de orvalho, vidas de pessoas miseráveis,
criaturas infelizes, que só herdaram
seus próprios túmulos em chernobyl.
4.
mortífera substância poluente, complexa,
realeza desgastada que paira nos ares
da pálida, intranquila e fria ucrânia
envolta no redemoinho dos derrotados.
gotas de fel caindo das nuvens da amargura,
sobre a lama do desespero, sobre o vazio
da desilusão, no leito do último moribundo.
cacos, pedras, olhos mortiços, rastros cansados,
inúteis, o sol das estepes murchou as flores
que cultivávamos, descolorindo nossas faces.
seguem os pés árduos pisando a consciência
dos descaminhos emaranhados da estrada,
na balança que pesa a morte.
no peso das lágrimas, que marcaram o início da dor,
restos mortais, ossos ressecados, sem carne,
devorados pela radiação, almas penadas
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no beco maldito dos condenados, herdeiros
da abominação, mensageiros da degradação,
horda de náufragos, legião de moribundos.
o crepúsculo trouxe o desalento e as trevas, a vida
agora é cinza do nada, são almas penadas que fazem
a viagem confusa dos vencidos em chernobyl.
5.
ainda ouvimos os gritos daqueles que tombaram,
e os nêutrons sobre a poeira fina dos vales,
os pés descalços sobre pedras pontiagudas,
ainda ouvimos o choro das pálidas crianças,
a fome, a sede e a dor,
o estrôncio-90, o iodo-131, o cesio-137.
vazios, silêncios ocos, perguntas sem respostas,
degraus infernais sobre sombras, rio de águas turvas,
quimera imunda de tanta desgraça,
fantasia desumana sem cor,
transportas tanto mal, conduzes a todos
para a aniquilação neste tempo em que nada sobra,
em que tudo é sombra, é sede, é fome, é regresso,
neste tempo em que tudo são trevas,
onde não há luz.
cruzes no cemitério, uma zona de sacrifício,
sob um céu sem nuvens,
a morte em seu ponto mutante.
no difícil cotidiano de um negro sonho,
restaram a floresta vermelha,
e os javalis radioativos de chernobyl.
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